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Capítulo IV – Dos critérios existentes no sistema para eliminação de conflitos

4.1. Os critérios comumente eleitos para a solução das antinomias

4.1.3. Critério da hierarquia

A terceira e última regra geral e, possivelmente, a mais importante, prescreve a prevalência da norma superior em relação à inferior, no caso de conflitos – lex superior derogat inferiori.152

Ora, se uma norma integra o sistema jurídico somente porque encontra fundamento em outra norma, de superior hierarquia, não podemos negar que as normas produzidas com fundamento no que ela dispõe não podem ser mantidas no sistema jurídico.

Na Constituição da República, por exemplo, é prescrito sistema misto153 de controle da constitucionalidade de leis e demais atos normativos. Significa dizer: admite-se que os órgãos do Poder Judiciário

152 “O critério hierárquico, chamado também de lex superior, é aquele pelo qual, entre duas

normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior: lex superior derogat

inferiori.” (Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p. 93)

153 O sistema misto de controle da constitucionalidade dos atos administrativos reúne, num só sistema, o controle concentrado, exercido por um órgão, e o controle difuso, no qual a competência para decidir sobre a constitucionalidade das leis é atribuída aos diversos órgãos.

examinem a compatibilidade entre as normas infraconstitucionais e aquilo que prescreve a CF.

Quando, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela inconstitucionalidade da contribuição devida pelos produtores rurais pessoas físicas, incidente sobre a receita da comercialização da sua produção, o fez justamente porque a norma que instituiu o tributo era incompatível com a norma constitucional que a fundamentou:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL PREVIDENCIÁRIA. EMPREGADOR RURAL PESSOA FÍSICA. INCIDÊNCIA SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO. ART. 25 DA LEI 8.212/1991, NA REDAÇÃO DADA PELO ART. 1º DA LEI 8.540/1992. INCONSTITUCIONALIDADE. I – Ofensa ao art. 150, II, da CF em virtude da exigência de dupla contribuição caso o produtor rural seja empregador. II – Necessidade de lei complementar para a instituição de nova fonte de custeio para a seguridade social. III – RE conhecido e provido para reconhecer a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei 8.540/1992, aplicando-se aos casos semelhantes o disposto no art. 543-B do CPC.154 Evidentemente, a decisão se baseou justamente na ideia de que as normas hierarquicamente superiores – no caso, as normas constitucionais – devem prevalecer sobre as normas inferiores produzidas com base nas suas disposições.

De igual modo, estabelece o Código Tributário Nacional que o lançamento é atividade plenamente vinculada (art. 142, parágrafo único), significa dizer, não pode a Administração gravar a conduta do administrado salvo nas situações expressamente previstas na lei.155

154 BRASIL. Suprem Tribunal Federal. RE nº 596177. Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo

Lewandowski, 29 ago. 2011.

155 “[...] não se pode atribuir à autoridade lançadora o poder de gravar a conduta do administrado, quando bem lhe aprouver. Sua atividade, nesse campo, sendo vinculada à lei, não deixa espaço para expedientes animados com esse tipo de imperatividade.” (Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p. 426)

Como consequência desta prescrição, não poderá ser admitida a manutenção de lançamento quando em confronto com a norma que o fundamenta, ou seja, com a lei que institui o tributo.

Trata-se, evidentemente, da concretização do princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF), segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Ao dispor desta forma, o constituinte impede a manutenção de regras que estejam em confronto com aquilo que a lei dispor, positivando, também aí, o critério da hierarquia.

Com efeito, diferentemente do que se verifica em relação aos outros critérios de solução de antinomia, o critério da hierarquia não está previsto num dispositivo legal específico.

Isso, no entanto, não impede que seja largamente aplicado pelos nossos Tribunais. A título de exemplo, citamos precedente do STJ, firmado em recurso repetitivo, no qual foi afastada a aplicação de Instrução Normativa editada pela Receita Federal por conflitar com a norma superior que fundamentou a sua produção:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. IPI. CRÉDITO PRESUMIDO PARA RESSARCIMENTO DO VALOR DO PIS/PASEP E DA COFINS. EMPRESAS PRODUTORAS E EXPORTADORAS DE MERCADORIAS NACIONAIS. LEI 9.363/96. INSTRUÇÃO NORMATIVA SRF 23/97. CONDICIONAMENTO DO INCENTIVO FISCAL AOS INSUMOS ADQUIRIDOS DE FORNECEDORES SUJEITOS À TRIBUTAÇÃO PELO PIS E PELA COFINS. EXORBITÂNCIA DOS LIMITES IMPOSTOS PELA LEI ORDINÁRIA. SÚMULA VINCULANTE 10/STF. OBSERVÂNCIA. INSTRUÇÃO NORMATIVA (ATO NORMATIVO SECUNDÁRIO). CORREÇÃO MONETÁRIA. INCIDÊNCIA. EXERCÍCIO DO DIREITO DE CRÉDITO POSTERGADO PELO FISCO. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE CRÉDITO ESCRITURAL. TAXA SELIC. APLICAÇÃO. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535, DO CPC. INOCORRÊNCIA. 1. O crédito presumido de IPI, instituído pela Lei 9.363/96, não poderia ter sua aplicação restringida por força da Instrução Normativa SRF 23/97, ato normativo secundário, que não pode inovar no ordenamento jurídico, subordinando-se aos limites do texto legal. [...] 7. Como de sabença, a validade das instruções normativas (atos normativos secundários) pressupõe a estrita observância dos limites impostos pelos atos normativos

primários a que se subordinam (leis, tratados, convenções internacionais, etc.), sendo certo que, se vierem a positivar em seu texto uma exegese que possa irromper a hierarquia normativa sobrejacente, viciar-se-ão de ilegalidade e não de inconstitucionalidade (Precedentes do Supremo Tribunal Federal: ADI 531 AgR, Rel. Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 11.12.1991, DJ 03.04.1992; e ADI 365 AgR, Rel. Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 07.11.1990, DJ 15.03.1991). 8. Conseqüentemente, sobressai a "ilegalidade" da instrução normativa que extrapolou os limites impostos pela Lei 9.363/96, ao excluir, da base de cálculo do benefício do crédito presumido do IPI, as aquisições (relativamente aos produtos oriundos de atividade rural) de matéria-prima e de insumos de fornecedores não sujeito à tributação pelo PIS/PASEP e pela COFINS [...]. 9. É que: (i) "a COFINS e o PIS oneram em cascata o produto rural e, por isso, estão embutidos no valor do produto final adquirido pelo produtor-exportador, mesmo não havendo incidência na sua última aquisição"; (ii) "o Decreto 2.367/98 - Regulamento do IPI -, posterior à Lei 9.363/96, não fez restrição às aquisições de produtos rurais"; e (iii) "a base de cálculo do ressarcimento é o valor total das aquisições dos insumos utilizados no processo produtivo (art. 2º), sem condicionantes" (REsp 586392/RN). [...] 15. Recurso especial da empresa provido para reconhecer a incidência de correção monetária e a aplicação da Taxa Selic. 16. Recurso especial da Fazenda Nacional desprovido. 17. Acórdão submetido ao regime do artigo 543-C, do CPC, e da Resolução STJ 08/2008. (REsp 993.164/MG, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 13/12/2010, DJe 17/12/2010)

E nem poderia ser diferente. Afinal, a prevalência da norma superior sobre a norma inferior é corolário do próprio sistema, cuja finalidade é, em última instância, preservar a segurança jurídica das relações.

Por todo o exposto, não resta dúvida de que o critério da hierarquia não somente encontra fundamento em dispositivos constitucionais e legais dos mais relevantes, sendo plenamente aplicável para solucionar antinomias.

Veremos a seguir, porém, que muitas vezes se verifica conflitos na aplicação deste e dos demais critérios de solução de antinomia, sendo necessária a fixação de condições para definir quais deles serão ou não utilizados no caso concreto.

4.2. Dos conflitos entre os critérios para a solução das antinomias