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Participação e constituição de sujeitos políticos, no Brasil, nos anos de 1980 e 1990.

Capítulo 2 Orçamento Participativo, Democracia e Governabilidade

2.2 Participação e constituição de sujeitos políticos, no Brasil, nos anos de 1980 e 1990.

As experiências de participação popular na definição de políticas públicas foram marcantes a partir do ocaso da ditadura empresarial-militar, conferindo um considerável peso aos movimentos populares na luta pela constituinte ao final dos anos 1980. A consideração deste protagonismo é teórica e metodologicamente crucial para tornar pensável, na década seguinte, o OP.

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O partido assume o compromisso de que irá cumprir todos os acordos e contratos firmados pelo governo Fernando Henrique Cardoso, de manter elevado o superávit primário para pagar os serviços da dívida interna e externa, dar curso a um amplo programa de reformas estruturais (previdenciária, fiscal, tributária, trabalhista, sindical), e envidar esforços para aprovar a emenda constitucional que concede autonomia ao Banco central.

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Kátia Lima afirma que essas proposições compõem o eixo articulador do “discurso neoliberal requentado pautado no horizonte político da humanização do capitalismo, Terceira Via (...), ou seja, a conjugação de crescimento econômico com justiça social ou estabilidade econômica com coesão social.” LIMA, Kátia Reforma universitária do governo Lula: o relançamento do conceito de público não-estatal. In: NEVES, Lúcia M. W. (Org.) Reforma universitária do governo Lula. Reflexões para o debate. São Paulo: Xamã, 2004. p. 23-46.

A produção teórica nacional que trata dessa temática é extensa e heterogênea, abarcando diversos aspectos da problemática, em especial em torno do tema dos novos movimentos sociais e suas conexões com os movimentos referenciados no trabalho. Destacam-se, portanto, estudos e análises que enfocam a emergência de sujeitos e ações coletivas de variados tipos, bem como suas formas de organização, atuação e impactos a partir, principalmente, de fins da década de 1970.

Eder Sader (1988) define esse momento como sendo aquele em que os novos personagens políticos entraram em cena, no país. São os movimentos populares urbanos, sindicais, de bairros, reivindicativos, que trazem para o debate público suas demandas e ressaltam a incapacidade do Estado em assegurar minimamente políticas públicas fundamentais ao bem-estar dos cidadãos.

Os primeiros estudos sobre a atuação dos movimentos populares, no final da década de 1970, enfatizaram, principalmente, o repúdio desses movimentos ao Estado e a sua luta para serem reconhecidos como canais de negociação e portadores dos interesses e demandas legítimos de grupos e segmentos da sociedade. A autonomia dos movimentos em relação ao Estado e a crítica aos mecanismos de institucionalização política são características apontadas para os movimentos desse período.

A emergência desses sujeitos coletivos e suas práticas políticas impulsionaram as mudanças no país. A ampliação da participação social nas decisões políticas, o processo de redemocratização e a aquisição dos direitos da cidadania são frutos das lutas sociais travadas no início dos anos 1980. Mas, segundo Ruth Cardoso, se o discurso dos movimentos reivindicativos apontava o “Estado como inimigo”, também o situava “como interlocutor” com quem se pretendia negociar as reivindicações mais imediatas (CARDOSO, 1988, p. 368). Na perspectiva desta autora, a continuidade da abertura política e, particularmente, o pluripartidarismo, contribuiu para o surgimento de condições diferentes de atuação dos grupos populares. O aparelho do Estado foi se abrindo à participação popular e os grupos locais organizados começaram a ser reconhecidos como interlocutores necessários, principalmente quando da implantação das políticas sociais. Além disso, o pluripartidarismo rompeu com “o bloco oposicionista que se unia contra a repressão e a política econômica antipopular” e muitos que se dedicavam às organizações de base passaram também a se identificar com partidos políticos e buscaram “estabelecer vínculos entre essas duas formas de participação” (CARDOSO, 1988, p. 369).

Ainda sob o regime militar, em particular, após as eleições de 1982, começaram a surgir várias iniciativas que visavam promover o contato do poder público com a população

alvo das políticas sociais. Também adquire relevo o binômio descentralização-participação, com o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e outros partidos oposicionistas como o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B), defendendo-o como forma de democratizar as decisões do Estado. Assim, setores do Estado passaram a ver como positivo o diálogo direto com os usuários das políticas sociais, além de considerarem a participação um critério auxiliar importante para administrar os escassos recursos destinados às políticas.

Segundo Cardoso, apesar do crescente reconhecimento por parte do Estado da importância do diálogo direto com os setores populares, a consulta aos usuários se limitava a algumas agências e não envolvia a definição de prioridades; os processos eram marcados por “um certo informalismo”, que não deixava claro os limites e os objetivos da participação, nem as regras que definiam os direitos das comunidades, além da descontinuidade dos processos participativos. No entanto, apesar das dificuldades, os atores envolvidos nas experiências de participação reconheciam ser este o caminho para uma relação mais democrática com o aparelho do Estado (CARDOSO, 1988, p. 369).

Em seus estudos, Maria da Glória Gohn (2001) também aponta mudanças importantes na atuação dos movimentos sociais nos anos de 1980 e 1990. Segundo a autora, os anos de 1980 foram marcados pela constituição de um “campo democrático no âmbito da sociedade civil”, com destaque para as formas radicalizadas de mobilização e de pressão diretas para viabilizar o encaminhamento das demandas. Esse momento se caracteriza pela “conquista de canais de participação da população em assuntos que [diziam] respeito à coisa pública”, os sujeitos reivindicativos são postos em novas arenas de luta no interior dos órgãos públicos. Dessa forma, a participação nos anos 1980 tinha como eixo articulador “a ocupação de espaços físicos para que se fizessem ouvir outras vozes além da dos que estavam no poder” (GOHN, 2001, p. 52 e 55).

Já os anos de 1990 são marcados, conforme a autora, pela mudança no paradigma da gestão dos bens públicos. Essa mudança decorre, em parte, da ascensão ao poder da oposição às elites tradicionais e caracteriza-se pela construção de espaços de participação “lastreados não em estruturas físicas, mas em relações sociais novas que se colocam entre o público e o privado, originando o público não estatal”. É o caso, por exemplo, dos conselhos gestores de políticas sociais e os orçamentos participativos (GOHN, 2001, p. 56).

Na sua perspectiva teria surgido uma “nova concepção de participação”, com os movimentos radicalizados cedendo espaços para as formas institucionalizadas de participação, a ênfase volta-se para as políticas públicas, com a criação de mecanismos “participativos” de

planejamento e de alocação de recursos. Exemplos da institucionalização da participação dos sujeitos coletivos são a sua inclusão no arcabouço jurídico-institucional do Estado, através dos conselhos gestores e dos orçamentos participativos (GOHN, 2001, p. 57).

Cabe destacar que sob a perspectiva neoliberal que passa a predominar no país a partir, principalmente da década de 1990, a participação passa a ser vista como um requisito necessário para assegurar eficiência, efetividade, sustentabilidade e eqüidade dos projetos e políticas públicas. Assim, apesar da importância dos conselhos na ampliação da participação nas decisões concernentes às políticas públicas (saúde, educação, direitos da mulher, direitos das crianças e adolescentes) e no controle estatal, o debate atual sobre o papel desses mecanismos de participação tem revelado, principalmente, seus limites quanto à ampliação dos direitos e da esfera pública, bem como o fato de terem o seu caráter modificado com vista a legitimar as políticas neoliberais.

Ilse Silva (2003), analisando as formas de ação coletiva e a literatura que trata da participação popular nos anos 1980 e 1990, também destaca mudanças na atuação dos sujeitos coletivos. Segundo a autora, tanto mudam as práticas desses sujeitos, quanto os referenciais analíticos utilizados para interpretá-los. Dito isso, afirma que as análises realizadas no final da década de 1970 e início dos anos 1980 por seu viés marxista realçavam a autonomia dos movimentos frente ao Estado e às instituições políticas tradicionais, além de seu papel transformador.

No decorrer da década de 1980, segundo a autora, mudam os movimentos e os estudos. Em oposição ao paradigma marxista, são incorporadas as visões culturalistas e institucionalistas, dessa forma a categoria identidade adquire centralidade no estudo dos comportamentos dos grupos e das organizações. Já nos anos de 1990, os estudos se voltam para as organizações não governamentais (ONGS) e para o funcionamento dos mecanismos institucionais de participação, inaugurados com a Constituição Federal de 1988. Cidadania, exclusão social e democracia participativa são as categorias analíticas mais utilizadas.

É interessante a perspectiva usada pela autora para analisar os aspectos que contribuíram para essa mudança (dos movimentos e das análises). Em sua visão, os aspectos institucionais já estavam inscritos nas práticas dos movimentos populares e dos agentes que os impulsionaram, desde o final da década de 1970. A postura antiestado e autonomista não deve ser considerada como algo estrutural dos movimentos, muito menos um princípio fundamental dos setores que os apoiavam, mas sim um elemento conjuntural em razão do regime autoritário, pois tão logo ocorre a mudança de regime, não houve grandes resistências à participação institucional. Os setores que apoiavam ou que influenciavam os movimentos

também foram mudando os seus discursos e logo passaram a incentivar a criação de ONGS como novo espaço de participação sócio-político e expressão da autonomia da sociedade civil (SILVA, 2003, p. 35-38).

Contrasta, no entanto, a essa tendência o movimento docente organizado pelo Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), entre outros. O ANDES-SN foi constituído em 1981 em um momento em que os professores das instituições públicas eram proibidos de se sindicalizar. A Associação transformou-se em sindicato nacional em 1989. Desde a sua criação, no início da década de 1980, o ANDES-SN tem protagonizado não apenas as lutas específicas do professores das instituições de ensino superior, mas também as principais lutas políticas travadas no Brasil, da redemocratização, no início dos anos de 1980, às lutas contra a implementação das reformas neoliberais ao longo da década de 1990, prevalecendo como princípios fundamentais à sua organização a democracia e a autonomia em relação aos governos, aos patrões e aos partidos políticos. Com relação ao MST, o movimento também representa uma nova possibilidade de fazer política de forma autônoma, desvinculada de partidos políticos, e que consegue mobilizar parte significativa dos trabalhadores expropriados a lutar pela reforma agrária e contra as políticas neoliberais.

Não somente a organização e atuação dos movimentos sociais e populares no final dos anos de 1970 e nos anos 1980 despertaram o interesse de pesquisadores, o surgimento no âmbito das administrações municipais de experiências pioneiras de participação popular no planejamento e na gestão das políticas locais, também mobilizou estudos importantes sobre essa nova forma de participação.

Essas primeiras experiências foram chamadas de estratégia participativa de

administração e tiveram início quando o Movimento Democrático Brasileiro (MDB)

conquistou algumas prefeituras em 1978, e em seguida, quando ganhou alguns governos estaduais em 1982. Esses governos tomaram para si a tarefa de introduzir mecanismos de participação popular, na gestão pública.

A administração municipal de Lages, pequena cidade no interior de Santa Catarina, eleita em 1978, é considerada o paradigma desse novo modo de gestão do poder local. A ela somaram-se as administrações municipais de Piracicaba (SP), Boa Esperança (ES), Prudente de Morais (MG), que também utilizaram processos democrático-participativos na elaboração de seus orçamentos, no início da década de 1980.

Reconhece-se a importância dessas experiências pioneiras, mas devido à sua descontinuidade, os trabalhos mais recentes sobre a participação popular nas administrações

municipais têm destacado o orçamento participativo como tendo inaugurado, nos anos 1990, uma nova forma de relação entre Estado e sociedade.

Considera-se que essas novas experiências participativas surgidas com o OP têm-se mostrado estratégicas na democratização e afirmação da cidadania, ou seja, a abertura do Estado à participação direta além de instituir direitos, pode melhorar o atendimento às demandas dos setores populares, favorecendo o exercício do controle social sobre os governantes, e criando obstáculos ao uso privado dos recursos públicos.