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A disjunção entre democracia econômica e política

Capítulo 1 Participação popular nos espaços públicos em um contexto de crise estrutural e de afirmação da Terceira Via

1.2 A disjunção entre democracia econômica e política

A premissa fundamental do debate sobre a democracia consiste em considerar que o relativo sucesso da democracia liberal nas sociedades contemporâneas é fruto da capacidade desenvolvida pelo capital de diferenciar a esfera econômica da esfera política. Essa separação, conforme sustenta Ellen Wood (2003), atende bem a ideologia capitalista, pois, simultaneamente, esvaziou o capitalismo de conteúdo político e social e a conexão entre democracia e economia. Desvinculada da esfera econômica, a democracia formal pôde ser ampliada e mecanismos de participação social instituídos. Hoje, no contexto de reestruturação do Estado (emergência do social-liberalismo) e de ênfase na sociedade civil (como esfera separada da economia e sem conexões com o Estado) a democracia é ressaltada, no entanto, objetiva basicamente assegurar bens públicos em um contexto de indiferenciação da fronteira público-privado e a boa governança em países devastados pelo ajuste macroeconômico neoliberal.

O capitalismo tem sempre atuado no sentido de ocultar todas as formas de coerção extra-econômica, situando nas empresas o principal nicho em que se dá a dominação. É como se o Estado estivesse à parte desse processo. A força dessa ideologia pode ser constatada

quando se verifica que também movimentos operários modernos passaram a conduzir as suas lutas tendo como pressuposto a dissociação entre a política e a economia.

Por meio da separação das esferas econômica e política, o sistema do capital pôde seguir praticamente imune a qualquer tipo de controle democrático. O capitalismo conseguiu promover uma diferenciação profunda da esfera econômica e fez com que a produção e a distribuição de bens e mercadorias no mercado assumissem uma forma “completamente econômica”, prescindindo assim, de relações extra-econômicas (WOOD, 2003, p. 34).

A dimensão política não é “estranha às relações capitalistas”, mas encontra-se subordinada ao constrangimento imposto pela necessidade econômica:

[...] a apropriação do excedente de trabalho ocorre na esfera econômica por meios econômicos (...). Em princípio, não há necessidade de pressão ‘extra-econômica’ ou de coação explicita para forçar o operário expropriado a abrir mão de sua mais- valia. Embora a força de coação da esfera política seja necessária para manter a propriedade privada e o poder de apropriação, a necessidade econômica oferece compulsão imediata que força o trabalhador a transferir sua mais-valia para o capitalista a fim de ter acesso aos meios de produção (WOOD, 2003, p. 34-35).

Ainda segundo Wood,

[...] a diferenciação entre o econômico e o político é mais a diferenciação das funções políticas e sua alocação separada da esfera econômica privada e para a esfera pública do Estado. Essa alocação separa as funções políticas imediatamente interessadas na extração e apropriação da mais-valia daquelas que têm propósito mais geral ou comunitário (WOOD, 2003, p. 36).

O desenvolvimento do capitalismo permitiu ao Estado centralizar o poder político direto e os deveres “não imediatamente associados à produção e à apropriação”, ou seja, as funções públicas e sociais, deixando às classes proprietárias os poderes privados de exploração. Separado da economia, e por meio do sufrágio universal, o Estado aparentemente pertence a todos, capitalistas e produtores, sem o risco de que se usurpe o poder de exploração do capitalista. A expropriação do produtor direto “torna menos necessário o uso de certos poderes políticos diretos para a extração de excedentes”. Com isso, “o poder armado do capital” permanece nos bastidores, e quando o uso da força se faz sentir, “a dominação de classe aparece disfarçada como um Estado ‘autônomo’ e ‘neutro’” (WOOD, 2003, p. 43-47).

Em suma, essa discussão é importante por trazer a tona questões estratégicas sobre as lutas sociais na atualidade. Concentrar ou dicotomizar as lutas em aspectos econômicos ou políticos resulta em deixar intocáveis os mecanismos de expropriação do capital e os poderes políticos privatizados e transferidos para a esfera econômica. O debate sobre a democracia não pode abstrair dessa questão.

Este estudo sustenta a relevância epistemológica e teórico-política do conceito de democracia que incorpore dialeticamente as esferas econômica e política. Uma das formas de enfraquecer esse conceito é restringi-lo a esfera política, como se a cidadania estivesse restrita aos procedimentos dos governos e não aos aspectos substantivos da vida social, como o trabalho e a distribuição de seus produtos. Como pode ser visto no próximo capítulo, as experiências dos orçamentos participativos que surgem no Brasil a partir de fins dos anos de 1980 não podem almejar um conceito unitário de democracia (visto que as bases econômicas não são tocadas) em que as esferas econômica e política são compreendidas como uma totalidade, prevalecendo, via-de-regra, a perspectiva liberal referenciada no corte entre as esferas econômica e política.

Conforme ressaltado anteriormente, busca-se nesta seção discutir a democracia face as ressignificações que esvaziam o seu caráter emancipador, mas que são, no atual contexto, fundamentais para reformar e humanizar um capitalismo incapaz de expressar um porvir emancipatório. Não é objetivo empreender uma longa discussão sobre todo o percurso da democracia no pensamento ocidental, existe uma consistente literatura histórica, filosófica e política de diferentes matizes teóricos, que dá conta de tal tarefa20. Entretanto, embora não seja propósito deste estudo desenvolver uma investigação pormenorizada sobre o histórico da democracia, é preciso sublinhar a relevância das trajetórias históricas de lutas sociais pela ampliação dos direitos políticos e sociais, em especial as relativas à problemática do público e do privado e da participação cidadã e protagônica nesses embates em defesa do público.

Nesse sentido é importante recuperar, mesmo que esquematicamente, duas visões fundamentais e opostas em relação às lutas sociais e à democracia, a saber: o pensamento liberal e o pensamento revolucionário/socialista. A preocupação é a de explicitar a concepção e a relação que essas visões estabelecem com a democracia, com o intuito de discutir as potencialidades das lutas e os limites da democracia nos dias de hoje, ressaltando as incongruências e limites de determinadas perspectivas teóricas e políticas, além dos arranjos institucionais que têm se apresentado como capazes de ampliar a esfera pública.

Na perspectiva aqui sustentada existe uma tensão fundamental entre democracia e capitalismo: capitalismo e democracia não são faces da mesma moeda. Conforme Wood (2003), democracia e capitalismo são, em essência, incompatíveis. De fato, a democracia enquanto governo do demos representa uma ameaça ao capitalismo. Não é por outro motivo

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Cf. LOSURDO, Domenico. Democracia ou Bonapartismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; São Paulo: Editora UNESP, 2004. 372 p.

que com seus mecanismos de expropriação econômica e política, o capitalismo tem impossibilitado o pleno exercício da democracia. A separação entre as esferas política e econômica se apresentou como uma saída do capital para superar essa tensão e para manter o

status quo capitalista, liberal e burguês.

E é essa separação, conforme demonstrado adiante, que tem permitido a convivência relativamente pacífica entre a democracia (em sua forma liberal) e o capitalismo. Nas sociedades contemporâneas a democracia se dá, essencialmente, no plano político, assim mesmo, em um âmbito cada vez mais reduzido, incapaz de afetar esferas fundamentais da vida social, particularmente os direitos sociais que dependem das decisões da esfera econômica, justo a que fica absolutamente fora de qualquer controle democrático.

Segundo Domenico Losurdo (2004), o receio de que a democracia viesse a instituir um governo das classes populares é um elemento ideológico importante do pensamento liberal desde o nascimento das sociedades modernas. Assim, as lutas pela extensão do sufrágio universal às massas populares e as lutas pela universalização dos direitos políticos atravessaram vários séculos, estendendo-se da derrocada do regime absolutista na Inglaterra com a Revolução Gloriosa em 1688, até a primeira metade do século XX.

Losurdo (2004) enfatiza que a partir dos duros combates da Revolução Francesa em 1789 a burguesia liberal viu-se diante de um sério dilema: aderir ao regime representativo como conseqüência das lutas contra o absolutismo e o feudalismo, mas ao mesmo tempo, impedir que a representação política conferisse poder e influência às massas populares.

O pensamento liberal foi profícuo na proposição de soluções para esse dilema, buscando instituir mecanismos que pudessem neutralizar politicamente as massas despossuídas. Os liberais temiam que a extensão do sufrágio pudesse conduzir a um governo da maioria pobre em detrimento das classes privilegiadas. Para impedir o governo dos pobres, Benjamim Constant propôs, por exemplo, a restrição censitária dos direitos políticos. Aléxis de Tocqueville, considerado defensor da democracia moderna, recomendou o sufrágio em dois graus: os detentores de direitos políticos indicam aqueles (considerados os mais capazes), para efetivamente eleger os membros do parlamento ou do governo. Um mecanismo adicional e sutil capaz de filtrar socialmente os organismos representativos e protegê-los contra qualquer possibilidade de intervenção ou direção das classes trabalhadoras (LOSURDO, 2004).

Os teóricos do liberalismo clássico, conforme demonstra Losurdo, recusavam a idéia de representação política autônoma dos “homens pertencentes às classes inferiores”. A restrição censitária era imprescindível, pois impediria os miseráveis de se transformarem

“numa casta privilegiada” ou de aproveitarem do poder político para impor uma redistribuição de renda e melhorar a sua condição material (LOSURDO, 2004, p. 20).

Na Inglaterra, John Stuart Mill mesmo reconhecendo o princípio da universalidade do sufrágio temia por sua extensão. Para Mill, a participação das massas populares na vida política representava o perigo da presença de “um nível demasiado baixo de inteligência política e o de uma legislação de classe”, os pobres não seriam capazes de governar para além dos seus interesses imediatos, buscariam se beneficiar do poder arrancando dos ricos impostos cada vez mais elevados (LOSURDO, 2004, p. 32).

A solução proposta por Mill envolvia a restrição política dos muito pobres, de todos que não podiam pagar os impostos, dos que dependiam da assistência pública para sobreviver e dos analfabetos, ou seja, a restrição política da maioria da população da Inglaterra naquela época. Para Mill, conceder o sufrágio a um homem que não soubesse ler era o mesmo que “dá-lo a uma criança que não [sabe] falar”. Além dessas restrições, propôs também o voto plural, uma “restrição censitária disfarçada”, já que o peso do voto corresponderia às capacidades financeiras e intelectuais dos indivíduos (LOSURDO, 2004, p. 36-37).

Essas breves passagens denotam o quanto o liberalismo clássico receava a democracia política, temia-se que a extensão do sufrágio às massas trabalhadoras garantisse a supremacia dos interesses da maioria pobre. Qualquer possibilidade de um governo do povo trabalhador e pobre deveria ser afastada. O capitalismo não deveria correr risco. Assim, para que o sufrágio universal não viesse significar a possibilidade da direção política do proletariado21 foram criados mecanismos institucionais, que visaram assegurar uma separação cada vez mais profunda entre a democracia política e a econômica.

Para os liberais, conforme sustenta Norberto Bobbio (1998, p. 324), a única forma de democracia compatível com o Estado liberal é a representativa ou parlamentar, pois nesse arranjo institucional não se atribui a todo o povo reunido em assembléia o dever de fazer as leis, mas a “um corpo restrito de representantes eleitos por aqueles cidadãos a quem são reconhecidos os direitos políticos”.

Contudo, mesmo a forma representativa - eleitoral da democracia, bem como a sua extensão a um número maior de países e/ou Estados não deve ser vista como uma concessão

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Somente em condições excepcionais é possível identificar o sufrágio com a direção política dos trabalhadores. LEHER, Roberto. Sociedade civil contra a esfera pública. Revista de Políticas Públicas, São Luis: EDUFMA, v. 9, n. 1, p. 129 – 156, jan./jun. 2005c. p. 130.

natural do capital. Ao contrário, ela também decorre das lutas sociais empreendidas pelas classes trabalhadoras pela extensão dos direitos políticos22.

Nessa ótica, é possível afirmar, parafraseando Losurdo, que a história da democracia no ocidente é marcada por uma ferrenha alternância entre reivindicações e medidas de emancipação e tentativas e medidas de des-emancipação das massas trabalhadoras, ou seja, o capitalismo não abraçou naturalmente e sem contestação a democracia representativa. Partindo dos discursos e proposições que os liberais se utilizaram e formularam para restringir a democracia política, também podemos concordar com a crítica desse autor quanto à idéia difundida de que o liberalismo teria caminhado espontaneamente em direção à democracia (LOSURDO, 2004, p.40).

A democracia enquanto governo do demos, da maioria, continuou a ser criticada e desconstituída. A crítica liberal se estendeu até o século XX, permanecendo atual nas proposições do pensamento político-ideológico denominado neoliberal. Os liberais clássicos defendiam a restrição censitária argumentando que um governo da maioria pobre expropriaria e tiranizaria a minoria rica, e se o povo era incapaz de prover o seu próprio futuro o que dirá governar toda a sociedade. Os pensadores contemporâneos também têm utilizado elementos, fundamentalmente ideológicos, para justificar proposições que intentam reduzir as potencialidades da democracia. Elaboram grandes teorias para justificar a negação e/ou a redução dos direitos (civis, políticos e sociais) e da soberania popular, e assim, desconstituir a democracia, reduzindo-a a uma mera formalidade política e jurídica.

Exemplos nessa direção podem ser buscados em algumas definições e caracterizações de regimes democráticos. Uma delas é a formulada por Schumpeter (1976), que busca conceituar a democracia como competição pacífica entre líderes ou lideranças diversas. Para este autor, a democracia deve ser compreendida como um método político, no qual as pessoas enquanto eleitores escolhem periodicamente “os homens capazes de tomar decisões”, a vida democrática consiste na luta entre líderes políticos rivais, organizados em partidos, pelo mandato de governar. O povo é um mero “produtor de governos” e a democracia consiste no método peculiar de seleção das elites através de eleições periódicas (SCHUMPETER, 1984, p. 284-5).

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Para a terceira via tanto os direitos sociais quanto os direitos políticos (sufrágio universal) são “compreendidos como concessões capitalismo que garantem a elevação das condições materiais e culturais dos trabalhadores e impõem a necessidade de revisão histórica da luta pelo socialismo”. LIMA, Kátia. “Terceira Via” ou social- liberalismo: bases para a refundação do projeto burguês de sociabilidade, Revista Universidade e Sociedade, DF, Ano XIV, n. 34, p. 11-21, out. 2004, p. 19.

Essa formulação denominada elitismo democrático, de democrático não tem absolutamente nada. Ela consiste, basicamente, em prescrever um envolvimento extremamente reduzido do cidadão comum nas questões políticas. A participação aceitável é aquela destinada a selecionar uma elite política, considerada habilitada e capaz de tomar as decisões legislativas e administrativas necessárias à coletividade. Sob essa perspectiva, as massas são consideradas incapazes de opinar sobre o destino da comunidade, e a sua participação é vista como capaz de colocar em perigo a tranqüilidade do processo público de tomada de decisões.

Um outro exemplo de redução da democracia consiste em definir e/ou identificá-la a partir da presença de determinadas regras formais, como a regra da maioria e a presença de eleições periódicas. A democracia é definida, conforme sugere Bobbio (1986, p. 18-19), pela existência de “um conjunto de regras que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões e com quais procedimentos (...) sendo a regra fundamental da democracia a regra da maioria”. Essas proposições teórico-ideológicas têm uma característica fundamental em comum: visaram e/ou visam a des-emancipação ou a minimização da democracia. A partir das considerações apresentadas podemos afirmar que uma parte importante do pensamento liberal foi indubitavelmente antidemocrático, assim como a atual vertente neoliberal.

Frederich Von Hayek (1969), precursor do neoliberalismo na Europa condenava a concessão “indiscriminada” de direitos políticos e a idéia do sufrágio universal enquanto direito subjetivo irrenunciável. Também considerava legitima a discriminação censitária dos direitos políticos e via com “horror” a extensão do sufrágio. Na opinião de Hayek, o sufrágio universal conduziria a uma “corrida ruinosa cujo desfecho obrigatório seria a democracia social ou totalitária”. Mais ainda, a dinâmica das democracias de massas traz em si o risco ou a propensão ao governo arbitrário e opressivo e a substituição progressiva do governo da maioria pelo governo “de seus agentes” (HAYEK, 1969, apud LOSURDO, 2004, p. 269).

Em suma, o processo de des-emancipação do sufrágio universal e da democracia avançou durante o século XX, talvez o seu ponto máximo seja, conforme sustenta Losurdo (2005), a instituição do “bonapartismo soft”23 com a transformação do sufrágio em simples

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Losurdo investiga a instituição de regimes bonapartistas na França e nos EUA, apesar das diferenças entre os dois regimes, ambos podem ser assim definidos: “a preocupação de conter as reivindicações populares e plebéias desemboca, num caso e no outro, não na reproposição do regime de notáveis e sim, indo inclusive além e fora das aspirações e das intenções subjetivas dos protagonistas dos acontecimentos, num regime político novo, no âmbito do qual o Executivo forte ou fortíssimo encontra sua legitimação numa investidura popular que se expressa mediante o plebiscito ou mediante um sufrágio eleitoral bastante amplo e, seja como for, sensivelmente mais abrangente do que no passado. Tal regime político novo se revela na América ainda mais eficiente pelo fato de que sabe associar a rapidez, a força e a unidade do centro decisório à competição e à alternância entre lideres diferentes, bem como, em condições de desenvolvimento normal, ao gozo dos direitos de liberdade por parte dos

instrumento plebiscitário de legitimação de lideranças carismáticas. A ampla difusão desse movimento que tem adquirido dimensões planetárias é, segundo o autor, atualmente um dos principais obstáculos à realização da democracia.

A concentração e a personalização do poder aparecem como uma alternativa à dificuldade de seguir negando às massas populares (trabalhadores pobres, grupos étnicos, imigrados, etc.) o acesso aos direitos políticos. Esses direitos, agora estendidos a um número cada vez maior de pessoas, continuarão a ser contidos. O exercício da soberania popular tornou-se cada vez mais restrito à capacidade de escolha entre indivíduos dotados de “amplíssimos poderes”, que em “situações de exceção” e/ou de crise, ou mesmo quando julgarem necessário concentram ainda mais poderes e prerrogativas, chegando à situação de “autonomamente envolver todo o país em aventuras bélicas” (LOSURDO, 2004, p. 327).

Até aqui foram apresentadas, brevemente as idéias liberais a respeito da democracia nas quais sobressaem a tese de Domenico Losurdo de que democracia e liberalismo são conceitos em permanente tensão. Por compreenderem que democracia e capitalismo são contraditórios entre si, os socialistas buscaram repensar essa relação, conforme pode ser visto a seguir.

De fato, o pensamento revolucionário do século XIX se preocupou com a questão da democracia e reconheceu a existência de uma tensão estrutural entre capitalismo e democracia. Karl Marx e Frederich Engels tinham uma visão crítica em relação à democracia política que emergiu na Europa após a queda dos regimes absolutistas. Mas diferentemente dos liberais não temiam a democracia, reconheciam a importância do sufrágio, mas pensavam que a transformação da ordem social vigente e a criação de uma sociedade de novo tipo não poderiam decorrer apenas de mudanças políticas, mas da transformação radical de toda a sociedade.

O ideal democrático (sociedade autogovernada pelos produtores) é um elemento importante nas teorizações sobre o socialismo elaboradas por Marx e Engels. Na concepção de Bobbio (1998, p. 324), este ideal é um “elemento integrante e necessário, mas não constitutivo” do pensamento socialista, pois, para os autores do Manifesto, a “essência do socialismo sempre foi a idéia da revolução das relações econômicas e não apenas das relações políticas, da emancipação social e não apenas da emancipação política do homem”. Embora

cidadãos; neste sentido, trata-se de um bonapartismo soft, o qual, no entanto, quando, uma situação de crise o requeira ou pareça requerê-lo, pode se transformar de modo indolor num bonapartismo duro e de guerra, capaz de impor a repressão. No entanto, é só sob esta última forma que o bonapartismo faz sua aparição na França, revelando-se assim incapaz de gerar um regime estável e baseado numa sucessão ordenada e pacífica.” LOSURDO, Domenico. Democracia ou Bonapartismo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; São Paulo: Editora UNESP, 2004. p.124.

Bobbio aponte uma questão crucial, a determinação em última instância, do econômico, a sua interpretação promove uma disjunção não presente na obra de Marx entre o econômico e a ideologia. No Prefácio à Critica da Economia Política, Marx postula que é no plano das ideologias que os homens tomam consciência das contradições fundamentais entre as forças produtivas e as relações de produção, e operam no sentido de superá-las por meio da revolução:

[...] O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade