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Os pré-conceitos que influenciam a atividade interpretativa

Capítulo II – A construção de normas conflitantes é um problema inerente ao

2.2. Da multiplicidade de sentidos que podem ser atribuídos aos textos jurídicos

2.2.2. Os pré-conceitos que influenciam a atividade interpretativa

É imprescindível ressaltar, também, que a interpretação do texto escrito é sobremaneira influenciada pela historicidade do sujeito que a realiza. Ora, o intérprete não pode optar pela adesão ou não aos pré-

86 ECO, Umberto. Tratado geral da semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 40. 87 Como assevera Alf Ross: “A linguagem pode manifestar-se como uma série de formas

auditivas ou visuais (fala e escrita). O significado atribuído a estas formas é claramente convencional. Nada impediria que a palavra gato fosse empregada para designar o animal doméstico de quatro patas que faz ‘uau, uau’ e cão para designar o que faz ‘miau’.” (Direito e justiça, p. 140)

88 “En sínteses, el mundo ‘real’ está determinado […] por los hábitos del lenguage

comunitario que orientam nuestra interpretación de los hechos.” (SCAVINO, Dardo. La

filosofia actual. Pensar sin certezas. Buenos Aires: Paidós, 2007, p. 31)

89 “[...] há circunstância em que as palavras possuem perfeita aplicabilidade à linguagem

constitutiva do real, da mesma forma que há casos em que a inaplicabilidade da palavra é hialina, é a chamada ‘zona de certeza das palavras’. Mas existem situações outras nas quais a linguagem da realidade social não se subsome perfeitamente ao conceito da palavra, tornando incerta sua aplicabilidade: é a chamada ‘zona de penumbra’”. (MOUSSALLÉM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário, São Paulo: Noeses, 2006, p. 34)

conceitos e à pré-compreensão que lhe é inerente. Trata-se de condições de sua existência.90

Como consequência, nenhuma interpretação será amparada unicamente nos textos prescritivos. Além deles, servirá também de parâmetro para a construção das normas jurídicas também a ideologia do intérprete. É o que preleciona Roque Antonio Carrazza:

Realmente, a partir dos enunciados do direito positivo, o exegeta, valorando-os, constrói as normas jurídicas. Não se nega que estas tomam como ponto de partida os textos do direito positivo, porém seu conteúdo vem discernido pelo intérprete, que se vale, para tanto, de sua própria ideologia, isto é, de sua pauta de valores. [...]91

Diante disso, e tendo em vista a multiplicidade de contextos nos quais os intérpretes podem estar inseridos, uma mesma palavra (ou mensagem) poderá suscitar a construção de sentidos dos mais diversos:

[...] o cruzamento das circunstâncias e das pressuposições entrelaça-se com o cruzamento dos códigos e dos subcódigos, fazendo de cada mensagem ou texto uma FORMA VAZIA a que se podem atribuir vários sentidos possíveis. A mesma multiplicidade dos códigos e a indefinida variedade dos contextos e das circunstâncias faz com que a mesma mensagem possa ser decodificada de diversos pontos de vista e com referência a diversos sistemas de convenções. A denotação de base pode ser entendida como o emitente queria que fosse entendida, mas as conotações mudam simplesmente porque o destinatário segue percursos de leitura diversos dos previstos pelo emissor (ambos os percursos sendo autorizados pela árvore componencial a que ambos se referem).92

Em síntese, verificamos que o intérprete da lei, ao construir a norma jurídica, deve levar em consideração o uso das palavras empregadas pelo legislador. Afinal, se admitirmos que a interpretação não encontra

90 “[...] lejos de construir um obstáculo para un pensamiento verdadero, aquelles pre-juicios

son, según los hermeneutas, ‘las condiciones de posibilidad de la experiencia’, la própria ‘verdad’ entendida como apertura originaria al mundo de la vida, al lenguage de la comunidad, a un sistema de valores y creencias compartidas.” (Dardo Scavino, La

filosofia actual. Pensar sin certezas, p. 48)

91 Reflexões sobre a obrigação tributária, p. 15. 92 Teoria geral de semiótica, p. 127.

quaisquer limites, “seremos forçados a concluir que toda a expressão poderia significar qualquer coisa, independentemente do uso corrente da língua e de toda a experiência linguística”.93

Isso, todavia, não elimina completamente as divergências na atribuição de sentido, pelo simples fato de que o uso de um termo pode variar a depender do contexto em que o intérprete está imerso. Luis Alberto Warat exemplifica a questão da seguinte forma:

Toda expressão possui um número considerável de implicações não manifestas. A mensagem nunca se esgota na significação de base das palavras empregadas. O sentido

gira em torno do dito e do calado. Desta forma, o êxito de uma comunicação depende de como o receptor possa interpretar o sentido latente. A forma gramatical e o significado de base, por vezes, em lugar de ajudar na busca do sentido latente, servem para encobri-lo.94

Não são raros, portanto, os casos em que os aplicadores, ao interpretarem os textos normativos, constroem normas diversas, aplicando- as de modos igualmente distintos.

Vejamos um exemplo: a Lei nº 9.718/98, ao instituir a Contribuição ao PIS e a COFINS, prescreve, dentre outras coisas, o seguinte:

❏ As contribuições para o PIS/PASEP e a COFINS, devidas

pelas pessoas jurídicas de direito privado, serão calculadas com base no seu faturamento (art. 2º).

❏ O faturamento a que se refere o art. 2o compreende a receita

bruta da pessoa jurídica, assim entendida como a totalidade

93 Thatiane dos Santos Piscitelli, Os limites à interpretação das normas tributárias, p. 72. 94 O direito e sua linguagem. 2ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p.

das suas receitas (art. 3º c/c art. 12 do Decreto-lei nº 1.598/77).

Examinando estes dois excertos (em conjunto com outros que compõem referida lei) e construindo o sentido dos termos empregados pelo legislador, podemos concluir que: (i) o fato que dá ensejo ao pagamento destas contribuições é auferir faturamento; (ii) o sujeito passivo destas contribuições é a pessoa jurídica que aufere esse faturamento; e (iii) a base de cálculo do tributo é o faturamento, assim entendido como a receita bruta da pessoa jurídica.

Reunindo estes enunciados num juízo condicional, de modo a construir a norma que institui referidas contribuições, temos o seguinte:

Hipótese Consequência

Dado o fato de auferir receita

Deve ser a obrigação da pessoa jurídica de pagar para a União um percentual sobre a totalidade da receita

auferida

Agora, então, é o momento de analisar esta norma em conjunto com outras regras jurídicas, a ela relacionadas.

Esta norma mantém, por exemplo, relação de coordenação com a regra que estatui uma penalidade em caso de não pagamento do tributo. Esse juízo condicional, construído a partir da interpretação do art. 6195 da Lei nº 9.430/96, pode ser assim sintetizado:

95 Art. 61. Os débitos para com a União, decorrentes de tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal, cujos fatos geradores ocorrerem a partir de 1º de janeiro de 1997, não pagos nos prazos previstos na legislação específica, serão acrescidos de multa de mora, calculada à taxa de trinta e três centésimos por cento, por dia de atraso. (Vide Decreto nº 7.212, de 2010)

§ 1º A multa de que trata este artigo será calculada a partir do primeiro dia subseqüente ao do vencimento do prazo previsto para o pagamento do tributo ou da contribuição até o dia em que ocorrer o seu pagamento.

Hipótese Consequência

Dado o fato de não recolher a contribuição sobre a receita bruta

auferida

Deve ser a obrigação da pessoa jurídica de pagar para a União multa no percentual de 0,33% sobre o valor do tributo, por dia de atraso, limitada a

20%.

A regra-matriz de incidência das referidas contribuições mantêm, também, relação de subordinação com as normas constitucionais que regulam a instituição e a cobrança de tributos. Mais especificamente, está subordinada à norma de competência construída com suporte no art. 195, I, da Constituição da República, o qual, à época em que a Lei nº 9.718/98 foi editada, possuía a seguinte redação:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

I – dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro;

Ao interpretar referido enunciado, não resta dúvida de que o legislador ordinário conferiu ao termo faturamento o sentido de “totalidade das receitas da pessoa jurídica”. Ou seja, construiu norma de competência segundo a qual estava autorizado a instituir contribuição sobre todas as receitas da pessoa jurídica.

Tomando tal interpretação como referência, a conclusão seria pela constitucionalidade da norma que instituiu as contribuições (construída com suporte na Lei nº 9.718/98), pois a base de cálculo destes tributos era exatamente aquela autorizada pela Constituição. Em outros termos, não haveria qualquer conflito entre as normas construídas:

Ao interpretar o texto constitucional, porém, o Supremo

Tribunal Federal atribuiu outro sentido ao termo faturamento, construindo norma de competência que autorizava a instituição de contribuição apenas sobre as “receitas de vendas de mercadorias ou de prestação de serviços”.

Concluiu, assim, que haveria um conflito entre a norma que instituiu o tributo e a CF e, por isso, declarou-a inconstitucional, impedindo a produção de efeitos:

CONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE - ARTIGO 3º, § 1º, DA LEI Nº 9.718, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1998 - EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20, DE 15 DE DEZEMBRO DE 1998. O sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente. TRIBUTÁRIO - INSTITUTOS - EXPRESSÕES E VOCÁBULOS - SENTIDO. A norma pedagógica do artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados expressa ou implicitamente. Sobrepõe- se ao aspecto formal o princípio da realidade, considerados os elementos tributários. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL - PIS

- RECEITA BRUTA - NOÇÃO -

INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ARTIGO 3º DA LEI Nº 9.718/98. A jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional o § 1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/98, no que ampliou o conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada.96

Como se percebe, a introdução de uma norma em conflito com a Constituição da República decorreu do fato de não existir um sentido inerente ao texto, ou seja, pelo fato de a norma não ser algo a ser descoberto pelo intérprete, mas sim um sentido a ser construído a partir do exame desse suporte físico.

Mas não é só. Tal conflito decorre, também, do sentido atribuído ao termo “faturamento”. A prevalecer a interpretação conferida pelo legislador ordinário, não haveria que se falar em conflito. Porém, diante do sentido atribuído pelo Supremo Tribunal Federal ao referido

96 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 346084. Tribunal Pleno, Rel. Min. Ilmar

termo, não se pode negar a existência de conflito entre norma superior e norma inferior, o qual não é tolerado pelo sistema jurídico e deve, portanto, ser eliminado. A ideia é assim sintetizada por Paulo de Barros Carvalho:

A norma jurídica é exatamente o juízo (ou pensamento) que a leitura do texto provoca em nosso espírito. Basta isso para nos advertir que um único texto pode originar significações diferentes, consoante as diversas noções que o sujeito cognoscente tenha dos termos empregados pelo legislador. Ao enunciar os juízos, expedindo as respectivas proposições, ficarão registradas as discrepâncias de entendimento dos sujeitos, a propósito dos termos utilizados.97

Em síntese: a produção de normas conflitantes, e a própria identificação do conflito, decorrem não só do fato de a norma ser construída pelo intérprete, mas também em razão da multiplicidade de sentidos que podem ser conferidos aos termos empregados pelo legislador (constituinte ou infraconstitucional) na confecção dos suportes físicos que servirão de substrato para a construção das normas.

97 Curso de direito tributário, p. 36.