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Insuficiência de critérios para a solução das antinomias

Capítulo IV – Dos critérios existentes no sistema para eliminação de conflitos

4.3. Insuficiência de critérios para a solução das antinomias

Nos itens precedentes analisamos os critérios comumente eleitos para a solução de antinomias, bem como o modo de resolução de conflitos entre estes critérios nas hipóteses em que é possível a aplicação de mais de um deles.

Há, porém, situações em que não é possível a utilização de quaisquer dos critérios mencionados para a resolver a antinomia entre

normas. Tal hipótese se verifica quando estamos diante de normas contemporâneas, pertencentes à mesma hierarquia e igualmente gerais ou especiais.

Exemplo dessa situação se dá justamente quando há conflito na aplicação de precedentes vinculantes dos Tribunais Superiores. Tal conflito ocorre porque, a partir de uma mesma decisão, são construídas normas de mesma hierarquia, com base em suporte físico que ingressou no ordenamento no mesmo momento e igualmente gerais, mas cuja aplicação simultânea não é possível.

Numa situação como essa, em que não é possível a aplicação dos critérios citados, como fará o intérprete para solucionar o conflito?

De acordo com Maria Helena Diniz, essa antinomia se resolve mediante a edição de uma terceira norma, por meio da qual seria anulada uma das normas conflitantes ou limitada a sua validade.159

Este requisito, porém, também é necessário quando a antinomia pode ser solucionada por um dos critérios acima mencionados. Afinal, os conflitos entre normas não se resolvem automaticamente, sendo necessária a intervenção de uma autoridade competente para decidir: (i) pela existência ou não do conflito; (ii) fixar o critério para a sua solução; e (iii) solucionar o conflito mediante a revogação de uma das normas ou, simplesmente, impedindo a sua aplicação num determinado caso.

É importante observar, por outro lado, que a terceira norma, responsável pela solução do conflito, nem sempre implicará revogação de uma das normas conflitantes. Isso por uma razão simples, mas contundente:

159 “[...] ante a inaplicabilidade de um daqueles critérios, essa antinomia se resolve anulando

ou limitando a validade de uma das normas antagônicas com uma norma derrogatória, que estabelece o não-mais-dever-ser (Nichtsollen) de um certo comportamento, isto é, afirma que não é mais devida uma conduta assim estatuída em outra norma.” (Conflito

os conflitos, no mais das vezes, são resolvidos em processos judiciais ou administrativos, de modo que as decisões ali proferidas produzem efeitos apenas entre as partes.

De fato, quando um juiz decide pela inconstitucionalidade de uma determinada norma em controle difuso, tal decisão produz efeitos apenas para as partes vinculadas ao processo. Portanto, sua decisão não implicará, em hipótese alguma, na derrogação de uma das normas conflitantes, mas tão-somente impedirá sua aplicação naquele específico caso.

Situação diversa se verifica, porém, quando o Poder Legislativo produz uma norma, em confronto com norma anterior, e no mesmo documento normativo positiva outra regra que revoga a norma anterior conflitante. Neste caso, aí sim pode-se falar em revogação de uma das normas conflitantes.

De todo modo, ainda que fosse necessária a edição de uma terceira norma para resolução do conflito apenas quando a aplicação dos critérios mencionados é impossível, seria necessário fixar as condições para a produção de uma norma desta natureza. Melhor dizendo: permanece a dúvida quanto ao critério que presidirá a solução da antinomia e, portanto, da terceira norma apta a positivar tal solução.

Maria Helena Diniz, ao examinar a questão, afirma que caberá ao aplicador, considerando as normas envolvidas e os fatos a ela relacionados, bem como os valores que informa o direito, definir qual o critério que irá presidir a resolução do conflito. São suas palavras:

[...] não há uma solução unívoca, por isso há discricionariedade do órgão aplicador que, hoje, pode aplicar uma delas, amanhã, outra. Assim, o magistrado, ao compreender as normas antinômicas, deverá refazer o caminho da fórmula normativa ao ato normativo, tendo presente fatos e valores, para aplicar, em sua plenitude, o significado nelas objetivado, optando pelo que for mais favorável. Deveras, ante a dinamicidade do direito, será possível

redimensionar novos valores, pois a norma não é um modelo abstrato oposto à realidade concreta, mas um modelo que expressa uma temporalidade própria, que se caracteriza por um renovar-se e refazer-se das soluções normativas, tendo, portanto, um caráter prospectivo, o que obrigará o aplicador a ler a norma sob a luz dos valores, numa oscilação contínua que vai da descoberta do discurso original à experiência valorativa e ideológica do momento atual. Daí o grande papel da ideologia nos casos de antinomia.160

De modo semelhante, Hans Kelsen confere ao aplicador a responsabilidade pela eleição do critério que irá solucionar a antinomia:

Um conflito também pode existir entre duas normas individuais, e.g. entre duas decisões judiciais, particularmente quando as duas normas foram postas por órgãos diferentes. Uma lei pode conferir competência a dois tribunais para decidir o mesmo caso, sem emprestar à decisão de um dos tribunais o poder de anular a decisão do outro. [...] Então pode suceder que um réu seja condenado por um dos tribunais e seja absolvido pelo outro, quer dizer: que ele, segundo uma das normas deva ser punido e, segundo a outra, não deva ser punido; ou que um dos tribunais dê provimento ao pedido e que o outro o rejeite [...]. O conflito é resolvido pelo fato de o órgão executivo ter a faculdade de escolher entre observar uma ou outra das decisões.161

Com efeito, não temos dúvida de que caberá ao intérprete oferecer um critério diferente daqueles mencionados para a solução da antinomia.

É necessário, contudo, fazer um alerta. O fato de não serem aplicáveis os critérios hierárquico, cronológico ou da especialidade não significa que o direito não oferece, expressamente, os meios para que determinada antinomia seja solucionada.

Vejamos um exemplo: em 11/10/2010 transita em julgado uma sentença, em Mandado de Segurança, a qual ordena que uma pessoa pague um determinado tributo. Pouco mais de um ano depois, em 11/11/2010, transita em julgado outra decisão, proferida no bojo de uma

160 Conflito de normas, p. 55-56.

Ação Anulatória, permitindo que aquela mesma pessoa não pague o tributo, porque a lei que o instituiu é inconstitucional.

Numa situação como essa, os critérios da especialidade e da hierarquia obviamente não seriam suficientes para solucionar o problema, pois as normas são igualmente específicas e possuem idêntica hierarquia.

O critério cronológico, todavia, também não parece aplicável neste caso específico. Isso porque, ao analisar o sistema processual, verifica-se que a solução de conflitos entre decisões judiciais como estas não é feito mediante o exame do momento em que ingressaram no sistema. Com efeito, o legislador, justamente com o objetivo de evitar a prolação de decisões conflitantes e igualmente válidas, estabelece regras para que se considere um determinado juízo prevento, ou seja, que fixam o juízo competente para julgar uma demanda, excluindo a competência dos demais.162 São elas:

(i) tratando-se de ações que correm perante juízos com a mesma competência territorial, prevalece o juízo que despachou em primeiro lugar (art. 106 do Antigo CPC);

(ii) se as causas foram propostas em juízos de competência territorial diversa, prevalece o juízo perante o qual primeiro ocorrer a citação válida (art. 219 do Antigo CPC).

Para determinar qual a decisão judicial a ser aplicada, ou seja, para resolver o conflito, seria necessário verificar se as ações correram em juízos de competência territorial diversa ou não e, a depender da resposta a

162 “A palavra ‘prevenção’ e as locuções ‘prevenção de juízo’ e ‘juízo prevento’ devem ser entendidas como a fixação concreta da competência de um entre outros juízos competentes em abstrato. Naqueles casos em que há competência concorrente é possível verificar que um – e apenas um – dos juízos é o competente, com exclusão dos demais. E, nesse sentido, a prevenção tem aptidão de modificar a competência daqueles outros juízos.” (BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil.

esta pergunta, verificar quem despachou em primeiro lugar ou onde ocorreu a primeira citação válida.

Com este singelo exemplo, fica claro que o fato de não serem aplicáveis os critérios mencionados não significa dizer que não há critério para a solução da antinomia.

Trata-se, tão-somente, de verificar, ante a multiplicidade das normas existentes no sistema, qual(is) poderá(ão) servir de fundamento para resolver a antinomia.