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A libertação está para o oprimido assim como o poder está para a opressão?

AS MULHERES INDIANAS PRECISAM REALMENTE DE LIBERTAÇÃO?

4.6 A libertação está para o oprimido assim como o poder está para a opressão?

Sempre que retornava das minhas viagens à Índia algo na fala das pessoas com quem eu conversava me incomodava de forma muito singular, - “E como é a questão das mulheres na Índia?” Elas são muito oprimidas lá, né? ou ainda, “Como você sobreviveu lá?” O tom dos questionamentos carregava uma sutileza, ou seja, incidiam sobre como era difícil ser mulher num lugar como a Índia, um país de maioria Hindu, com um histórico que perpassava o casamento infantil, infanticídio de crianças do sexo feminino, práticas de autoimolação das viúvas, estupro coletivo, e ainda por cima, a novela brasileira, “Caminhos da Índia” , forjando no imaginário social uma Índia que era tudo isso, e muito mais. Confesso que eu também ficava

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A crítica a essa visão da Igreja voltada para os pobres se apresenta da seguinte forma: A expressão “teologia da libertação” designa primeiramente uma preocupação privilegiada, geradora de compromisso pela justiça, voltada para os pobres e para as vítimas da opressão. A partir desta abordagem podem-se distinguir diversas maneiras, frequentemente inconciliáveis, de conceber a significação cristã da pobreza e o tipo de compromisso pela justiça que ela exige. Como todo movimento de ideias, as « teologias da libertação » englobam posições teológicas diversificadas; suas fronteiras doutrinais são mal definidas”. Além do mais “Não se pode tampouco situar o mal unicamente ou principalmente nas « estruturas » económicas, sociais ou políticas, como se todos os outros males derivassem destas estruturas como de sua causa: neste caso a criação de um « homem novo » dependeria da instauração de estruturas económicas e sócio-políticas diferentes. Há, certamente, estruturas iníquas e geradoras de iniquidades, e é preciso ter a coragem de mudá-las. Fruto da ação do homem, as estruturas boas ou más são consequências antes de serem causas. A raiz do mal se encontra pois nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser convertidas pela graça de Jesus Cristo, para viverem e agirem como criaturas novas, no amor ao próximo, na busca eficaz da justiça, do autodomínio e do exercício das virtudes” (Bento XVI).

desacreditada, mas estava ali um desafio, que transformei em antropológico, de apresentar e desconstruir essa definição universal de mulher - oriental, asiática e subordinada pela religião. A tendência em fixar ícones culturais definindo como as mulheres orientais, ou melhor, as indianas são subordinadas e exploradas pela religião estão amparadas por uma série de confusões históricas e políticas que ressoam em uma retórica em torno da mulher pautada em noções de igualdade, liberdade e conquista de direitos. Esse discurso é desenvolvido ainda, sob a ideia de que é preciso, em diferentes contextos, criar estratégias para que as mulheres sejam libertas da opressão. Meu argumento é que talvez fosse mais interessante trabalhar para que as diversas situações e violências fossem reconhecidas e transformadas com as mulheres e não para as mulheres. A libertação não é o que a Igreja diz que é bom para elas, mas ao mesmo tempo contribui para o processo de conscientização e de mobilização delas. A educação, então, torna-se o principal instrumento no processo de libertação dessas mulheres.

O fato é que a crença na libertação implica, necessariamente, considerar segundo Berlin (2014) duas concepções de “liberdade”: a liberdade negativa e a liberdade positiva. A primeira corresponde a não interferência externa aquilo que se quer fazer, a segunda implica na liberdade de se fazer o que quiser. Apesar da diferença conceitual, ambas estão entrelaçadas, pois a garantia de se fazer o que se quer está conectada com a não interferência externa. Se no plano teórico conceitual a liberdade parece ser melhor definida, na prática, o que se percebe é que nem sempre ser “livre” significa viver sem interferências. Para Berlin a crença na liberdade como auto direção está propensa a considerar “mais cedo ou mais tarde, como isto poderia ser aplicado, não somente para a vida interior dos indivíduos, mas para sua relação com os outros membros da sociedade” (Berlin, 2014, p. 210)58.

Dada as colocações anteriormente citadas em torno da libertação a partir da visão da Igreja, o meu desconforto com essa necessidade me levou a refletir sobre como as próprias mulheres entendiam essa libertação. Por mais que o termo não fosse utilizado de forma incisiva dentro do discurso da Igreja e do coletivo, percebi por meio da fala do irmão Felix de que a “liberdade positiva”, aquela de se fazer o que se quer, está condicionada a Igreja, pois o fato de que as mulheres não tinham “educação suficiente” legitimava a ação da Igreja voltada as práticas de empoderamento e de libertação das mulheres, condicionadas a um processo pedagógico de orientação e de instrução com a justificativa de salvaguardar as mulheres do

58 No campo filosófico a liberdade não foi estudada somente pela capacidade de ação individual autodirigida (como

uma condição intransponível do homem, segundo Sartre), mas pelos limites dessas ações na vida coletiva, ou seja, pela intenção e responsabilidade sob suas escolhas. Ver Sartre (2007, p. 536-537).

perigo da cidade grande. Não nos é interessante revelar se as mulheres são livres ou não, mas apresentar os sentidos e os limites da liberdade vivida no contexto do coletivo.

Para a Igreja, as mulheres precisam ser libertas, e essa liberdade se dá através de um processo pedagógico, formativo, como se fosse uma preparação para autogestão individual de cada uma, (como foi descrito no capítulo 2.). As mulheres, ao contrário, entendem esse papel da Igreja como necessário e importante, mas a libertação se dá na subversão das relações de opressão enfrentadas no ambiente de trabalho. Isto pode ser verificado através da fala de algumas mulheres: Martina destacava o coletivo como um espaço de “encontro e de ajuda legal”, na mesma direção, Berta frisava que o apoio recebido no sanstha ajuda ela a continuar trabalhando com segurança, pois se algo desse errado o coletivo estava ali para ajudá-la.

O reconhecimento da injustiça não deve ser feito por quem tem em mente a libertação, mas deve ser um processo dialógico e coletivo pensado com as próprias pessoas que sofrem a opressão. Paulo Freire (2018) nos ajuda a pensar, nestes termos, uma “educação como prática da liberdade” para esse sujeito oprimido. O que quero frisar é que há diferenças entre os sentidos de libertação almejados tanto pela Igreja, pelo Estado e pelas mulheres do coletivo. Ás vezes me parecia que só o fato das mulheres terem um espaço para os encontros já era uma grande conquista, isso ficava mais claro sobretudo com a fala de Berna, destacando o espaço das reuniões como o momento de escuta, de ajuda mútua e de amparo que na família não havia e muito menos na casa dos patrões.

A dimensão libertadora da educação em Pedagogia do Oprimido (2018 [1997]) nos permite perceber no coletivo um espaço de aprendizagem na relação com a Igreja, mas principalmente na relação umas com as outras. A relação de escuta e de diálogo destacada pelas mulheres sugere que essa libertação vivida no âmbito do coletivo não se preocupa, a priori, com uma libertação vinculada a Deus, como a encontrada em Garcia (2019) em seu trabalho “Libertação’, ‘discernimento’ e ‘abertura’: acerca da religião e dos modos de conhecimento”, mas trata-se de uma libertação que visa à conscientização das mulheres sobre suas relações de opressão associadas a discussão coletiva de seus problemas e de alianças formadas por laços de afinidade com as outras mulheres.

A crítica à explicação fatalista do sofrimento por meio da religião para Freire serve para problematizar a visão distorcida de Deus referindo-se ao sofrimento como uma vontade divina.59 Dentro desta visão fatalista do mundo e de si provavelmente os oprimidos se deem

59 Estaria aí uma diferença significativa entre aqueles que acreditam no Catolicismo como um projeto político

libertador frente o Sistema de Castas, utilizada pelos cristãos na Índia para justificar sua atuação dentre as comunidades mais pobres. Enquanto um explica o status social do indivíduo através do fatalismo de Deus (vontade

convencidos de sua condição de exploração. Daí que o diálogo crítico e libertador possibilita o engajamento pela libertação não como “instrumento de domesticação” e ativismo puramente, mas “os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e histórica de ser mais. A reflexão e a ação se impõem, quando não se pretende, erroneamente, dicotomizar o conteúdo da forma histórica de ser do homem” (Freire, 2018, p. 72).

Ao defender que o processo de libertação das mulheres não ocorre de cima para baixo, quero dizer que a libertação é um processo que deveria ocorrer a partir de uma relação dialógica e horizontal estabelecida com a Igreja, com seus patrões e entre o coletivo, procurando refletir a partir de suas experiências formas de agenciamento e de ação política voltadas para a libertação. O caminho, como bem apontou Freire, não é uma “propaganda libertadora”, nem um mero ato de “depositar” a crença da liberdade nos oprimidos, mas no diálogo estabelecido com eles. (Cf. Freire, 2018, p. 74). Diálogo que é feito de carne e osso, dia após dia em “comunhão”.

divina), para o outro a religião neste contexto é o que dá suporte para que a exploração e a desigualdade sejam superadas dentro do sistema de Castas.