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RELIGIÃO E TRABALHO

2.2 Right to work is right to live

No dia 27 de janeiro de 2019 participei junto com o coletivo de mulheres Gharelu

Sahayaka Sanstha33 do Seminário organizado pelos padres e irmãos da Congregação Missionária da Companhia de Jesus no norte da cidade de Nova Déli. O Seminário foi destinado para as mulheres trabalhadoras dos vários bairros localizados em Nova Déli, havia cerca 150 mulheres participando.34 Fui até Vydyajot com Shreya, uma das palestrantes do dia. Ela é

estudante de Doutorado em Ciência Política em JNU35 e se identifica como Advasi.

Chegamos até o portão da Faculdade e no pátio havia alguns irmãos organizando o café-da-manhã. A missa estava acontecendo dentro do prédio, no terceiro andar. Enquanto subíamos as escadas, do térreo ouvíamos as vozes agudas e uníssonas cantando melodias que me lembravam canções cristãs, cantadas em português. No acompanhamento, irmãos tocavam

harmonium e mridangam (instrumentos musicais indianos). Na entrada, do lado da porta do

salão, estavam os calçados das mulheres. Era preciso que retirássemos antes de entrar no salão.36 No chão havia tapetes espalhados, nos quais as mulheres estavam ajoelhadas, com as mãos voltadas ao céu cantavam. Na hora da Comunhão, as mulheres se levantavam para receber o Corpo e o sangue de Cristo. Perguntei a Shreya se devíamos comungar. Ela me disse: “por não termos acompanhado a missa desde o início, não me sinto digna de comungar”, dessa forma, permanecemos sentadas observando as outras mulheres.

O coletivo de mulheres Gharelu Sahayaka Sanstha, o qual eu estava acompanhando me identificaram e cumprimentei-as de onde eu estava. Além das mulheres as quais já tinha um contato, outros grupos de mulheres de diferentes bairros de Nova Déli estavam ali para participar do Seminário. Em pequenos grupos, elas estavam vestidas com sarees (vestimenta indiana) coloridos e casacos de lã, pois estava muito frio naquele dia. Nos braços, pulseiras coloridas na mesma tonalidade do saree, algumas usavam brincos e piercings no nariz. Os cabelos pretos e longos repartidos ao meio e presos as deixavam ainda mais belas. A maquiagem

33 Grupo de ajuda às mulheres domésticas.

34 Disponível em:< http://www.vjdepth.in/> Acessado em 13 Jun. 2019. 35 Jawaharlal Nehru University (JNU, Déli)

36 Essa prática de retirar os calçados é muito ptaticada em templos Hindus e Sikhis e relaciona-se com a noção de

pureza e limpeza. No Cristianismo percebo que isto se mantém a partir de uma resignificação de valores Hindus nas práticas católicas. Para mais informações ver: (Dirks, 1996).

demonstrava o cuidado e a vaidade de cada mulher. As mulheres mais novas estavam sentadas nos tapetes, as mais velhas estavam sentadas em cadeiras no fundo da sala e nas laterais.

A organização do espaço fez com que as mulheres ficassem sentadas umas de costas para as outras e de frente para o púlpito, que já fazia parte do salão. No palco o irmão Siril e outra irmã conduziam o evento nos convidando para tomar o café da manhã no pátio. A presença dos homens na organização das atividades é notória, principalmente na figura dos irmãos, dos padres, e dos músicos, ou seja, um evento para mulheres, organizado por homens. Não se trata aqui de uma análise sobre quem tem mais discurso de autoridade, mas afinal quem poderia falar mais da situação das mulheres se não elas próprias? Estaria eu reivindicando um “lugar de fala” que, na minha visão, era de direito das próprias mulheres? E se ficássemos somente na dimensão da experiência, o caráter pedagógico seria comprometido, pois o objetivo do Seminário era formar essas mulheres a partir de uma preocupação cristã associada a noções de cidadania.

Depois do café da manhã retornarmos à sala, aonde de fato, a formação começaria. Sheya me apresentou aos irmãos e não demorou muito para que me colocassem do lado do púlpito, como uma convidada especial. Estávamos sentados, o padre Milyanus, eu, Shreya e Estela Kujur. Os convidados foram chamados ao púlpito para ascender uma lamparina, símbolo da energia que ilumina a busca pelo conhecimento, assim foi me explicado por Shreya. A primeira palestrante, Estela Kujur defendeu seu doutorado em pouco tempo e é de Jharkhand, o estado de onde a maioria das mulheres vêm para trabalhar. Estela começou a fala fazendo o sinal da cruz, dizendo: “nós podemos crescer com a nossa cultura tradicional e, enquanto trabalhadoras, nós podemos dar um tempo para desenvolver a nós mesmas através da educação”.

A segunda palestrante, Shreya Jessica Dhan é estudante de Doutorado em Ciência Política (JNU) e sua pesquisa diz respeito a “Identidade dos Advasis” em seu estado. Shreya é de Ranchi, capital de Jharkhand e falou de forma entusiasmada sobre como se manter motivada diante de tantos problemas enfrentados pelas mulheres. Shreya utilizou o palco e o microfone para instigar a participação das mulheres fazendo questões como: quem veio a procura de melhores condições de vida? Quem quer emprego? Quem quer melhores condições de emprego? Quem quer lutar para melhorar a sua vida? As questões proporcionaram uma interação positiva com o público e Shreya, trouxe para a palestra uma visão motivacional da vida e das más condições de trabalho incitando as mulheres a repetirem no final, “I am the

best!” (Eu sou a melhor!). As mulheres interagem diante das indagações de Shreya e não da

livre expressão de suas inquietações, demonstrando que a Igreja atua muito mais como um dispositivo que alicerça a fala e a direciona quando indagada.

Depois da fala de Shreya, o irmão Simon falou sobre a relação que as pessoas estabelecem com o dinheiro, bem como a gestão sobre os recursos financeiros que estas mulheres recebem. O irmão usou dois exemplos para demonstrar as mulheres, como é importante gerenciar os recursos com cautela e com responsabilidade. O primeiro exemplo utilizado foi de uma professora de ensino fundamental, que ganhava 50.000 rupias por mês (aproximadamente R$ 2500,00), e um vendedor de carvão, que ganhava 1500 rupias por dia (R$75,00). O irmão disse que julgamos as pessoas pelo trabalho, segundo ele “embora o homem que trabalhe com carvão ganhe quase o mesmo valor que a professora, ela sempre terá uma posição de prestígio na sociedade. O tratamento dado a essas duas pessoas será diferente, porque o professor é visto como alguém educado, e o vendedor de carvão como alguém que não tem educação suficiente, e por isso faz esse tipo de trabalho físico.”

Uma questão foi dada as mulheres: “Qual a diferença entre a professora e o vendedor de carvão?” As mulheres tiveram um tempo para discutir entre elas e falar suas respostas. Uma participante A respondeu: “O professor pode ter uma vida boa e o vendedor de carvão não, porque não tem educação”; a outra participante B, por sua vez, respondeu: “O vendedor de carvão não sabe como gerenciar o dinheiro, porque bebe demais”; outra resposta veio da participante C: “Se você ganha mais e não sabe gerenciar o dinheiro, então o gasto se torna maior”; e, a última resposta da participante D: “A coisa mais importante é ser educado, mesmo se você ganha pouco, você pode gerenciar as coisas”.

O objetivo do irmão com essas questões visava demostrar as mulheres quão importante era o trabalho delas, mesmo sendo um trabalho doméstico, era necessário que as mulheres se mantivessem trabalhando. Sabemos que o espírito do capitalismo está mais presente na ética protestante,37 mas pelo contraste indiano, podemos ver um paradoxo na crença da Igreja Católica Indiana, a saber, entre a pobreza e a valorização do trabalho, talvez até numa perspectiva calvinista. Dessa forma, ser pobre, ou passar pela experiência da pobreza tem uma função social importante, pois é o motor propulsor das ações pensadas em via do empoderamento feminino, mesmo que o trabalho não seja valorizado.

A tentativa de empoderar as mulheres para que assumam uma postura cidadã frente a sociedade que vivem produz efeitos dentro da Igreja, de organização pedagógica, social e política. Essas formas de organização por parte da Igreja, vistas como “tecnologias da cidadania” se transformam em programas, discursos e táticas de capacitar esse “autogoverno de si” na perspectiva de um cidadão que parecia antes não estar tão visível assim (Cf.

Cruikshank, 1999). Se num primeiro momento o objetivo das mulheres era de conseguir um trabalho, agora, o compromisso é com a Igreja, que constituirá esse “enredamento” de apoio às mulheres, através da fé, ou das ONGS, e do sindicato, que estão vinculados a Igreja. É por isso que, mesmo que o vendedor de carvão ou a doméstica exerçam trabalhos físicos e sofram exclusão por parte da sociedade, essa exclusão é necessária dentro de um grau socialmente aceitável por parte da Igreja, pois se torna uma das razões de atuação política e social, preocupadas com questões de cidadania, educação e mobilização social, bem como de consolidação da própria comunidade de fé.