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TRABALHO E CIDADANIA

3.5 De que mulher indiana estamos falando?

A forma como as mulheres exercem seus papeis sociais está intrinsicamente relacionada com uma performance de gênero, que por sua vez transparece na divisão sexual do trabalho e na valorização destas profissionais dentro do mercado de trabalho. É preciso atentar para o fato de que o gênero não é uma categoria universal. Anterior a discussão de gênero é preciso também apresentar uma outra categoria, que se liga quase que instantaneamente as políticas feministas - a noção de mulher. Segundo Menon

Nas sociedades não ocidentais essa noção de indivíduo, separada de todos os outros indivíduos, como a unidade da sociedade, ainda não é incontestada. Em todos os níveis das sociedades não ocidentais, então, permanece um senso de self que é produzido na interseção de corpos individualizados e coletividades de diferentes tipos. A individuação então - isto é, o processo de se reconhecer como primariamente um indivíduo - é sempre um processo contínuo no presente contínuo em nossas partes do mundo (Menon, 2012, p. 54).

Assim como Menon devemos nos perguntar: “Sexo / gênero foi um critério universalmente relevante de diferenciação social? Ou seja, todas as sociedades, em todos os momentos e em todos os lugares, fizeram distinções masculinas / femininas que se sustentavam sobre corpos?” (Menon, 2012, p. 54). Esse questionamento nos faz lembrar da crítica da pesquisadora Nigeriana Oyeronke Oyewumi. Ela questiona a categoria de gênero como uma categoria universal chamando a atenção para a mistificação dos estudos africanos a partir da hegemonia das teorias ocidentais. A minha intenção não é fazer uma crítica aos estudos feministas realizados na África, mas chamar atenção, assim como faz Oyewumi para a produção da categoria mulher, a partir do meu trabalho de campo. Certamente só afirmar que a mulher se encontra dentro da categoria de gênero não satisfaz as nossas análises. De que mulher estamos falando? Quais os qualificadores desta mulher retratada por mim aqui?

A tendência primeiro em prestar atenção a mulher nos estudos feministas nos incita a questionar melhor esta definição. Por ora, me apoio na resposta de Oyewumi: “porque mulher é uma identidade baseada no corpo, e as identidades baseadas no corpo tendem a ser privilegiadas pelas pesquisas ocidentais sobre identidades não baseadas no corpo, como "comerciante" (Oyewumi, 1997, p. 17). Por que, então, não abandonamos essa categoria? Na perspectiva de Butler

as categorias de identidade frequentemente presumidas como fundantes na política feminista — isto é, consideradas necessárias para mobilizar o feminismo como política da identidade — trabalham simultaneamente no

sentido de limitar e restringir de antemão as próprias possibilidades culturais que o feminismo deveria abrir (Butler, 2003, p. 211).

Nesse caso, essa limitação não significa desconsiderar o uso de categorias classificatórias. A troca de novos termos por velhos, não resolve por si só o problema da interpretação dos próprios termos. O que temos é que “as restrições tácitas que produzem o “sexo” culturalmente inteligível têm de ser compreendidas como estruturas políticas generativas, e não como fundações naturalizadas” (Butler, 2003, p. 211).

Segundo Jeffrey Weeks (1999) “a sexualidade é, entretanto, além de uma preocupação individual, uma questão claramente crítica e política”. Para a autora as forças que modelam e influenciam os comportamentos sexuais e, portanto, os “atos performativos” estão relacionados com questões de “classe, gênero, raça. Avtar Brah (1996) no contexto indiano, ajuda-nos a refletir sobre as políticas feministas. Nas palavras da autora:

Agora, é amplamente aceito que "mulher" não é uma categoria unitária. Resta a questão de saber se pode ser uma categoria unificadora. Eu acredito que é possível desenvolver uma política feminista que seja simultaneamente local e global. Mas exige compromisso contínuo, juntamente com um esforço sustentado e meticuloso. Apelar ao desenvolvimento de práticas políticas que apreciem como e por que as vidas de diferentes categorias de mulheres são moldadas diferencialmente pela articulação de relações de poder; e como, em um determinado conjunto de circunstâncias, nós mesmos estamos 'situados' nessas relações de poder em relação a outras categorias de mulheres e homens ”[…] era uma mulher asiática que morava na Grã-Bretanha, sou sujeita ao racismo, mas como membro de uma casta dominante dentro da comunidade específica da qual me origino, também ocupo uma posição de poder em relação às mulheres de casta inferior. Do meu ponto de vista, uma política feminista exigiria de mim um compromisso de opor-se tanto ao racismo quanto ao casteísmo, embora eu esteja posicionada de maneira diferente dentro dessas hierarquias sociais, e as estratégias necessárias para lidar com elas possam ser diferentes (Brah, 1996, p. 172)

Logo nos primeiros contatos com o coletivo de mulheres Gharelu Sahayaka Sanstha, alguns aspectos estiveram presentes na constituição destas, mobilizando categorias como o gênero. Martina e Bela revelaram que ambas vieram para Déli contra a vontade de seus familiares. A cidade grande era considerada um “lugar ruim”, cheia de pessoas e criminosos perigosos. Há a crença nas aldeias, de acordo com uma das líderes, de que as mulheres que vêm para Déli tornam-se permissivas e acabam casando com homens contra a vontade da família e das pessoas da aldeia.

Marina comentou a respeito de uma mulher que “fugiu” de Déli. Ela mandava dinheiro para a família. A mãe da mulher havia se recusado a vir para Déli, pois morava no estado de Jharkahand e tinha de cuidar dos irmãos mais novos e do pai. Berna, a líder do grupo disse

conhecer a família da mulher, e de que entre a família e as pessoas da aldeia esta adquiriu o apelido de “Delhite”49, por não morar mais na aldeia e pela mudança de seu comportamento,

vestimenta e a língua que fala – ou hindi, ou inglês - no caso de Déli.

Através da fala das mulheres é possível notar que “o gênero não é de modo algum uma identidade estável, lócus de agência do qual procederiam diferentes atos, ele é, pelo contrário, uma identidade constituída de forma tênue no tempo – uma identidade instituída por meio de uma repetição estilizada de atos” (Butler, 1990, p. 3). No entanto, se as mulheres migram e deixam de repetir ações direcionadas a uma identidade de gênero feminina oriundos do ambiente da aldeia, isso demonstra que, ou ela se tornou uma “Delhite” ou ela não pertence, de certa forma, a sua aldeia. Neste sentido

o gênero, ao ser instituído pela estilização do corpo, deve ser entendido como a maneira cotidiana por meio da qual gestos corporais, movimentos e encenações de todos os tipos constituem a ilusão de um “eu” generificado permanente. Essa formulação desloca o conceito de gênero para além do domínio de um modelo substancial de identidade para um modelo que exige uma concepção de temporalidade social constituída. Significativamente, se o gênero é instituído por atos internamente descontínuos, o aparecimento da substância é precisamente isso: uma identidade construída, uma realização performativa na qual a plateia social cotidiana, incluindo os próprios atores, vem a acreditar, além de performar como uma crença. Se o fundamento da identidade de gênero é a repetição estilizada de atos no tempo, e não uma identidade aparentemente homogênea, existem possibilidades de transformar o gênero na relação arbitrária entre esses atos, nas várias formas possíveis de repetição e na ruptura ou repetição subversiva desse estilo” (Buther, 1990, p. 3)

Se a partir de Butler podemos afirmar que o gênero é uma construção social reiterada pela repetição de performances de gênero, torna-se necessário saber quais os desafios que as mulheres enfrentam, como um sujeito generificado, cotidianamente. Em uma conversa com Fatima, representante da ONG Chetnalaya, disse auxiliar as mulheres em quaisquer problemas que estivessem enfrentando. Ambos, o coletivo e a ONG disseram não confiar nas agências de emprego, através das quais as mulheres se dirigem aos seus novos destinos para trabalhar.

Fatima ainda me disse que as agencias recrutam as mulheres sem nenhum suporte para a cidade de destino, e tampouco garantem a segurança das mulheres nos locais de trabalho bem como formação adequada e cuidado. Marina, contou que quando alguém vem de Jharkhand para trabalhar, “elas não sabem como cozinhar a comida que os empregadores comem, elas

precisam ser ensinadas para evitar problemas com os patrões”. Carina relatou um evento de uma mulher pertencente a uma tribo que morreu em Déli e não havia ninguém para cuidar do corpo e do processo do funeral. “Ela foi trazida para Déli por uma agência de emprego, que a abandonou logo que recebeu o pagamento. Se ela fosse afiliada a Igreja ou parte de qualquer

sanstha (organização) pelo menos seu corpo teria recebido maior respeito”, contou ela.

Virginia, a mais antiga dentre as outras mulheres e uma das coordenadoras do coletivo falou sobre o abuso sexual que algumas mulheres enfrentam nas casas aonde trabalham. Ela nos contou a respeito de uma mulher que morava no bairro de Vasant Vihar em Déli, disse ela: “o homem da casa perseguia a mulher e levou para a cama. A mulher chamou a “Dona da casa” para contar sobre o marido dela, mas a patroa não acreditou na empregada. Se uma mulher não nos conta, como poderemos ajudar?” Quando perguntei se elas denunciavam esses casos na polícia Virginia disse que a violência deveria ser gerenciada dentro do santha e quando isso ocorre elas retiram a mulher da casa. Ela ainda compartilhou a história de uma mulher que havia trabalhado em uma casa por quase 5 anos, mas quando ela pediu dinheiro para sair foi assassinada. O caso foi tido como suicídio. “Há também casos em que as trabalhadoras domésticas são espancadas até a morte por seus patrões”, reiterou ela.

Berna e Virginia são as coordenadoras do coletivo e criticaram a atuação da polícia frente a segurança das trabalhadoras em Déli, “o único recurso disponível é abordar ela, [a polícia], quando os casos acontecem. No entanto, nós sabemos que a polícia tem certos preconceitos dizendo que a mulher ‘queria’ ou ‘sugeriu’ e que assim convida a violência sobre si mesmas”, disse Berna. Os relatos acima refletem os atos de violência engendrados na estrutura das sociedades patriarcais. Segundo Sylvia Walby, a violência masculina “como uma forma de poder sobre as mulheres, e além do mais, tem uma forma social regular e, como resultado das expectativas bem fundamentadas das mulheres de sua natureza rotineira, tem consequências para as ações das mulheres” (Walby, 1989, p. 224). Menon questiona se somente mulheres consideradas boas merecem proteção? Para a autora:

Toda mulher sabe aquelas posições que marcam uma ‘mulher boa’ e ‘mulher ruim’, susheel aurat e baazaru aurat, Madonna e prostituta, não são estáveis e fixos. Toda mulher vive com o constante conhecimento de quão fácil é cair do lado da luz para o lado escuro, e quão impossível, uma vez caída, voltar novamente à luz. Um gesto impensado, um movimento físico descuidado, o tipo errado de roupa em um local público ou em casa e, de repente, é isso! Você é exposta como uma prostituta (Menon, 2012, p. 131).

Para Butler, o corpo se torna generificado “por uma série de atos renovados, revisados e consolidados no tempo” e o gênero é aquilo que se supõe, invariavelmente, sob coerção, diária

e incessantemente, com angústia e prazer”. Quando Virginia diz que “as mulheres que nós temos são boas”, na tentativa de explicar a boa índole das trabalhadoras isto recai num processo de reiteração de valores cristãos definidos pela Igreja Católica, mas também influenciados pelas próprias mulheres do coletivo, que cobram e exigem umas das outras comprometimento e responsabilidade. Essas mulheres têm, portanto, suas escolhas influenciadas por ideias patriarcais como um mote norteador da construção da cidadania.