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TRABALHO E CIDADANIA

3.4 A divisão sexual do trabalho

O trabalho doméstico traz como pano de fundo um debate que perpassa a divisão sexual do trabalho dentro do casamento e estende-se para outras relações fora do círculo familiar. Dados do ano de 2010 da International Labour Organization (ILO) demonstraram que do total de trabalhadoras domésticas distribuídos por regiões do mundo (Ásia, América Latina e Caribe, África, Países desenvolvidos, Oriente Médio e o Oeste Europeu) a sua grande maioria encontra-se em regiões da Ásia (41%); América Latina e Caribe (37%) e África (10%). A divisão do trabalho foi estimada em 83% da força de trabalho feminina para 13% masculina considerando todas as regiões citadas. Isto demonstra uma tendência da divisão do trabalho em que a variável de gênero é um fator importante a ser considerado. Segundo Menon:

As mulheres são responsáveis pelo trabalho doméstico, isto é, pela reprodução da força de trabalho. O trabalho que torna as pessoas capazes de trabalhar dia após dia (comida, casas limpas, roupas limpas, descanso) é fornecido pelas mulheres. Espera-se que a mulher da casa execute essas tarefas sozinha ou seja responsável por garantir que uma mulher mais pobre e mal remunerada faça isso. Em ambos os casos, o trabalho doméstico é considerado a responsabilidade principal das mulheres, mesmo que, como na maioria das vezes, elas também estejam realizando trabalho fora de casa e ganhando salários ou um salário (Menon, 2012, p. 11).

Embora o trabalho doméstico tenha sido a porta de entrada de muitas mulheres no mercado de trabalho, as condições de pobreza e a insuficiente proteção das trabalhadoras afetam diretamente as mulheres e contribuem para aumentar as disparidades de gênero. Segundo a ILO “Melhorar as condições de trabalho para as empregadas domésticas irá ter uma contribuição considerável para a igualdade de gênero no mercado de trabalho” (ILO, 2013, p. 21).

Intervenções do movimento de mulheres e das políticas feministas agregam a esse debate a diminuição da pobreza e da geração de emprego, ligadas a valorização do trabalho feminino. Para muitos coletivos de mulheres, e inclusive, para os sindicatos e ONGs a valorização da mulher no mercado de trabalho e a busca pela igualdade de gênero se dá em termos salariais principalmente.

No questionário proposto para as mulheres do coletivo Gharelu Sahayaka Sanstha a disparidade salarial entre as mulheres do mesmo coletivo era notória se comparada dentre as próprias mulheres. As mulheres com mais tempo de serviço ganhavam mais, seus salários chegavam a 25,000 rupias por mês (aproximadamente R$ 1500,00), o salário mais baixo era de 7,000 rupias (aproximadamente R$140,00) por mês. A instabilidade e a insegurança em termos de rendimentos são caracterizadas pela falta de uma legislação e fiscalização especificas que dimensionem o trabalho doméstico como um trabalho. A lei Equal Remuneration Act (197648)

aprovada pelo Governo Indiano, não foi suficiente para garantir a diminuição das disparidades econômicas entre homens e mulheres dentro do contexto do trabalho doméstico. O principal argumento, segundo Menon é de que, “Não são as 'mulheres' que são remuneradas menos que 'homens', mas o trabalho que é menos remunerado, mesmo que o trabalho não seja menos árduo ou qualificado do que o trabalho dado aos homens” (Menon, 2012, p. 13).

Esse argumento é falho pois o trabalho doméstico não compreende exclusivamente o trabalho realizado dentro do lar, como a limpeza, organização e manutenção do ambiente doméstico entendido como a casa, mas segundo Menon:

O trabalho não remunerado que as mulheres realizam inclui coleta de combustível, forragem e água, criação de animais, processamento pós- colheita, manutenção de gado, jardinagem e criação de aves que aumentam os recursos da família. Se as mulheres não fizessem esse trabalho, esses bens teriam que ser comprados no mercado, serviços contratados por um salário, caso contrário a família teria que ficar sem. No entanto, tão naturalizadas são as suposições sobre os papéis de gênero que o censo indiano não reconheceu isso como 'trabalho' por um longo tempo, uma vez que não é realizado por um salário, mas é um trabalho não remunerado em torno da família. As próprias mulheres tendem a não denunciar esse trabalho porque o consideram responsabilidades "domésticas" (Menon, 2012, p. 13).

Assim como nem todo o trabalho doméstico refere-se a casa, a remuneração também não é garantia de igualdade de gênero. As mulheres do coletivo que recebem bons salários não buscam igualdade salarial, mas mesmo assim reivindicam igualdade de gênero através de outros serviços – aposentadoria, plano de saúde, etc. – já, as mulheres mais novas e com filhos o aumento salarial representa uma mudança significativa, pois assim poderão enviar mais dinheiro para sustentar a família de longe. Para Chandramouli:

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Disponível em:< https://labour.gov.in/womenlabour/equal-remuneration-acts-and-rules-1976>. [Acesso em 01 jan 2020].

A incorporação das mulheres no trabalho remunerado em seu nível mais baixo não necessariamente emancipa as mulheres dos papéis tradicionais de gênero. As trabalhadoras domésticas são vítimas de tortura, violência e exploração nas casas de seus empregadores. [...] As condições de emprego e de vida das trabalhadoras domésticas são sombrias por natureza. Elas estão sujeitas a inconvenientes multifacetados, mesmo que executem várias atividades (Chandramouli, 2018, p. 3)

Em 2010, um julgamento significativo fez a Suprema Corte Indiana se pronunciar sobre o valor do trabalho doméstico realizado pelas mulheres. O caso foi de uma dona de casa que morreu em um acidente de carro e seu marido reivindicou junto ao tribunal uma compensação em quantia, calculando a renda de sua esposa desempregada com um terço da renda do marido. O marido recorreu a Suprema Corte, buscando um aumento no valor. Neste julgamento, a Suprema Corte aumentou o valor consideravelmente, e além de considerar o trabalho doméstico exercido pelas mulheres como sem valor econômico, demostrava um forte viés de gênero. Para Menon o trabalho doméstico se torna visível somente quando consideramos aqueles que fazem este trabalho por um salário (Cf. Menon, 2012, pp.16- 17). Mas o que sustenta esse divisão? Nas palavras de Menon

Não há nada de "natural" na divisão sexual do trabalho. O fato de homens e mulheres realizarem diferentes tipos de trabalho, tanto dentro como fora da família, tem pouco a ver com biologia. Somente o processo real da gravidez é biológico, todos os outros trabalhos dentro de casa que as mulheres devem realizar - cozinhar, limpar, cuidar dos filhos e assim por diante (toda a gama de trabalhos que podemos chamar de 'trabalho doméstico') - podem igualmente ser bem feito pelos homens. Mas este trabalho é considerado "trabalho de mulheres". Essa divisão sexual do trabalho se estende até a arena 'pública' do trabalho remunerado e, novamente, isso não tem nada a ver com 'sexo' (biologia) e tudo a ver com 'gênero' (cultura). Certos tipos de trabalho são considerados 'trabalho de mulheres' e outros tipos, homens; mas mais importante é o fato de que qualquer que seja o trabalho das mulheres, elas recebem salários mais baixos e são menos valorizados (Menon, 2012, p. 11). Segundo Susan Moller Okin (2008) a discussão entre o público/ político e o privado/pessoal/doméstico dentro do pensamento político ocidental tem sido sustentada por práticas, que referem-se à distinção entre Estado e sociedade (como em propriedade pública e privada), quanto para referir-se à distinção entre vida não doméstica e vida doméstica. O que está em jogo aqui são dois conceitos que se apresentam para Okin paradigmaticamente contestados, seja o Estado (paradigmaticamente público), e a Família e a vida doméstica (paradigmaticamente privada). (Cf. Okin, 2008, p. 306).

A institucionalização social das diferenças sexuais, o que a autora denomina de gênero (Okin, 2008, p. 306) serve para elucidar essa dicotomia entre público e privado. O resultado dessa institucionalização ressoa na ideia de que homens são

vistos como, sobretudo, ligados a ocupações da esfera da vida econômica e política e responsáveis por elas, enquanto as mulheres seriam responsáveis pelas ocupações da esfera privada da domesticidade e reprodução [...] sendo assim, [...] “naturalmente inadequadas à esfera pública, dependentes dos homens e subordinadas à família (Okin, 2008, p. 308)

Esse monopólio assegura que as mulheres acabem priorizando o trabalho doméstico não pago ao invés de se arriscarem em outros trabalhos fora do lar. A divisão sexual do trabalho não só delimita os papeis sociais de homens e mulheres, mas limita o horizonte de escolhas que as mulheres têm ao não optar pela responsabilidade primeira – ser mãe-. No entanto,

Seja na escolha da carreira ou na capacidade de participar na política (sindicatos, eleições), as mulheres aprendem quando muito jovens a limitar suas ambições. Essa autolimitação é o que produz o chamado "teto de vidro", o nível acima do qual as mulheres profissionais raramente se elevam; ou a 'trilha da mãe', a carreira mais lenta para cima, enquanto as mulheres deixam de lado alguns dos anos produtivos de suas vidas para cuidar dos filhos. (Menon, 2012, p. 14).

A responsabilidade construída sobre a maternidade e o trabalho doméstico não pago é cerceado também pela reprodução da instituição familiar. O que eu percebi através do meu campo é que muitas das mulheres com as quais eu interagi não contribuíram para a reprodução desses papeis sociais, ou contribuíram parcialmente, visto que assumem posições de “chefes de família” dentro da instituição familiar, fazendo do lugar do doméstico também político, tornando esses dois domínios muito mais porosos do que imaginamos.

Okin chama atenção para a defesa das feministas do século XIX em questionar o papel da mulher dentro da esfera doméstica “O pessoal é político” era o slogan das feministas radicais que defendiam a família como a raiz da opressão da mulher para fazer frente a convencional dicotomia liberal entre público/doméstico (Cf. Okin, 2008, p. 318). Certamente não fora essa crítica que desmantelou o sistema de opressão de gênero. A vida social não é convincentemente determinada por duas esferas separadas e distintas. Se existe algo além do público e do privado, essa associação mais ou menos universal, está sujeita a mudanças porque resulta, assim como o gênero, a uma série de “fatores complexos”.