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RELIGIÃO E TRABALHO

2.4 O papel social da Igreja

Conheci o Padre Jesuíta Vincent na Universidade Jawaharlal Nehru, em 2016, na cidade de Nova Déli, e desde então frequentei pela primeira vez a Igreja Saint Dominique, onde as mulheres realizam suas reuniões, no bairro de Vasant Vihar, na Zona Sul. Vincent foi

ordenado em Jharkhand, estado no qual nasceu e depois trabalhou como Padre antes de mudar- se para Nova Déli. Vincent é da etnia Oraon e atua profissionalmente no Indian Social

Institute41 como pesquisador com temáticas indígenas. A colaboração de Vincent foi fundamental para que eu pudesse acessar outros espaços ligados à Igreja Católica, e numa dessas conversas com ele, perguntei-lhe:

(Mayane) Você acha que é papel da Igreja Católica intervir socialmente auxiliando as pessoas mais pobres?

(Vincent) Depois do Vaticano II, com a teologia da Libertação a Igreja começou a olhar para o indivíduo não só como um indivíduo, mas um indivíduo na forma holística. Numa dimensão política, social, econômica. Se você tomar conta somente da religião não da conta de tudo. Se só enfatizarmos a religião, como fica a sobrevivência? Se só enfatizarmos a religião, não faz sentido. Não é prioridade, mas empoderar as pessoas para ir além, livre da opressão. A Igreja na Índia tem esse papel econômico, social e político. O objetivo é de libertar as pessoas da opressão, da condição de pobreza reformando a vida delas e a consciência social.

Se percebermos a atuação da Igreja Católica no meio dos pobres certamente isso não é natural. Durante os primeiros contatos da Igreja com as populações Advasis a instituição tem procurado estabelecer uma relação de confiança e de preocupação com o futuro destas populações. David Mosse em seu estudo sobre os católicos no sul indiano diz que a Igreja tem em sua formação uma “força imperial paradigmática”. Mosse (2017) se utiliza da ideia de

complexio oppositorum de Carl Schmitt para destacar o catolicismo como um conjunto de

antinomias que precisamente envolve tensões e ambiguidades. (Cf. Mosse, 2017, p. 105). Ainda para o autor

Torna-se, então, uma questão histórica e empírica, como o catolicismo é feito localmente através (ou freqüentemente contra) hibridação, ambiguidade ou contradições, e como agentes católicos (incluindo missionários e padres) tiveram que trabalhar para forjar um domínio de ação para si mesmos. Nesse sentido, o catolicismo pode ser considerado uma realização da missionização como um encontro cultural, não como sua premissa. E essa conquista em si tem impactos sociais profundos. Em suma, o catolicismo não é uma "essência trans-histórica" ou um regime cultural translocal, com agência própria. É um campo emergente de debate e prática, o produto de histórias regionais particulares tendo efeitos particulares. A aparente coerência, universalidade e autoridade da igreja foram (e ainda são) produzidas por meio de luta e ação contingente, que conseguiram forjar um reino separado da religião católica apenas ocultando esses processos confusos e exclusões constitutivas. 41 Indian Social Institute é um instituto fundado em 1951. O Instituto é apoiado pela Congregação Missionária da

Companhia de Jesus e trabalha para ser um centro de pesquisa engajado com a transformação social prestando serviços, principalmente, para a Organização das Nações Unidas (ONU), no que diz respeito aos desafios sociais enfrentados na sociedade indiana. Disponível em:< https://isidelhi.org.in/home/page/2> [Acessado em 01 set. 2019, 22:22].

Examinando maneiras pelas quais, por um lado, o catolicismo está profundamente localizado e produzido por outras culturas e, por outro, como o catolicismo abre espaço para tipos variantes de pensamento, idéias alteradas de pessoa ou modos de significação ou ação social radical , permite o afastamento de falsas dicotomias de continuidade ou descontinuidade cultural na antropologia do cristianismo. É, então possível retornar de uma maneira mais histórica à questão de Schmitt de como o catolicismo e seu "complexo de opostos" produzem um engajamento político (Mosse, 2017, p. 106). Já, se compararmos com outros contextos, veremos que essa disposição da Igreja e principalmente do catolicismo de se reproduzir através de outras culturas ganha um caráter fortemente transnacional, mas também local. Andreas Bandak (2017) em seu texto sobre o catolicismo na Síria questiona as tensões entre a “opulência” e “simplicidade” naquele cenário. Bandak diz que a Igreja está dividida entre a caridade/humildade e a economia/riqueza. A tensão prática que se coloca nesse contexto é o uso dos fundos da igreja para reformas caras, bem como o uso privado desse dinheiro para uma vida de extravagância entre os bispos em contraponto ao pedido dos fiéis para que esse fundo sirva para “aliviar o sofrimento dos pobres e necessitados e não pra ganhos ilícitos e imorais” (Bandak, 2017, p. 160).

De outro modo, no contexto do Norte da Itália, a pesquisadora Andrea Muehlebach (2013) procura destacar em seu trabalho porque algumas características do neoliberalismo são tão atraentes para muitos católicos. O que percebe a partir de seu contexto de observação é que “A tentativa do catolicismo de infundir o mundo contemporâneo com amor (caridade ou caritas). A igreja não considera o amor uma emoção humana. Em vez disso, o amor é uma expressão do divino”. Há, a partir de sua análise dois argumentos centrais para entender como esse sentimento opera na relação com o catolicismo. Pode operar incitando uma ética de “justiça distributiva”, no sentido de que esse amor é utilizado como justificativa para agir contra o sofrimento através da boa ação, e os pobres são feitos de objetos de amor para receber esses atos bondosos. Portanto, o sentimento de amor destacado pela autora é também corolário de outros valores - caridade, compaixão, voluntarismo que não alteram o status da pobreza, mas reforçam ainda mais a desigualdade social (Cf. Muehlebach, 2013. p. 454). Por outro lado, o amor direcionado aos pobres também pode ser compreendido como uma forma de solidariedade mantida através da caridade. Em ambos os casos não se percebe alteração do status social do indivíduo, mas uma dependência, seja em relação as pessoas que têm atos bondosos ou aos Padres que promovem a caridade como um valor religioso.

Os dois exemplos, da Síria e da Itália, foram trazidos aqui para destacar a expansão da Igreja Católica através das diferentes sociedades, dando destaque ao seu papel social frente as desigualdades. Segundo Boff o que a Igreja faz é “uma opção preferencial pelos pobres como

expressão de sua fidelidade ao Evangelho e ao clamor dos oprimidos”, sua crítica vai além, “não se trata só ser para o povo, mas caminhar com o povo e fazer o próprio povo andar e chegar a sua própria humanização” (Boff, 1994, p. 64). Há, no entanto, desafios que se apresentam a partir da presença cristã no território indiano: Ser uma Igreja atuante diante do cenário de desigualdade; preservar a unidade do evangelho, e dialogar com os vários públicos (hindus, muçulmanos, Budistas, Jainistas, Sikhis, etc).

De acordo com Mosse o catolicismo principalmente no sul da Índia se tornou um recurso social de tomada de consciência, desafio cultural e mobilização política vinculado a luta dos Dalits para desmantelar a hierarquia das castas hindu, tornando-se, dessa forma, parte de uma luta por reconhecimento e de voz política entre uma identidade cultural Dalit. (Cf. Mosse, 2017, p. 114). De fato, a partir do meu trabalho de campo, pude observar que o Catolicismo não só contribuiu, no Sul, para ressignificar a experiência Dalit no contexto indiano, mas entre as tribos indígenas do Norte também representou uma mudança significativa para incentivar, educar e mobilizar as populações indígenas a estudar, procurar emprego e lutar pela garantia de seus direitos sociais e políticos. Essa Igreja parece condizer em muitos aspectos com a fala do Padre Vincent e com uma Igreja que se sustenta a partir do público desfavorecido. No entanto, essa preocupação da Igreja com a sobrevivência das populações Dalits e tribais atrelada à prática social, não só dá sentido à forma de atuação da Igreja Católica nesse contexto, bem como, visa discutir o porquê desta vontade de empoderar como parte da prática religiosa.