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Capítulo III – Dos conflitos que interessam ao direito

3.3. Conflitos de regras X conflitos de princípios

É comum, na doutrina, a distinção entre regras e princípios, baseada no modo como tais normas disciplinam as condutas dos sujeitos.

Como destaca Roque Antonio Carrazza, princípio é um “enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadros do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam”.125

Karl Larenz,126 de igual forma, afirma que os princípios são pensamentos directivos de uma regulação jurídica ou possível e que se diferenciariam das regras pelo fato de não serem suscetíveis de aplicação, uma vez que não são estruturados num juízo condicional (hipótese + consequência).

Paulo de Barros Carvalho, por sua vez, utiliza o vocábulo “princípio” para designar limites objetivos ou valores, sendo o grau de objetividade das proposições que veiculam o critério para diferenciá-los127.

125 Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 39.

126 “Os princípios jurídicos não têm o carácter de regras concebidas de forma muito geral,

às quais se pudessem subsumir situações de facto, igualmente de índole muito geral. Carecem antes, sem exceção, de ser concretizados.” (Metodologia da ciência do direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 347)

127 CARVALHO, Paulo de Barros. “O princípio da segurança jurídica em matéria tributária”. In Questões controvertidas em matéria tributária, p. 43. Na mesma linha é o entendimento de Tácio Lacerda Gama, que define o vocábulo princípio como “enunciado normativo que integra a estrutura de uma norma de competência, compondo-lhe o sentido, seja no antecedente, seja no conseqüente, veiculando valores ou limites objetivos, ampliando ou restringindo os seus âmbitos de validade”. (Contribuição de

O significado de um valor está condicionado à subjetividade do intérprete128, sendo um juízo de preferibilidade de cunho subjetivo; o conteúdo dos limites objetivos, em contrapartida, é construído a partir de parâmetros bem demarcados, objetividade esta que permite sejam identificados de plano os casos de violação.

Sob esta perspectiva, seja o princípio um valor (como o da segurança jurídica), seja ele um limite objetivo (como o da anterioridade ou da legalidade), não poderíamos qualifica-lo como um juízo condicional e, portanto, como uma regra.

Parece-nos, porém, que os princípios, enquanto normas em sentido amplo, sempre terão, como destaca Tácio Lacerda Gama,129 a função de integrar as normas de competência e, precipuamente, de guiar o hermeneuta na compreensão dos enunciados prescritivos, em maior ou

128 Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho: “Sob o aspecto de camada de linguagem prescritiva de condutas, o direito positivo é uma construção do ser humano. Neste sentido, dista de ser um dado simplesmente ideal, não lhe sendo aplicáveis, também, as técnicas de investigação do mundo natural. […] Os fatos jurídicos, quer os previstos nos antecedentes das normas, quer os prescritos na fórmula relacional dos conseqüentes, apresentam-se na forma de fenômenos físicos (relações de causa e efeito) mais o sentido, isto é, o fim jurídico que os permeia. Sem a significação jurídica que presidiu a escolha do evento e inspirou a regulação da conduta, não há que se falar em fatos jurídicos e relações jurídicas. (…). Segue afirmando que, por esta razão, “quem se proponha a conhecer o direito positivo não pode aproximar-se dele na condição de sujeito puro, despojado de atitudes axiológicas, como se estivesse perante um fenômeno da natureza ou uma equação matemática”. Adverte, entretanto, que isto não significa compor um discurso científico com inclinações ideológicas, devendo furtar-se o intérprete de realizar quaisquer julgamentos sobre as normas do ordenamento, devendo tão somente “compreendê-las para bem descrevê-las”. (“O Sobreprincípio da Segurança Jurídica e a Revogação de Normas Tributárias”. In Crédito-prêmio de IPI: estudos e pareceres III, p. 3.)

129 Quando afirmamos que os princípios têm a função de compor a regra de competência, queremos com isso destacar que eles, na qualidade de valores ou limites objetivos, orientam a atividade da pessoa ou órgão dotada de competência, na produção dos enunciados prescritivos. Com isso acatamos a posição defendida por Tácio Lacerda Gama, para quem “princípios tributários são proposições prescritivas que integram a norma de competência, condicionando a forma e a matéria das normas que prescrevem, direta ou indiretamente, a instituição, a arrecadação e a fiscalização de tributos. (Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade, p. 268-269)

menor grau. Integram, portanto, uma regra jurídica, enquanto juízo condicional.

Não faria sentido, portanto, a distinção entre regras e princípios, pois todos concorreriam para a construção de um juízo condicional que disciplina condutas.

A construção desta regra, porém, é tarefa do intérprete130 e, nesta atividade, pode se deparar com conflitos entre princípios. Melhor dizendo, o aplicador pode encontrar dificuldades para determinar qual o princípio que selecionará para compor o juízo condicional a aplicar.

Vejamos um exemplo. Por força do princípio da igualdade, é desejável que pessoas em idêntica situação sejam tratadas da mesma forma também pelo Poder Judiciário. Esta é uma das razões pelas quais, uma vez declarada constitucional uma norma pelo Supremo Tribunal Federal em controle concentrado, deve esta norma ser aplicada a todos os casos idênticos (efeito vinculante erga omnes).

Surge um problema, porém, quando há decisões, já transitadas em julgado, reconhecendo a inconstitucionalidade da mesma norma. Afinal, se prevalecer a proteção dada à coisa julgada (art. 5º, XXXVI,131 da CR),

130 Esta ideia já foi devidamente explicada nos capítulos precedentes. Vale, porém,

mencionar as palavras de Humberto Àvila a respeito do assunto: “De um lado, a compreensão do significado como o conteúdo conceptual de um texto pressupõe a existência de um significado intrínseco que independa do uso ou da interpretação. Isso, porém, não ocorre, pois o significado não é algo incorporado ao conteúdo das palavras, mas algo que depende precisamente de seu uso e interpretação, como comprovam as modificações de sentidos dos termos no tempo e no espaço e as controvérsias doutrinárias a respeito de qual o sentido mais adequado que se deve atribuir a um texto legal.” (ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos

princípios jurídicos. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 31)

131 Art. 5º. [...] XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a

coisa julgada;

(BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

em detrimento do princípio da igualdade, não se poderia admitir a aplicação da referida norma às pessoas envolvidas nestes processos.

Qual seria, então, o modo mais adequado, tendo em vista os princípios citados, de construir o juízo condicional que atribui efeito vinculante erga omnes às decisões proferidas pelo STF? A resposta para este problema depende, necessariamente, da resolução do conflito entre princípio da segurança jurídica (que protege a coisa julgada) e o princípio da igualdade.132

Para solucionar esta espécie de conflito, Robert Alexy133 afirma ser necessário considerar o grau de vinculação dos princípios quando comparados às regras (juízos condicionais): os princípios, diferentemente das regras, estatuem deveres que podem ou não ser cumpridos, de acordo com as situações facticas e jurídicas.

132 Essa matéria já foi decidida pelo STF na sistemática da repercussão (RE 730462).

Basicamente, a E. Corte decidiu que os efeitos vinculantes de suas decisões em controle concentrado não significam impossibilidade de aplicação das decisões transitadas em julgado que aplicaram orientação contrária a que foi por ela adotada. Seria indispensável, neste caso, a propositura de ação rescisória para alterar a coisa julgada e, assim, adequá- la ao que foi decidido no controle concentrado.

Faz, porém, uma ressalva no que diz respeito às relações de trato continuado, para decidir que, em relação aos fatos ocorridos posteriormente à publicação da decisão proferida em controle concentrado, não se aplica a coisa julgada automaticamente. Ou seja, para estes fatos geradores, a decisão do STF tem efeito vinculante e prevalece sobre a decisão transitada em julgado.

(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE nº 730462. Tribunal Pleno, Rel. Min. Teori Zavascki, 09 set. 2015)

133 “[...] El punto decisivo para la distinción entre reglas y princípios es que los princípios

son mandatos de optimización mientras que las reglas tienen el carácter de mandatos

definitivos. En tanto mandatos de optimización, los princípios son normas que ordenan que algo sea realizado en la mayor medida posible, de acuerdo con las possibilidades jurídicas y fácticas. Esto significa que pueden ser satisfechos en grados diferentes y que la medida ordenada de su satisfacción depende no sólo de las possibilidades fácticas sino jurídicas, que están determinadas no sólo por reglas sino también, essencialmente, por los princípios opuestos. Esto último implica que los princípios son susceptibles de ponderación y, además, la necesitan. La ponderación es la forma de aplicación del derecho que caracteriza los princípios. En cambio, las reglas son normas que siempre o bien son satisfechas o no lo son.” (El concepto y la validez del derecho. 2ª ed. Barcelona: Gedisa, 2004, p. 162)

Como consequência, o conflito entre princípios significaria tão-somente uma colisão de valores que não se resolveria mediante a anulação de um deles – como no caso dos conflitos entre regras – mas sim com um juízo de preferência por um ou outro (ponderação).134

Parece-nos, porém, que tal regra somente se aplica quando estivermos diante de princípios que positivam valores, não quando positivam limites objetivos.

Ora, a Constituição da República, quando prevê o princípio da legalidade no seu art. 5º, II,135 certamente está tratando de um limite objetivo, sobre o qual não se admite um “juízo de preferência”. Significa dizer: não está o intérprete autorizado a desconsiderá-lo. O mesmo se verifica em relação ao princípio da anterioridade previsto no art. 150, I,136 da CF.

Quando tratamos de valores, aí sim tem sentido em falar num juízo de ponderação, pois, como assevera Humberto Àvila, a aplicação de um princípio, enquanto valor, está estritamente relacionada ao elemento finalístico.

De fato, o autor afirma que a diferença entre princípios e regras está estritamente relacionada ao modo como são aplicados. Enquanto à aplicação das regras depende da subsunção da ocorrência factual àquilo que prevê a hipótese normativa, a aplicação dos princípios depende de uma

134 El concepto y la validez del derecho, p. 38-40.

135 Art. 5º. [...] II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em

virtude de lei;

(BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm)

136 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

(BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:

avaliação do estado de coisas ante aos fins que o princípio quer ver atingido.137

Ora, se a interpretação e aplicação dos princípios leva em consideração elementos finalísticos, certamente poderá o intérprete, num caso de conflitos entre princípios, ponderar sobre qual o fim que, no seu entender, é mais importante e deve ser buscado naquele específico caso.

É preciso ressaltar, por fim, que concordamos com Humberto Ávila quando afirma que “em alguns casos as regras entram em conflito sem que percam a sua validade e a solução para o conflito depende da atribuição de peso maior a uma delas”.138 Ou seja, do mesmo modo que os conflitos entre princípios enquanto valores, também os conflitos entre regras poderiam ser solucionados por outros meios que não apenas mediante a anulação de uma delas.

Exemplo disso se verifica, por exemplo, quando a Administração Pública constitui um crédito tributário por meio do lançamento, imputando a um sujeito passivo o dever de pagar o tributo e, ato contínuo, o Poder Judiciário suspende a exigibilidade do referido crédito, permitindo o não cumprimento do referido dever.

Trata-se, evidentemente, de normas conflitantes, pois enquanto uma obriga o contribuinte a pagar o tributo, a outra permite que não realize tal pagamento. Contudo, esta situação de conflito não implica a anulação de quaisquer destas regras. Pelo contrário, este conflito se resolve

137 “[...] Com efeito, como as regras consistem em normas imediatamente descritivas e

mediatamente finalísticas, a justificação da decisão de interpretação será feita mediante avaliação de concordância entre a construção conceitual dos fatos e a construção conceitual da norma. Como os princípios se constituem em normas imediatamente finalísticas e mediatamente de conduta, a justificativa da decisão de interpretação será feita mediante avaliação dos efeitos da conduta havida como meio necessário à promoção de um estado de coisas posto pela norma como ideal a ser atingido.” (Teoria

dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p. 75)

mediante a atribuição de um peso maior a uma delas – aquela editada pelo Poder Judiciário – baseado, é claro, nas regras do próprio sistema.

Em conclusão, podemos afirmar que o conflito entre princípios, quando estes positivam valores, diferem dos conflitos entre normas porque trata-se de normas que impõem a busca a certas finalidades que, estas sim, podem colidir.

Em termos mais diretos: enquanto o conflito entre regras está estritamente relacionado ao modo como regulam as condutas intersubjetivas – proibindo, permitindo ou obrigando determinadas pessoas, em condições específicas de espaço e tempo –, o conflito entre princípios é um problema de fins a serem buscados.

O modo de resolução dos conflitos entre princípios e regras, porém, se assemelha. É verdade que uma antinomia entre princípios, quando solucionada, não implica retirada de um deles do nosso sistema. O mesmo, porém, pode se verificar quando identificarmos conflitos entre regras, como já demonstramos.

Capítulo IV – Dos critérios existentes no sistema para