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A distinção entre observadores e participantes

Capítulo II – A construção de normas conflitantes é um problema inerente ao

2.1. Normas jurídicas como construções do intérprete

2.1.2. A distinção entre observadores e participantes

Hans Kelsen e Herbert L. Hart, ao formularem suas teorias sobre o sistema jurídico, fazem uma importante distinção entre os sujeitos que interpretam o direito para aplicá-lo e aqueles que o fazem com a finalidade de descrevê-lo. Kelsen chama os primeiros de intérpretes autênticos e os segundos, de intérpretes não-autênticos.68 Hart, por outro lado, os denomina participantes e observadores, respectivamente.69

Com essa dicotomia, referidos autores pretendem demonstrar não apenas que o direito pode ser analisado sob dois pontos de vista, mas também que o resultado dessas análises necessariamente é diverso. Aqueles que interpretam o direito para aplicá-lo (participantes) produzem outras normas (outros textos prescritivos); os que o analisam para descrevê-lo (observadores) elaboram proposições descritivas.

De fato, não há dúvida quanto à divergência de propósitos entre os que participam do direito e aqueles que simplesmente o observam. Justamente por cumprirem funções distintas é que esses discursos em nada se confundem.70

68 Ao examinar o tema da interpretação, Kelsen assinala, logo de início, que “existem duas espécies de interpretação que devem ser distinguidas claramente uma da outra: a interpretação do Direito pelo órgão que o aplica, e a interpretação do Direito que não é realizada por um órgão jurídico, mas por uma pessoa privada e, especialmente, pela ciência jurídica.” (Teoria pura do direito, p. 388) Mais a frente, distingue essas interpretações nos seguintes termos: “A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. [...] Da interpretação através de um órgão aplicador do Direito distingue-se toda e qualquer outra interpretação pelo fato de não ser autêntica, isto é, pelo fato de não criar Direito.” (Op. cit., p. 394-395)

69 “[...] uma afirmação interna [...] manifesta o ponto de vista interno e é naturalmente usada por quem, aceitando a regra de reconhecimento e sem declarar o facto de que é aceite, aplica a regra, ao reconhecer uma qualquer regra concreta do sistema como válida. À segunda forma de expressão chamaremos afirmação externa, porque é a linguagem natural de um observador externo ao sistema que, sem aceitar ele próprio a regra de reconhecimento desse sistema, enuncia o fato de que outros a aceitam.” (O conceito de

direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 114).

70 “Adopta la perspectiva del participante quien en un sistema jurídico participa en una argumentación acerca de lo que en este sistema jurídico está ordenado, prohibido y permitido o autorizado. En el centro de la perspectiva del participante se encuentra el

Aqueles que interpretam o direito para aplica-lo, assim como os observadores, também produzem um texto no qual formulam o sentido por eles construído a partir da interpretação do texto prescritivo. Melhor dizendo: também formulam, em palavras, o juízo condicional que construíram a partir dos “enunciados interpretados”. A semelhança entre estas atividades, porém, termina aí.

Em primeiro lugar, verifica-se que, diferentemente daquele que observa o sistema, o participante, quando coloca em palavras a norma jurídica que construiu (“enunciado interpretante”), produz um texto também com força prescritiva. Significa dizer: a interpretação por ele realizada será vinculante para algumas pessoas ou para todos, caso se trate de texto com eficácia “erga omnes”.

Vejamos um exemplo. De acordo com o art. 135, III,71 do Código Tributário Nacional, os diretores e gerentes das pessoas jurídicas “são pessoalmente responsáveis pelos créditos tributários correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”.

juez. Cuando otros participantes, por ejemplo, juristas, abogados o ciudadanos interesados, exponen argumentos en pro o en contra de determinados contenidos del sistema jurídico, entonces, en última instancia, se refieren a cómo hubiera decidido un juez si hubiera querido decidir correctamente. [...] Adopta la perspectiva del obsevador quien no pregunta cuál es la decisión correcta en un determinado sistema jurídico sino cómo se decide de hecho en un determinado sistema jurídico. Un ejemplo de un observador tal es el de Norbert Hoerster: un americano blanco casado con una mujer de color desea viajar a Sudáfrica en la época de la vigencia de las leyes del apartheid y reflexiona acerca de los detalles jurídicos de su viaje.” (ALEXY, Robert. El concepto y

la validez del derecho. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 31)

71 Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado. (BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 27 out. 1966. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5172.htm)

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, sedimentou entendimento no sentido de que os sócios com poderes de gerência não podem ser responsabilizados nos termos deste enunciado pelo simples não pagamento de tributo pela pessoa jurídica:

[...] É igualmente pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que a simples falta de pagamento do tributo não configura, por si só, nem em tese, circunstância que acarreta a responsabilidade subsidiária do sócio, prevista no art. 135 do CTN. É indispensável, para tanto, que tenha agido com excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto da empresa (...). 3. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. Acórdão sujeito ao regime do art. 543-C do CPC e da Resolução STJ 08/08. (REsp 1101728/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 11/03/2009, DJe 23/03/2009) Ou seja, com base no enunciado do art. 135, III, do CTN, construiu a seguinte norma:

Essa interpretação, antes de ser positivada pelo STJ, já era defendida pela doutrina. No entanto, a despeito da força dos argumentos apresentados pelos juristas para defender tal posicionamento, é certo que seus textos são apenas descritivos, ou seja, não têm força para disciplinar condutas.

Diversa, porém, é a força atribuída ao precedente do STJ. Por se tratar de sentido construído por um participante do sistema, a mencionada interpretação passa a ter força prescritiva, pelo menos entre as partes do processo no qual foi positivada.

Esta, no entanto, não é a única diferença entre o enunciado produzido pelos participantes do sistema e aquele produzido pelos seus observadores.

Voltemos ao exemplo mencionado. Quando o STJ interpretou o art. 135, III, do CTN, não o fez apenas para positivar a norma jurídica que construiu a partir deste enunciado. A finalidade era, também, decidir ou não pela sua aplicação ao caso concreto.

Ao examinar a íntegra do acórdão,72 verifica-se que foi dado parcial provimento ao recurso interposto pelo sócio-gerente de modo a afastar a responsabilidade que lhe foi imputada pelos débitos da pessoa jurídica. Foi produzido, assim, um enunciado que, interpretado, dá ensejo à construção de uma nova norma jurídica, segundo a qual:

Resta claro, portanto, que o participante, além de produzir um “enunciado interpretante” (prescritivo), produz também um novo “enunciado interpretado”. Melhor dizendo, um novo enunciado passível de interpretação para fins de construção de uma nova norma jurídica.

Sistematizando o que acabamos de expor:

(i) Participante: ao interpretar o enunciado prescritivo (“enunciado interpretado”), produz um “enunciado interpretante”, com teor prescritivo, no qual positiva a norma que construiu a partir deste suporte físico, e um novo

72 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1101728/SP. Primeira Seção, Rel.

“enunciado interpretado” (ou a interpretar), o qual servirá de base para a construção de uma nova norma;

(ii) Observador: ao interpretar o enunciado prescritivo (“enunciado” interpretado”), também produz um “enunciado interpretante”), mas com força exclusivamente descritiva. É importante ressaltar, por fim, que a força prescritiva da interpretação realizada pelo participante do sistema, além de diferenciar sua atividade daquela realizada pelo observador, é também de extrema relevância para fins de aplicação desta decisão aos casos análogos.

Quando estamos diante de um precedente com força vinculante (forte ou fraca),73 é imprescindível determinar qual a norma jurídica construída pelo Tribunal (enunciado interpretante) a partir do exame dos textos prescritivos discutidos nos autos.

Isso, porém, somente é possível após a interpretação do “enunciado interpretante” positivado pelo Tribunal Superior. Ora, por se tratar, também, de um texto, estará sujeito à interpretação e é neste ponto que surgirão divergências quanto à sua aplicação ou não ao caso concreto. É o que veremos mais a frente.

2.2. Da multiplicidade de sentidos que podem ser atribuídos aos textos