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Resultado da solução de conflitos entre normas

Capítulo IV – Dos critérios existentes no sistema para eliminação de conflitos

4.4. Resultado da solução de conflitos entre normas

No capítulo da Teoria Geral das Normas denominado “Derrogação: abolição da validade de uma norma por outra norma”, Hans Kelsen busca definir o conceito de revogação. Para este autor, revogar é eliminar a validade de uma norma por meio de outra norma. São suas palavras: “(…) derrogação é a abolição da validade de uma norma – que está em validade – por uma outra norma.”163

Levando em consideração que, para Kelsen, a validade de uma norma é sua existência específica164, fica fácil concluir que revogação, para ele, é um processo cuja finalidade é eliminar a existência de normas.

163 Teoria geral das normas. Porto Alegre: Fabris, 1986, p. 134.

164 “Com a palavra ‘vigência’ designamos a existência específica de uma norma. Quando descrevemos o sentido ou o significado de um ato normativo dizemos que, com o ato em questão, uma qualquer conduta é preceituada, ordenada, prescrita, exigida, proibida; ou então consentida, permitida ou facultada. Se, como acima propusemos, empregarmos a palavra ‘dever-ser’ num sentido que abranja todas essas significações, podemos exprimir a vigência (validade) de uma norma dizendo que certa coisa deve ou não deve ser, deve ou não ser feita. Se designarmos a existência específica da norma como a sua ‘vigência’, damos desta forma expressão à maneira particular pela qual a norma – diferentemente do ser dos fatos naturais – nos é dada ou se nos apresenta.” (Hans Kelsen, Teoria pura

Paulo de Barros Carvalho, ao tratar do tema, não expressa claramente seu pensamento. Todavia, analisando detidamente suas afirmações, é possível inferir que, no seu entender, ocorre a revogação quando cessam os efeitos da norma jurídica, quer dizer, quando ela deixa de ter força para juridicizar os fatos que vierem a ocorrer depois da revogação.165

Avançando no estudo desse fenômeno, o autor conclui, a partir da análise do art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil, que pode ocorrer o fenômeno revogatório com ou sem conflitos de normas. São suas palavras:

[…] a Teoria Geral do Direito construiu três critérios de solução de conflitos de normas, os quais, posteriormente, foram inseridos no sistema de direito positivo brasileiro pela Lei de Introdução ao Código Civil por seu artigo 2º (…). Observa-se, com esse dispositivo, que revogação pode dar-se com ou sem conflito de normas. No segundo caso, tem-se a revogação expressa, que atinge diretamente um ou alguns enunciados (v.g., “fica revogado o artigo X da lei Y” ou “revoga-se a lei Y”), enquanto na primeira hipótese opera-se revogação tácita, em que, diante da ausência de indicação do dispositivo ou lei revogada, persiste conflito entre as duas legislações. Diz-se haver revogação expressa quando a lei revogadora manifestamente o declare, e haverá revogação tácita quando existir incompatibilidade entre lei anterior e lei posterior; ou, ainda, quando esta regular inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Como se vê, Paulo de Barros Carvalho identifica o fenômeno da revogação com o da incompatibilidade entre normas.

Maria Helena Diniz defende ideia semelhante. Para esta autora, “revogar é tornar sem efeito uma norma, retirando sua obrigatoriedade. [...] Com a entrada em vigor da nova norma, a lei revogada não mais poderá pertencer ao ordenamento jurídico, perdendo sua vigência […]”166. Ainda de acordo com seus ensinamentos, duas são as espécies de

165 Cf. Direito tributário, linguagem e método, p. 397 e seguintes.

166 DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 64.

revogação: a ab-rogação e a derrogação, as quais descreve do seguinte modo:

A revogação é o gênero que contém duas espécies:

a) a ab-rogação, que é a supressão total da norma anterior, por ter a nova lei regulado inteiramente a matéria, ou por haver entre ambas incompatibilidade explícita ou implícita. (…)

b) a derrogação, que torna sem efeito uma parte da norma. A norma derrogada não perderá sua vigência, pois somente os dispositivos atingidos é que não mais terão obrigatoriedade. (…)167

Ao definir o conceito de ab-rogação, Maria Helena Diniz também deixa clara a possibilidade de ocorrer a revogação por conta da existência de mero conflito entre normas.

Da mesma forma, Ricardo A. Guarinoni, com base na distinção entre “ordenamento” e “sistema” formulada por Carlos E. Alchourrón e Eugenio Bulygin,168 defende a ideia de que o fenômeno revogatório se identifica com a incompatibilidade entre enunciados prescritivos. São suas palavras:

En la derogación de normas, juega un papel fundamental el criterio

lex posterior, ya que la substitución de un sistema por otro en el orden jurídico se produce cuando una nueva norma sancionada deroga en forma expresa o tácita alguna de las pertenecientes al sistema, con lo cual aparece otro sistema. Los criterios lex superior y lex specialis¸ aun cuando sirven para establecer preferencias entre normas incompatibles, no suelen considerarse como productores de la derogación de normas si no operan junto com el de ley posterior. La derogación priva de validez, en el sentido de

pertenencia al sistema, a las normas afectadas por ella, por lo que no forman parte de los sistemas subsiguientes.169

167 Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, p. 64.

168 Estes autores defendem que o “ordenamento jurídico” seria o conjunto de todas as

normas jurídicas introduzidas, ainda que não mais em vigor. A palavra “sistema”, em contrapartida, serviria para denotar as normas jurídicas em vigor num dado momento considerado. (ALCHOURRÓN, Carlos E.; BULYGIN, Eugenio. Análisis lógico y

derecho. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991)

169 GUARINONI, Ricardo A. Derecho, lenguaje y lógica. Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina, 2006, p. 188.

Pelo exposto, verifica-se que é quase um consenso entre muitos autores a íntima relação entre revogação e conflito de normas. Porém, não compartilhamos desse posicionamento.

Conforme a lição de Ulisses Schmill,170 revogar é pôr termo à vigência temporal de uma norma, na hipótese de indeterminação da data final de vigência, ou estabelecer novo e mais curto prazo àquelas que já possuem prazo certo. Com efeito, também nas situações em que já existe determinação final de vigência da norma, tem natureza revogatória o enunciado normativo que prescreve nova data para o término da sua vigência, antecipando-o.

O papel da norma derrogante é, portanto, prescrever o prazo final de vigência de uma norma. Como consequência, a simples contradição entre duas normas não é suficiente para anular uma ou ambas as normas. Como destaca Lourival Vilanova:

O só fato da contradição não anula ambas as normas. Nem a lei de não-contradição, que é lei lógica e não norma jurídica, indicará qual das duas normas contradizentes prevalece. É necessária a norma que indique como resolver antinomia: anulando ambas ou mantendo uma delas.171

Em síntese: o que queremos demonstrar é que o fenômeno revogatório se dá por força de um terceiro elemento, além da mera incompatibilidade entre as normas: a existência de um enunciado que expressamente declare o fim da vigência da norma anterior incompatível.

Ou seja, para que uma norma seja revogada – retirada do sistema jurídico – é indispensável que seja editada uma outra regra com esta expressa finalidade. Não basta, assim, que exista conflito entre regras.

170 SCHMILL, Ulisses. “La derogación y la anulación como modalidades del ámbito temporal de validez de las normas jurídicas.” Doxa (Publicaciones periódicas). Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 1996, 19: 229-258.

É certo, por outro lado, que na maior parte das vezes a resolução do conflito leva apenas à não aplicação da norma ao caso. Significa dizer: a norma não é retirada do sistema, produzindo efeitos para todas as demais situações.

É o que ocorre, como já mencionamos, quando um determinado juiz declara, em controle difuso, a inconstitucionalidade de uma determinada lei. Ora, a declaração de inconstitucionalidade ocorre justamente porque o magistrado identifica um conflito entre uma norma infraconstitucional e uma norma presente na Carta Suprema.

A resolução deste conflito, por sua vez, se dá mediante a aplicação do critério hierárquico: como a Constituição da República está no topo da pirâmide normativa, ela prevalece sobre todas as demais normas. Com suporte neste posicionamento, decide o juiz declarar a norma inconstitucional, impedindo a sua aplicação para as partes que integram aquele processo.

Isso, porém, não quer dizer que a norma declarada inconstitucional é retirada do sistema. Pelo contrário: não só continua integrando o ordenamento como também produz efeitos para todos os demais casos.

Ante o exposto, podemos concluir que a resolução de conflitos entre normas jurídicas nem sempre implica retirada de uma das normas jurídicas do sistema. O resultado dependerá de quem resolveu o conflito e em que condições.

Capítulo V – Conflitos na aplicação de precedentes