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O Partido dos Trabalhadores: do socialismo ao social-liberalismo

Capítulo 2 Orçamento Participativo, Democracia e Governabilidade

2.1 O Partido dos Trabalhadores: do socialismo ao social-liberalismo

Nesta seção, o estudo revisita parcialmente a história do PT, tendo em vista que a experiência de OP no Brasil foi fortemente marcada pelos governos petistas, como, também, pelo fato de que a experiência concreta aqui examinada é a do OP de belo Horizonte, majoritariamente conduzida pelo PT. A análise, como não poderia deixar de ser, prioriza a discussão da democracia, da sociedade civil e da relação público-privado.

A trajetória do Partido dos Trabalhadores (PT), guardada as suas particularidades, se assemelha à dos partidos social-democratas da Europa que, ao trilharem o caminho da institucionalidade burguesa para dar vida ao projeto socialista, naturalizaram a disjunção da democracia política em relação a sua dimensão econômica, aceitando que a democracia contemporânea se restringe à esfera especificamente política (a economia capitalista é compreendida neste contexto como um dado imutável). A conseqüência estratégica dessa ótica é que o único meio de fazer política é abraçar a via eleitoral nos marcos da institucionalidade vigente, isso é, sem manifestações e mobilizações sociais pelas mudanças sociais, restringindo as campanhas ao marketing e ao jogo eleitoral, inclusive com uma política de alianças muito além de qualquer arco classista. Nesse percurso, a exemplo dos partidos social-democratas, o PT acabou inserido em um amplo processo transformista, afastando-se da sua base originária, ou seja, das classes trabalhadoras e, com isso, abandonando completamente a perspectiva de transformação socialista da ordem social.

O PT surgiu no início dos anos de 1980 no embate das lutas sociais, questionando o regime autoritário vigente, as condições de vida dos trabalhadores e a arcaica estrutura sindical atrelada ao Estado. No curso de sua história, o partido foi paulatinamente se distanciando de suas bases e das lutas dos trabalhadores, abandonando o projeto de transformação social, as bandeiras de luta emancipatórias e socialistas, para se submeter a uma política de adaptação e subordinação passiva à ordem (SOARES LIMA, 2005).

Essa inflexão se dá, principalmente, a partir dos anos de 1990, sob a direção da Tendência Articulação, corrente hegemônica no partido. Mais precisamente, a partir da derrota eleitoral nas eleições para a presidência da República em 1989, quando a política do PT passa a se caracterizar por uma postura mais defensiva e institucional, abandonando a perspectiva de independência de classe, e apontando como horizonte as eleições e a política de alianças com partidos da burguesia, em detrimento da organização e mobilização dos trabalhadores.

Apesar de assumir desde a sua origem uma postura crítica e de oposição aos regimes autoritários do leste europeu, alguns autores afirmam que o PT passou a viver uma “crise de identidade” com a derrocada do socialismo dito real e avanço do neoliberalismo nos países dirigidos pelos social-democratas. O colapso do socialismo dito real gerou perplexidades, mas não o suficiente para levar adiante um profundo debate sobre a concepção de socialismo e da transição socialista defendida pelo partido. Ao contrário, parte importante da direção do partido deixa de acreditar na viabilidade do socialismo e nos trabalhadores enquanto sujeito histórico das transformações sociais, e propõe uma atuação em conjunto com os setores modernos das classes dominantes, “para impulsionar transformações graduais na busca de uma economia eficiente que insira o país em condições vantajosas no mercado mundializado ou globalizado” (SOARES LIMA, 2005, p. 65).

Não se trata apenas de ampliar do discurso para além dos interesses dos trabalhadores, mas sim de buscar alianças estratégicas com setores do empresariado para garantir a viabilidade e o crescimento eleitoral do partido. Assim, a referência à perspectiva de classe é substituída pelo apelo à sociedade civil. A estratégia era neutralizar ou ganhar apoios no meio empresarial, a aliança com o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) foi abertamente defendida pela Articulação e intelectuais ligados ao partido por considerarem que “a tarefa histórica de um provável governo Lula [caso ganhasse as eleições em 1994] seria a

democratização do capitalismo” (SILVA, 1998, p. 119 apud SOARES LIMA, 2005, p. 67,

grifos nossos).

A burocratização do partido, através da crescente substituição da militância de base por funcionários contratados e o fim dos núcleos de base – substituídos pelos diretórios regionais – contribuíram para tornar a relação entre a base e a direção ainda mais burocratizada e despolitizada. Não que o partido tenha se descolado das bases populares, mas estas deixaram de ser protagonistas das lutas do partido, tornando-se muito mais base de

apoio a ser convocada nas eleições ou mobilizações de interesse da cúpula partidária.

A defesa do socialismo, ainda que de um socialismo polissêmico, presente em sua origem se torna, portanto, incongruente com os rumos que partido passa a adotar para levar adiante o seu projeto de ascensão ao poder político. Vale a pena reproduzir um trecho do discurso de Lula em 1981 quando da realização da I Convenção Nacional do Partido:

[...] Sabemos que caminhamos para o socialismo, para o tipo de socialismo que nos convém. Sabemos que não nos convém, nem está em nosso horizonte, adotar a idéia do socialismo para buscar medidas paliativas aos males sociais causados pelo capitalismo ou para gerenciar a crise em que este sistema econômico se encontra. Sabemos, também, que não nos convém adotar como perspectiva um socialismo burocrático, que atende mais às castas de tecnocratas e de privilegiados que aos

trabalhadores e ao povo. O socialismo que nós queremos se definirá por todo o povo, como exigência concreta das lutas populares, como resposta política e econômica global a todas as aspirações concretas que o PT seja capaz de enfrentar (...) O socialismo que nós queremos irá se definindo nas lutas do dia-a-dia, do mesmo modo como estamos construindo o PT. O socialismo que nós queremos terá que ser a emancipação dos trabalhadores. E a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores (PT, 1998, p. 114, apud SOARES LIMA, 2005, p. 165).

No começo dos anos de 1990 dá-se inicio ao processo de ressignificação e de abandono do socialismo. No I Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores realizado em 1991, o partido propõe levar adiante um projeto de renovação e de construção de um socialismo democrático, neste momento, socialismo passa a ser definido como sinônimo de “radicalização da democracia”. Também aqui vale a pena reproduzir a resolução aprovada no referido Congresso:

[...] a concepção de socialismo que defendemos pretende superar a experiência econômica do socialismo real, baseada em uma estatização generalizada das atividades econômicas, que promoveu o domínio da burocracia e bloqueou o desenvolvimento da criatividade e do avanço tecnológico. De outro, recusamos o mercado capitalista, organizado sob a lógica do lucro e exploração do trabalho assalariado, concentrador de renda, riqueza e poder como forma de organização da produção social (...) O socialismo pelo qual o PT luta prevê, portanto, a existência de um Estado de Direito, no qual prevaleçam as mais amplas liberdades civis e políticas, de opinião, de manifestação, de imprensa, partidária, sindical etc. (PT, 1998, p. 500-501, apud SOARES LIMA, 2005, p. 167, grifos nossos).

O processo de desconstrução da perspectiva socialista prossegue a passos largos. No XI Encontro Nacional (1997) afirma-se que o socialismo não apenas se mostrou incapaz de eliminar os problemas sociais, como esses problemas acabaram por se intensificar em todo o mundo. A saída apontada pelo partido para a crise consiste em promover um crescimento acelerado da economia (capitalista), e socializar a política.

[...] Um novo projeto socialista contemporâneo deve dar conta dos grandes problemas em que o socialismo do século XX acabou fracassando: promover o crescimento acelerado da economia, (...) realizando um processo sustentado de distribuição de riquezas. Mas o socialismo exige, sobretudo, a socialização da política. Por esta razão, há uma ligação umbilical entre socialismo e democracia (PT, 1998, p. 663, apud SOARES LIMA, 2005, p. 168).

Em suma, a perspectiva socialista vai se diluindo cada vez mais, deixando de ser bandeira de luta do partido, substituída pela preocupação crescente com a via institucional e com o projeto eleitoral39. Lutar por reformas e defender a democracia passam a ocupar o lugar do socialismo no plano de lutas do partido, e a política alternativa por ele defendida consiste

39

Segundo Soares Lima (2005), no II Congresso do Partido realizado em 1999, o então deputado federal José Genoíno sugeriu que o termo socialismo fosse erradicado do programa do partido.

em lutar pela “democratização radical da sociedade e do Estado”, “democratizar o Estado” para “torná-lo transparente e socialmente controlado” (PT, 1998, p. 658-659).

O sentido da radicalização da democracia proposta é o mesmo que discutimos no capítulo anterior, ou seja, ampliar a participação da sociedade civil nos assuntos do Estado, em um contexto em que a esfera econômica torna-se cada vez mais intocável e separada da política. A radicalização da democracia defendida pelo PT resume-se em regulamentar o uso de Medidas Provisórias e ampliar a utilização de consultas populares, como plebiscito e referendos, além dos orçamentos participativos. Democratizar radicalmente a sociedade e o Estado significa “impulsionar um desenvolvimento econômico sustentável e solidário”40. Aqui a semelhança com o reformismo da terceira via de Giddens é facilmente destacável.

O espectro eleitoral do partido amplia-se, concomitante, à adoção de uma postura cada vez mais moderada (light), e assim, conquista governos em vários municípios e estados, elegendo também bancadas expressivas em todos os níveis. A preocupação maior já não pode ser com o socialismo, mas sim em ganhar as eleições para mostrar que o partido pode administrar bem e melhor do que as elites dominantes.

O PT não apenas sucumbiu à lógica eleitoral como parte de um processo de social- democratização do partido, como também assumiu “uma postura de generosidade diante da ordem burguesa e do neoliberalismo”. Em prol de uma ampla aliança de classes sai da agenda política do partido a defesa de uma reforma agrária ampla e sem indenizações, anulação das privatizações, redução da jornada de trabalho sem redução de salários, salário mínimo do DIEESE, ruptura com o FMI e não pagamento da dívida externa. Com isso os governos do PT passam a assumir “o papel de agente reformista da ordem dominante” (SOARES LIMA, 2005, p. 217).

Em 2002, inicialmente a prioridade do arco de aliança era compor com setores da imprecisa burguesia nacional, cujo exemplo mais importante foi a indicação de um empresário de base nacional para compor a chapa na condição de vice-presidente. Contudo, o capital percebendo o risco promoveu um forte ataque especulativo por meio de fuga de capitais (fazendo aumentar a desvalorização do Real) e elevando o risco-país. Nesse ambiente, com Luiz Inácio Lula da Silva ainda liderando as pesquisas, o núcleo dirigente faz uma importante mudança política com a publicação da “Carta aos

40

PARTIDO DOS TRABALHADORES. Resoluções de encontros e congressos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998. p. 658-659.

Brasileiros”41. Percebendo que era o custo a pagar para chegar a presidência, o núcleo dirigente do PT aceita ser inserido no bloco de poder dominante, em um vasto processo transformista. É desconcertante a transformação na avaliação do que seria um futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, os senhores do mundo passam a defender abertamente a necessidade de Lula da Silva ser eleito para que o país pudesse renovar o seu ambiente político e seguir avançando nas reformas modernizantes (leia-se, neoliberais), fato que se confirma com o primeiro ministério do governo Lula: os setores dominantes (capital financeiro nacional e internacional; agro-negócio; grande indústria; commodities) estão representados respectivamente por Henrique Meirelles (Banco Central), Roberto Rodrigues (agro-negócio) e Luiz Fernando Furlan (commodities). O programa também propunha assegurar a manutenção das políticas focalizadas no alívio à pobreza, ou seja, a permanência e aprofundamento da política social do governo anterior42.

Em suma, o Partido adota o discurso e a prática de que é possível administrar o Estado capitalista com justiça social e que o elemento diferenciador para isso é a participação da sociedade civil que poderia ser o lócus que a cidadania conduziria a inversão de prioridades no sentido da afirmação dos direitos sociais. Esse deslocamento não poderia ter se dado sem profundas alterações nos setores populares e em suas organizações, tema abordado na seção a seguir.