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Teorias sobre a incidência/aplicação das normas jurídicas

Capítulo I – Direito positivo e a movimentação das estruturas normativas

1.3. A aplicação das normas jurídicas

1.3.1. Teorias sobre a incidência/aplicação das normas jurídicas

Tradicionalmente, a doutrina defende que aplicação e incidência são conceitos distintos: a incidência da norma ocorreria automática e infalivelmente após a ocorrência de uma situação, no mundo da vida, que se enquadra na hipótese prevista na lei como apta a desencadear consequências jurídicas. Em outras palavras: no momento em que se verifica um acontecimento que preenche as características descritas no antecedente de uma norma jurídica (suporte fáctico),30 este é por ela juridicizado, desencadeando os efeitos correlatos.31

29 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, p. 261.

30 O elemento sobre o qual incide a regra jurídica é denominado suporte fáctico por Pontes de Miranda: “O suporte fáctico (Tatbestand) da regra jurídica, isto é, aquêle fato, ou grupo de fatos que o compõe, e sobre o qual a regra jurídica incide, pode ser da mais variada natureza [...].” (Tratado de direito privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1970, p. 19).

31 Pontes de Miranda, ao tratar dos “fatos” (suporte fáctico) sobre os quais incidem as regras jurídicas, não se preocupa em distinguir os meros acontecimentos (evento) e sua descrição em linguagem social (fato social). A questão é por ele tratada nos seguintes termos: “Quando se fala de fatos alude-se a algo que ocorreu, ou ocorre, ou vai ocorrer. O mundo mesmo, em que vemos acontecerem os fatos, é a soma de todos os fatos que ocorreram e o campo em que os fatos futuros vão se dar.” (Tratado de direito privado.

Tomo I, p. 3). Por conta disso, ao explicar sua teoria, optamos por utilizar a expressão “acontecimento social”, sem nos preocupar em distinguir a simples ocorrência e sua descrição em linguagem, já que tal distinção não é feita pelo próprio autor.

Já a aplicação ocorreria num momento posterior, de modo a transpor para o mundo jurídico, mediante linguagem jurídica, a incidência ocorrida anteriormente.32

Em oposição a esta teoria, há os que defendem que incidência e aplicação são conceitos sinônimos, pois partem da premissa de que nada existe para o sistema jurídico antes da sua formalização em linguagem jurídica, de modo que o fato ocorrido somente existiria no sistema jurídico e, portanto, estaria apto a desencadear as consequências correlatas, quando devidamente constituído na linguagem competente para atribuir-lhe este poder.33

O plano do direito positivo, nesta concepção, é sintaticamente fechado, permitindo o ingresso de elementos exteriores (fatos sociais, econômicos etc) apenas quando relatados em linguagem competente, significa dizer, no código habilitado previamente pelo sistema.34

32 “A incidência da lei, pois que se passa no mundo dos pensamentos e nele tem de ser

atendida, opera-se no lugar, tempo e outros “pontos” do mundo, em que tenha de ocorrer, segundo as regras jurídicas. É, portanto, infalível. [...] A incidência ocorre para todos, pôsto que não a todos interesse: os interessados é que têm de proceder, após ela, atendendo-a, isto é, pautando de tal maneira a sua conduta que essa criação humana, essencial à evolução do homem e à sua permanência em sociedade, continue a existir. (F. C. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado. Tomo I, p. 16)

33 “[...] é importante dizer que não se dará a incidência se não houver um ser humano

fazendo a subsunção e promovendo a implicação que o preceito normativo determina.

As normas não incidem por força própria. Numa visão antropocêntrica, requerem o homem, como elemento intercalar, movimentando as estruturas do direito, extraindo de normas gerais e abstratas outras gerais e abstratas ou individuais e concretas e, com isso, imprimindo positividade ao sistema, quer dizer, impulsionando-o das normas superiores às regras de inferior hierarquia, até atingir o nível máximo de motivação das consciências e, dessa forma, tentando mexer na direção axiológica do comportamento intersubjetivo [...].” (CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: fundamentos jurídicos da

incidência. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 11)

34 Como assevera Lourival Vilanova: “a norma jurídica, geral e abstrata (generalidade e abstrateza, que não é de todas as normas), não se realiza, i.e., não passa do nível conceptual para o domínio do real-social, sem o fato que lhe corresponde, como suporte

fáctico de sua hipótese fáctica. Sem a fattispecie concreta correspectiva à fattispecie abstrata.” (Causalidade e relação no direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 144)

Portanto, para que um fato possa ser qualificado como jurídico, não basta que possua as características descritas na hipótese normativa. É necessário que seja descrito em linguagem jurídica, ingressando no ordenamento jurídico positivo, de forma a produzir as consequências correlatas. Enquanto não houver o relato em linguagem competente, nada existe para o mundo do direito e, como consequência, nenhum efeito de ordem jurídica é constatado:

Como já deixamos consignado em trabalho anterior,35 entendemos que, sob a perspectiva daquele que está dentro do mundo jurídico – participante do sistema – o mais adequado seria falar em incidência e aplicação como conceitos sinônimos, na medida em que, para estas pessoas, o que não está relatado na linguagem do direito não tem relevância para o mundo jurídico.

Num caso de homicídio, por exemplo: o fato de alguém matar outra pessoa, no mundo do ser, não significa necessariamente que tal acontecimento será transposto para o mundo jurídico. Se, no processo penal, não forem apresentadas provas, legitimadas pelo direito, aptas a comprovar que o acusado de fato matou aquela pessoa, ele será inocentado, de modo que, no mundo jurídico, ele não terá matado ninguém.

De igual forma, não tem sentido falar em incidência da norma constitucional que delimita uma competência tributária antes que seja introduzida no sistema uma lei nela fundamentada.

A Constituição Federal, por exemplo, confere à União a competência para instituir um imposto sobre grandes fortunas (art. 153, VII).36 Este tributo, porém, ainda não foi instituído, a despeito dos Projetos

35 FIGUEIREDO, Marina Vieira de. Lançamento tributário: revisão e seus efeitos. 1ª ed. São Paulo: Noeses, 2014, p. 47-49.

36 Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: [...]

de Lei já elaborados pelo Poder Legislativo.37 Não se pode, assim, afirmar que esta norma constitucional incidiu ou foi aplicada.

Neste contexto, não nos parece ter sentido falar em incidência como ocorrência anterior à aplicação. Sob o ponto de vista do ordenamento jurídico, os acontecimentos sociais são simples eventos, sem qualquer relevância para o direito enquanto não forem constituídos em linguagem jurídica própria.38 Não produzirão, portanto, quaisquer efeitos dentro desse sistema, ou seja, não darão ensejo a relações jurídicas, salvo quando relatados em linguagem competente.

1.3.2. Subsunção como elemento indispensável para a