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AS MULHERES INDIANAS PRECISAM REALMENTE DE LIBERTAÇÃO?

4.5 Se só Jesus liberta, o que a Igreja faz?

Ideais de “libertação” recriam imaginários sociais de diferentes grupos políticos e em diversos setores da sociedade - movimentos sociais, escolas, coletivos, ONGs, Igrejas, etc -. A atuação da Igreja Católica para além do trabalho religioso e seu objetivo de libertar os pobres e oprimidos não foi algo que nasceu do acaso. É preciso destacar dois grandes momentos que

contribuíram para que a Igreja começasse a repensar sua atuação com as questões sociais de seu tempo: um marco foi o Concílio Vaticano II; e o outro foi a Conferência Episcopal Latina Americana (CELAM). O primeiro teve uma repercussão dentro da própria estrutura da Igreja no Vaticano proposto pelo Papa João Paulo II, alterando estruturas da Igreja com a finalidade de se aproximar das populações pobres levando o evangelho a essas populações adequando a língua e linguagem, de forma a fazer sentido para elas. E o segundo, é um organismo que busca em comunhão com a Igreja universal contribuir para a ação pastoral da Igreja na América Latina e no Caribe, reforçando sua ação social54.

Na América Latina um dos expoentes dessa Igreja reformadora se deu a partir da Teologia da Libertação, influenciando não só o contexto Latino Americano, mas outros países, como a Índia. A fala do padre Joaquim expressa em certa medida a preocupação com essa Igreja atuante entre as comunidades empobrecidas. Quando perguntei ao Padre como ele via o papel social da Igreja dentre os pobres ele disse:

J: Quando você diz que líderes religiosos como padres devem celebrar as missas tem um certo jeito de focar na ajuda espiritual, essa é a ideia, mas basicamente veja, Jesus veio nesse mundo, e no Evangelho nós vemos que ele foi a sinagoga e deu os livros que ele lia do livro de Isaías, então aqueles que eram pobres, analfabetos, que estavam na prisão começaram a ler a mensagem. Está no livro de Lucas. Então aqueles que são pobres, que estão necessitados, e aqueles que estão na prisão, para eles, Jesus veio para anunciar a mensagem de alívio e libertação também. Então quando vemos um padre fazendo trabalho social, com questões legais e ajudando. As pessoas podem pensar que isso não é serviço do padre ou religioso, mas veja, se você quer ajudar elas espiritualmente, se elas estão enfrentando dificuldades nas suas vidas, passando pela pobreza, e são subordinadas e oprimidas pela sociedade e você quer rezar com elas. Você será capaz de se conectar com elas? Não. Será difícil para elas, de ter esse cuidado com a fé, a menos que seus problemas sejam resolvidos. Veja, mesmo no tempo de Jesus ele se conectou com as pessoas, e entendeu seus problemas. Primeiro ele trabalhou para isso. Para aqueles que estavam doentes, ele foi e quando foi preciso ele libertou eles. Então, a doença e os problemas, a subordinação e opressão, você precisa considerar isso primeiro. Então você será capaz de entender. É claro que deve haver um balanço, como padres e religiosos não podemos ir somente para o trabalho social, e esquecer o principal trabalho que nós temos, mas através destas coisas, do trabalhado social, da ajuda legal, é uma das formas de ajudar as pessoas a sair dessa vida e assim elas tem uma vida melhor e não necessariamente nós aproximamo-las do Evangelho diretamente, mas quando você está ajudando as pessoas legalmente considerando seus direitos, dando voz a elas, de alguma forma você está ensinando o Evangelho. Pode não ser diretamente com a bíblia ou o Evangelho, mas de diferentes formas.

O diálogo da Igreja com as dificuldades que as pessoas passam em suas vidas descritos pelo padre Joaquim nos faz pensar no papel da Igreja frente essa intersecção identitária com outras religiões que não a católica. Na Ásia a Teologia da Libertação55 revigorou um outro

debate acerca do pluralismo e do fundamentalismo religioso, principalmente na Índia, país de maioria Hindu56. Nesse contexto de diálogo inter-religioso surge outras presenças que foram

ausentes da história, mas que com essa nova teologia insurgente estiveram muito presentes no projeto de emancipação dos pobres e dos oprimidos, principalmente os Dalits e as tribos. Nas palavras de Amaladoss,

somos, por um lado, sensíveis a qualquer coisa que possa parecer agressiva e, por outro, cônscios de nossa vocação para proclamar a Boa Nova de Jesus, e em nome dela, promover a reconciliação e colaborar com todas as pessoas de boa vontade na defesa e promoção de valores humanos e espirituais. Todas essas dificuldades não significam que não devamos proclamar a Boa Nova de Jesus, mas que devemos fazê-lo de maneira dialógica (Amaladoss, 2000, p. 24).

A interpretação da pobreza sob a luz do Cristianismo fez desta um dos pilares da teologia da libertação fazendo insurgir no contexto da Igreja o entendimento de que a pobreza teria três significados “pobreza real como um mal – que é algo que Deus não quer, pobreza espiritual, no sentido de uma prontidão para fazer a vontade de Deus; e solidariedade com os pobres, juntamente com protestos contra as condições sob as quais sofrem” (Gutiérrez, 1973, p. 25). A Declaração da Liberdade Religiosa do Concílio Vaticano considera, pois, essa atuação como o caminho para “salvar e alcançar a felicidade em Cristo”, não obstante,

55 O debate acerca da Teologia da Libertação não é algo consensual dentro da Igreja Católica, apresentando dessa forma, muitas controvérsias que foram descritas no documento “Instrução sobre alguns aspectos da ‘teologia da libertação`” (1984), escrito pelo Cardeal Joseph Ratzinger: “8. Quanto à Igreja, a tendência é de encará-la simplesmente como uma realidade dentro da história, sujeita ela também às leis que, segundo se pensa, governam o devir histórico na sua imanência. Esta redução esvazia a realidade específica da Igreja, dom da graça de Deus e mistério da fé. Contesta-se, igualmente, que a participação na mesma Mesa eucarística de cristãos que, por acaso, pertençam a classes opostas, tenha ainda algum sentido. 9. Na sua significação positiva, a Igreja dos pobres indica a preferência, sem exclusivismo, dada aos pobres, segundo todas as formas de miséria humana, porque eles são os prediletos de Deus. A expressão significa ainda que a Igreja, como comunhão e como instituição, assim como os membros da mesma Igreja, toma consciência, em nosso tempo, das exigências da pobreza evangélica. 10. Mas as « teologias da libertação », que têm o mérito de haver revalorizado os grandes textos dos profetas e do Evangelho acerca da defesa dos pobres, passam a fazer um amálgama pernicioso entre o pobre da Escritura e o proletariado de Marx. Perverte-se deste modo o sentido cristão do pobre e o combate pelos direitos dos pobres transforma-se em combate de classes na perspectiva ideológica da luta de classes. A Igreja dos pobres significa então Igreja classista, que tomou consciência das necessidades da luta revolucionária como etapa para a libertação e que celebra esta libertação na sua liturgia”. (Joseph Ratzinger, 1984) repugnante. No entanto, meu objetivo ao trazer algumas dessas críticas, nessa discussão dentro da Igreja Católica, não é tomar partido em prol da Teologia da Libertação, mas apresentar o contexto em que essa teologia aparece predominantemente na Igreja Indiana. 56 Para discutir mais sobre o fundamentalismo e a produção de uma alteridade ou outro sujeito republicano ver Harding, Susan (1991).

acreditamos que esta única religião verdadeira se encontra na Igreja católica e apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou o encargo de a levar a todos os homens, dizendo aos Apóstolos: Ide, pois, fazer discípulos de todas as nações, baptizando os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos prescrevi. (Mt. 28, 19-20). Por sua parte, todos os homens têm o dever de buscar a verdade, sobretudo no que diz respeito a Deus e à sua Igreja e, uma vez conhecida, de a abraçar e guardar (João Paulo II). A liberdade religiosa bem como a liberdade para exercer seus direitos e deveres têm fundamento na “dignidade da pessoa”, pois afinal para os cristãos “A liberdade religiosa na sociedade é de modo especial plenamente consentânea com a liberdade do ato de fé cristã”. Além do mais, a Igreja que é fiel a Cristo, é a Igreja que segue o caminho de Cristo e dos Apóstolos e

reconhece e fomenta a liberdade religiosa conforme à dignidade humana e à revelação de Deus. [...] O fermento evangélico trabalhou assim longamente o espírito dos homens e contribuiu muito para que eles, com o decorrer do tempo, reconhecessem mais plenamente a dignidade da sua pessoa e amadurecesse a convicção de que, em matéria religiosa, esta devia ficar imune de qualquer coação humana na vida social (João Paulo II).

Aos fiés cabe difundir a mensagem de Cristo a fim de formarem sua própria consciência emanando e ensinando “A verdade que é Cristo”. Se por um lado o Concílio Vaticano II representou uma mudança na forma como o catolicismo se configurava, no contexto indiano o espaço da Igreja é recriado para atender ambas as necessidades, espirituais e socias. O Cristo cultuado não é o Cristo que salva as pessoas, mas um Cristo libertador, que traz não só a “Boa Nova”, mas a libertação. Que libertação é essa que a Igreja Indiana quer? Libertação do que? Já nos é sabido que o caráter radical da emancipação de Cristo se dá no social para a Igreja Indiana, com inspiração na Teologia da Libertação. No entanto, alguns dos desafios para apresentar a “Boa Nova” aos povos Asiáticos são destacados por Amaladoss da seguinte forma:

Primeiro, um Deus que entra na história para identificar a pessoa divina com os pobres sofredores é atraente para muitos asiáticos [...]. Segundo, enquanto as tradições religiosas asiáticas indicam a pessoa humana ideal como alguém que se torna pobre, livre de todos os desejos, Jesus também opta pelos pobres para lutar com eles pela transformação da sociedade e pela libertação de todos. Terceiro, enquanto algumas das tradições asiáticas e algumas correntes do próprio cristianismo veem a salvação em termos pessoais, a Boa Nova de Jesus a vê como um projeto cósmico, atuante na história, mas levando para além dela, para a reconciliação, de todas as coisas em Cristo” (Amaladoss, p. 25)

No contexto asiático o que se têm é uma experiência dialética em relação a proclamação e o diálogo, ou seja, uma experiência hermenêutica que “não se separa o Reino de

Deus da Igreja, mas ao mesmo tempo respeita a distinção deles sem confundi-los. Não estamos em um plano bem definido, mas em um plano inclusivo” (Amaladoss, 2000, p. 25). Isso se dá dessa forma porque o pluralismo do contexto indiano proporciona não só um encontro de pessoas, mas a “cultura com a qual ele interage pertence a um povo. O que acontece é um encontro entre duas comunidades com crenças, culturas e modos de vida próprios” (Amaladoss, 2000, p. 28). O sentido da libertação adquire então uma dimensão política contra a opressão e a pobreza, enquanto que para a Igreja de Roma tradicional “a primeira libertação, ponto de referência para as demais, é a do pecado”.

No âmbito do debate antropológico destacamos essa pluralidade assumida pela Igreja em diversos contextos como um caráter plural e transnacional tanto da antropologia quanto do próprio catolicismo. Estamos tratando, inspirados em Robbins (2003), na tese de que há diferentes tipos de cristianismo. Sendo assim é possível notar, na Índia, um catolicismo que procura fortalecer e mobilizar o caráter social da Igreja entremeio as populações mais pobres. redescobrindo os sentidos da libertação na experiência de Cristo e do Evangelho57.