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Capítulo 1 Participação popular nos espaços públicos em um contexto de crise estrutural e de afirmação da Terceira Via

1.4 Sociedade civil e esfera pública

A transformação da sociedade civil em uma esfera distinta do Estado e do Mercado e, conseqüentemente, no lócus da democracia, da participação e do diálogo consistiu em mais uma ressignificação importante empreendida pelos ideólogos do social-liberalismo e/ou terceira via. Assim, o termo sociedade civil tornou-se categoria analítica central para a compreensão das profundas mudanças ocorridas nas relações entre Estado e sociedade, mais precisamente, entre o Estado/público e mercado/privado.

O debate sobre a sociedade civil ganhou destaque a partir de 1970, impulsionado pela crise e resistência aos regimes de socialismo real do leste europeu, bem como às restrições a organização autônoma da sociedade. Nos países de democracia liberal foi desencadeado pela critica quanto à incapacidade das formas clássicas de participação e representação (partidos, sindicatos, eleições) em atender plenamente as demandas por participação de amplos segmentos da população.

O momento de ascensão dessa visão de sociedade civil corresponde, portanto, ao aprofundamento da crise do paradigma keynesiano e derrocada do socialismo real na União Soviética e no Leste Europeu, e à difusão da idéia do fim da história, compreendida como a ausência de alternativas ao capitalismo. Um contexto em que os pressupostos liberais do livre mercado são reafirmados vis-à-vis ao Estado e de abandono ou perda da centralidade histórica da categoria classe social.

O neoliberalismo com suas críticas à ação intervencionista e ao crescente papel desempenhado pelo Estado na regulamentação da vida social compreende a sociedade civil como espaço de sociabilidade distinto do mercado e do Estado. O termo sociedade civil passa a ser utilizado para demonizar o Estado e para confundir sociedade civil com o mercado. Com isso o público e o privado - pólos antagônicos que marcaram a construção da modernidade – cedem lugar para a oposição entre o estatal e o privado. A crítica ao estatismo tem como contraponto o mercado, lugar da eficiência, do mérito, da iniciativa e da criatividade. A oposição estatal/privado favorece os neoliberais, pois permite a desqualificação do Estado e o desaparecimento do público (LEHER, 2005b; 2005c).

O pensamento da esquerda liberal também ajudou a difundir uma imagem de sociedade civil como esfera plural de interesses e expressão democrática de uma vontade geral, apartada do Estado35. Segundo Navarro (1999), essa imagem pode ser encontrada tanto nas experiências de administração participativa de governos de esquerda, quanto nas proposições neoliberais que enfatizavam a descentralização e a participação social na consolidação de novos formatos institucionais para os países recém-saídos de regimes centralizadores e autoritários.

Para o social-liberalismo36, o diagnóstico do esgotamento do modelo de crescimento econômico e de organização produtiva centrado no Estado indicava a necessidade de redesenhar a relação entre o mercado e o Estado. Diante “das opções de ou privatizar o Estado ou estatizar a sociedade” era preciso apoiar políticas que democratizassem ambos, “compreendendo que desestatizar não [significava] necessariamente privatizar”. Assim, as propostas para a esquerda democrática deveriam “enfocar a esfera pública como distinta da esfera privada quanto da esfera estatal como locus para a organização de uma sociedade autônoma” (PORTANTIERO, 1992, apud NAVARRO, 1999, p. 294).

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Também chamados de pós-neoliberais: teóricos e políticos que apesar de criticarem o fracasso do neoliberalismo e das políticas de ajuste estrutural não romperam com seus fundamentos macroeconômicos e sociais. LEHER, Roberto. A sociedade civil contra a esfera pública. Revista de Políticas Públicas, São Luis: EDUFMA, v. 9, n. 1, p. 129 – 156. jan./jun. 2005c. p. 146.

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Nos anos de 1990, a dicotomia entre Estado e sociedade civil passou a ser utilizada pelos defensores do neoliberalismo para “demonizar” o Estado e para confundir sociedade civil com o mercado. Para Coutinho, isso permitiu e facilitou a muitos intelectuais de esquerda que se opuseram à ditadura pudessem a partir de então defender de forma “despudorada o neoliberalismo”. COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia na batalha das idéias e nas lutas políticas do Brasil de Hoje. In: FÁVERO, Osmar & SEMERARO, Giovanni (Orgs.). Democracia e construção do público no pensamento educacional brasileiro. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2002. p. 35.

A categoria sociedade civil também passou a ser utilizada de forma muito ampla pela esquerda. O movimento da esquerda em direção à sociedade civil trouxe sérias conseqüências para as lutas anticapitalistas. Segundo Ellen Wood (2003, p. 205), a noção de sociedade civil reaparece (após um longo percurso histórico, passando por Hegel, Marx e Gramsci) e se transforma em uma “expressão mágica adaptável a todas as situações da esquerda”, passando a abrigar ao mesmo tempo uma ampla gama de aspirações emancipatórias e “um conjunto de desculpas para justificar o recuo político”. Mesmo que a idéia de sociedade civil caminhasse no sentido da defesa das liberdades humanas contra a opressão do Estado, ou que viesse a designar um território de práticas sociais, instituições e relações, “desprezadas pela velha esquerda marxista”, atualmente, ressalta Wood, “corre-se o risco de ver sociedade civil transformar-se num álibi para o capitalismo”.

Com efeito, sociedade civil substitui a idéia de classe social enquanto sujeito histórico e naturaliza o capitalismo na medida em que os antagonismos de classe – capital e trabalho – são substituídos por uma falsa oposição entre Estado e sociedade civil. Conseqüentemente, o antagonismo entre público e privado é substituído pela oposição entre público e estatal.

Os usos mais comuns do termo derivam, exatamente, da distinção entre sociedade civil e Estado. Os defensores dessa distinção definem sociedade civil a partir de algumas oposições simples: a esfera estatal (e seus órgãos militares, policiais, legais, administrativos, produtivos e culturais) e o espaço não-estatal (regulado pelo mercado, controlado pelo poder privado ou de forma voluntária) da sociedade civil. Em tal definição, sociedade civil engloba uma variedade de instituições e relações, desde famílias, sindicatos, associações voluntárias, hospitais e igrejas, o mercado, empresas capitalistas, ou seja, toda a economia capitalista. “As antíteses mais significativas são o Estado e o não-Estado, ou talvez o político e o social” (WOOD, 2003, p. 208-209, grifos nossos).

Aparentemente essa dicotomia corresponde “à oposição entre coação, corporificada pelo Estado, e liberdade e ação voluntária, que na prática pertencem, em principio, [mas não] necessariamente, à sociedade civil”. Essa distinção entre Estado e sociedade civil é defendida com base em dois argumentos: o primeiro chama a atenção para os perigos da opressão do Estado e para a necessidade de definir limites adequados para suas ações, organizando e reforçando a pressão contra ele dentro da sociedade, o que significa, em outros termos, o retorno da preocupação liberal com a limitação e legitimação do poder político, em especial, com o controle desse poder pela liberdade de associação e organização autônoma da sociedade, “que a esquerda geralmente despreza, tanto na teoria quanto na prática”; o segundo argumento alega que o conceito de sociedade civil “reconhece e celebra a diferença e a

diversidade”. Seus defensores afirmam que o pluralismo é “um bem primário”, em oposição ao marxismo que consideram essencialmente monístico, reducionista e economicista (WOOD, 2003, p. 209).

Da idéia predominante de sociedade civil também decorre a visão da sociedade moderna como uma organização complexa, heterogênea, e constituída por uma pluralidade de esferas (econômica, política, cultural, etc.). Neste contexto, a oposição entre capital e trabalho perde centralidade, pois o sistema capitalista é reduzido a uma das muitas esferas da sociedade moderna. O capitalismo deixa de ser determinante e “é reduzido ao tamanho e peso de outras instituições singulares e específicas e desaparece na noite conceitual em que todos os gatos são pardos”. Contraditoriamente, essa estratégia de “dissolver o capitalismo” em uma pluralidade de instituições e relações sociais acaba por enfraquecer o conceito de sociedade civil tanto sua capacidade de “enfrentar a limitação e legitimação do poder”; quanto na sua utilidade de “orientar projetos emancipatórios” (WOOD, 2003, p. 212).

Segundo Wood, as teorias atuais “ocultam” o sentido distintivo de sociedade civil como forma específica do capitalismo, uma totalidade sistêmica em que se localizam todas as outras instituições, em que “todas as forças sociais têm de encontrar seu caminho, uma esfera específica e sem precedentes de poder social, que propõe problemas inteiramente de legitimação e controle, problemas que ainda não foram encarados pelas teorias tradicionais do Estado, nem pelo liberalismo contemporâneo” (WOOD, 2003, p. 212).

Em suma, além de suspender o conceito de classes, a noção de sociedade civil é usada para identificar uma arena de liberdade fora do Estado, um espaço de autonomia, de associação voluntária, de pluralidade e até de conflito, um espaço a ser garantido, fundamentalmente, pela vigência da democracia formal, permitindo até o surgimento, dentro deste arcabouço institucional, de formas radicais de democracia, como é o caso das chamadas democracias deliberativas ou dialógicas.

Na América Latina e no Brasil, a emergência do conceito está associada à resistência aos regimes militares. Segundo Sérgio Costa (2002), a difusão do termo sociedade civil no Brasil coincide com a resistência ao regime militar implantado após golpe de Estado, em 1964, e representou, no inicio dos anos de 1970, base de sustentação para o projeto de oposição ao regime autoritário. Naquele momento, conforme sustenta este autor, buscava-se mais um marco conceitual para dar suporte à organização da resistência contra os militares, do que discutir a existência propriamente dita de uma sociedade civil, no Brasil.

Desde então, tem prevalecido uma concepção sociedade civil como ente autônomo, separado do Estado e da economia. Segundo Nogueira (2003, p. 188), com a crise do estado

autoritário e dos padrões societários a ele submetidos, os movimentos, ações e organismos puderam se enraizar em um terreno que já não podia mais ser plenamente regulamentado pelo Estado, isso acabou por levar à idéia de que teria surgido uma “terceira esfera” separada do mercado e do Estado. A expressão sociedade civil ficou “colada a essa terceira esfera”, sendo a ela transferida “toda a potência da ação democrática mais ou menos radical, da luta por direitos e da constituição de uma esfera pública não integrada ao estatal e assentada no livre associativismo dos cidadãos”.

Acreditava-se que as organizações que emergiam da sociedade civil “agiriam com um ator único capaz de renovar todo o sistema político”, ou seja, não se tratava de uma luta dos movimentos sociais, populares e/ou reivindicativos pelo atendimento de suas demandas, mas da luta da sociedade civil pela redemocratização (CARDOSO, 1988, p. 369, grifos nossos).

No contexto das lutas pela redemocratização até meados da década de 1980, o termo sociedade civil adquire grande centralidade e passa a incorporar uma extensa gama de atores sociais: organizações de base, a igreja progressista, o novo sindicalismo, setores empresariais, partidos e políticos. Enfim, praticamente, todos os protagonistas do processo de restabelecimento da democracia, e até mesmo aqueles que haviam sustentado e se beneficiado da ditadura37 (LEHER, 2005c).

Também aqui, o termo passa a expressar uma visão dicotômica do Estado e da sociedade. A sociedade civil é então concebida como o “reino da pureza e da solidariedade”, como espaço de liberdade e democracia, e o Estado como o mal absoluto (COUTINHO, 2002, p. 34).

Segundo Leher (2005c), essa associação é fruto de uma operação ideológica habilmente urdida através da teorização das transições democráticas elaborada por Stepan e Guilhermo O’Donnell, e difundida no Brasil, por Fernando Henrique Cardoso. Na sua avaliação a teoria do autoritarismo,

[...] possibilitou a grande operação ideológica de centralização do campo teórico na polarização estatal/privado, deslocando o público. Desse modo, os termos em antípoda passaram a ser Estatal-autoritário x Privado-democrático. A democracia deveria ser buscada na sociedade civil. Não importa que empresários tenham sustentado e se beneficiado da ditadura (LEHER, 2005c, p. 143).

No contexto da “transição democrática”, sociedade civil foi associada à liberdade e aos direitos civis e o Estado identificado com o autoritarismo, com a burocracia e com a

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Na América Latina, os regimes militares no Chile, na Argentina e no Brasil não eliminaram todas as associações independentes do estado militar, nem a chamada “opinião pública” controlada por fortes grupos econômicos. O que foi destruído pela intervenção militar foram as organizações das camadas mais baixas, ou seja, os sindicatos operários, as associações dos camponeses, dos indígenas. Em todos os casos de golpes militares na América latina sua “função principal foi a eliminação radical de todas as atividades autônomas do povo”. MESCHKAT, Klaus. Uma critica a la ideologia de la “socied civil”. Disponível em http://www.forociudadano.com/ideas/MeschkatSociedadCivilCritica.htm, acesso março de 2006.

ineficiência. A teoria que deu sustentação à transição democrática no Brasil também consagrou o liberalismo como modelo de democracia, com isso, a transição democrática limitou-se às mudanças institucionais. Com isso, “nenhuma reforma de caráter econômico ou social que alterasse as relações de poder na direção de sua democratização foi posta em prática” (LEHER, 2005c, p. 144).

O conceito de sociedade civil tornou-se operacional tanto para a implantação no país da primeira geração de reformas neoliberais, no início da década de 1990, quanto para a implementação das novas recomendações dos organismos internacionais, particularmente, as do Banco Mundial para a América Latina, após a constatação do fracasso do neoliberalismo expresso na piora generalizada das condições sociais, na região, principalmente, do aumento acentuado da pobreza, do desemprego e da desigualdade econômica.

No contexto de reformulação do pensamento neoliberal é atribuído um papel ainda mais fundamental à sociedade civil, considerada um espaço de ajuda mútua, de solidariedade/responsabilidade social e de promoção da cidadania. Para a eficácia das políticas pós-neoliberais (da Terceira Via) é necessário que a sociedade civil exerça o controle público da esfera estatal, que implemente ações para prevenir a violência através da ação de grupos de auto-ajuda, estimule a família, e incentive um envolvimento cívico de indivíduos e grupos sociais, etc. É necessário reforçar o papel das organizações não governamentais, dos grupos de auto-ajuda, dos empresários, e do voluntariado na complementação e até mesmo na substituição das atividades do Estado.

Também é enfatizada a ampla participação social, com o envolvimento dos indivíduos nas decisões quanto às políticas públicas e o controle do Estado. Especialistas em desenvolvimento descobrem, que para o êxito dos programas e aperfeiçoamento dos governos é fundamental a participação, a consulta aos clientes e usuários, atribuindo centralidade aos planejamentos participativos. Em alguns casos, a participação passa a ser condição para aprovação e financiamento de projetos de desenvolvimento social (NAVARRO, 1999).

Além da participação da sociedade civil, a descentralização administrativa também passou a ser defendida, tornando-se mote do discurso democratizante tanto de setores progressistas, quanto de setores mais diretamente identificados com o ideário neoliberal.

Conforme anteriormente destacado, deriva da oposição Estado/sociedade civil a idéia de espaços públicos não-estatais. Na esteira dos projetos em discussão (neoliberal e pós- neoliberal) vale a pena destacar como essa concepção se apresenta em uma proposta concreta de reformulação do Estado no Brasil.

A noção de público não-estatal foi amplamente difundida no âmbito do Plano diretor da reforma do aparelho do Estado brasileiro elaborado pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado – MARE – presidido pelo ministro Bresser Pereira. A reforma do Estado consistia em transformar a administração pública burocrática em uma administração pública de tipo gerencial, cuja idéia central era obtenção de resultados a partir da descentralização, da delegação de autoridade e de competências, partindo de uma clara definição dos setores através dos quais o Estado operaria. Neste sentido, comporia o Estado moderno os seguintes setores: o núcleo estratégico, as atividades exclusivas, os serviços não- exclusivos e a produção de bens e serviços para o mercado.

O núcleo estratégico e as atividades exclusivas são propriamente o Estado, ou seja, aquilo que não pode ser transferido para a esfera privada. A produção de bens e serviços para o mercado é realizada pelas empresas estatais, passíveis de privatização, e os serviços não- exclusivos são tudo aquilo que o Estado provê (educação, saúde, cultura, pesquisa científica), mas que não envolvem o exercício de poder extroverso do Estado, podendo assim, também ser oferecidos pelo setor privado e pelo setor público não-estatal (BRESSER-PEREIRA, 1999).

Neste novo contexto, compete ao Estado financiar, em parte, e avaliar os serviços e atividades não exclusivas e competitivas do Estado por meio de contratos de gestão. O setor público não-estatal é a sociedade civil, entendida como um vasto conjunto de organizações sociais que são públicas porque estão voltadas para o interesse geral, mas não-estatais porque estão fora do aparelho estatal. O setor público não-estatal também é freqüentemente denominado terceiro setor.

Em síntese, o termo público não-estatal está associado a uma concepção de sociedade civil entendida como instância capaz de substituir o Estado em muitas de suas funções, particularmente, quanto ao provimento de políticas sociais. A expressão sociedade civil tem sido utilizada para designar qualquer tipo de associação voluntária e/ou para expressar a idéia de um espaço mais dinâmico e ágil em relação ao Estado.

O giro ideológico na idéia de sociedade civil foi bastante profundo. Para exemplificar essa mudança comparemos a noção apresentada como as concepções vigentes no curso do pensamento político dos últimos séculos, destacando o significado de sociedade civil desenvolvido por Gramsci.

Na sua versão clássica, sociedade civil (societas civilis) contrapõe-se a sociedade natural (societas naturalis). De Thomas Hobbes a Jean Jacques Rousseau, sociedade civil foi entendida como sinônimo de sociedade política e, portanto, de Estado. Para Rousseau,

sociedade civil é a sociedade civilizada, mas não necessariamente a sociedade política, que emerge com o Contrato Social. O significado moderno de sociedade civil tem em Hegel o seu fundador. Para Hegel, a sociedade civil é a esfera da vida ética interposta entre a família e o Estado. A mudança da sociedade civil para o Estado verifica-se quando as partes da sociedade, que nascem da dissolução da família (classes sociais), se unificam num conjunto orgânico, é o campo onde os indivíduos, como pessoas privadas, buscam a satisfação de seus interesses. Em Marx, sociedade civil é o espaço onde se dá as relações econômicas, “as relações materiais de vida”, as relações que caracterizam a estrutura de cada sociedade, ou “a base da estrutura social”. Mas a “sociedade burguesa” não somente reúne o modo “burguês” de produção, mas também as relações jurídicas e políticas. A sociedade civil é a sociedade capitalista, com todas as formações sociais que lhe são próprias (BOBBIO, 1998, p. 1209; SANTOS, 2000).

Partindo de Marx, Gramsci vê a sociedade civil como um momento de elaboração das ideologias e das técnicas de consenso. Sociedade civil é o lugar onde são gestados os diversos projetos hegemônicos, é o lugar onde se confrontam diferentes projetos de sociedade, até prevalecer um que determina a direção geral na economia, na política e na cultura. Não é apenas o território que a burguesia reservou para as sua iniciativas econômicas e para a estruturação da sua hegemonia no mundo moderno. Na sociedade civil, as classes subalternas também podem encontrar um espaço privilegiado para organizarem suas associações, articularem suas alianças, confrontarem seus projetos de sociedade e de política e disputarem o predomínio da hegemonia. É, portanto, o espaço decisivo onde as classes trabalhadoras podem aprender a travar lutas em diversas frentes para neutralizar o poder da classe dominante e promover a emancipação social e política das massas populares, universalizando os valores da liberdade, da responsabilidade e da participação, tornando obsoleta a função do Estado (SEMERARO, 1999, p. 131, 158).

Está aberta, assim, a possibilidade de que a ideologia das classes subalternas obtenha a hegemonia no interior de um ou vários aparelhos privados de hegemonia38, antes mesmo de terem conquistado o poder de Estado no sentido estrito e de tornarem-se classes dominantes.

A concepção de Gramsci contrasta profundamente com a visão de sociedade civil atualmente difundida (lugar da colaboração e da conciliação das classes). A dicotomia entre

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Para Gramsci a superestrutura é formada por duas esferas: a sociedade política que é composta pelos “aparelhos repressivos de Estado”, ou seja, pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência; e a sociedade civil, formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, pelos chamados “aparelhos privados de hegemonia”, que compreendem o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, os meios de comunicação, etc.

Estado e sociedade civil oculta a dominação e a coerção presentes na sociedade civil. Para Gramsci, sociedade civil é o Estado, é um momento do Estado. Nela existe luta de classes, ela é o terreno da luta de classes. Portanto, recuperar o seu sentido político é algo que se faz necessário e urgente (COUTINHO, 2002).

Sociedade civil não é “a extensão mecânica da cidadania política ou da vida democrática”, representa no mundo moderno uma nova forma de poder social que se formou com a transferência de muitas funções coercitivas que antes pertenciam ao Estado para a esfera privada. Não é “uma arena social organizada exclusivamente pelos bons valores ou pelos interesses justos, mas um terreno que também abriga interesses escusos, idéias perversas