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TRABALHO E CIDADANIA

3.6 Cidadania, opressão e cotidiano

Segundo Chakrabarty (1992) no imaginário indiano a ideia de cidadania se traduz na definição libera l clássica do indivíduo. O autor argumenta que as narrativas construídas sobre a Índia no século XIX, demostravam construções imperialistas e nacionalistas que perpetuavam representações da Índia baseados na ideia de “falta”. Essa ideia era reiterada pela dicotomia criada a partir das oposições: despótico/capitalista, medieval/moderno, feudal/capitalista. Os grandes atores dessa representação da “falta” encontravam-se, principalmente, dentre as classes subalternas, trabalhadores e agricultores, populações que deveriam, segundo a lógica da falta, ser tuteladas e educadas a fim de superarem a ignorância. (Cf. Chakrabarty, 2015, p. 340).

A acepção da Índia como um país com muitas carências a serem supridas, gerou no século XIX a consolidação de uma elite pró-nacionalista indiana que se encontrava nesta transição – de colônia Britânica para uma Índia soberana -. Neste sentido, a cidadania foi um discurso que ganhou peso neste cenário, por fazer parte um conjunto de reivindicações que se alicerçavam muito bem com o nascimento do cidadão moderno. A grande razão para isto é que a ideia de cidadão fora construída sob a concepção de que a cidadania se exerce em grande medida pela conquista de direitos, e pela capacidade de ligar-se a uma comunidade política, fazendo dos direitos, objetivos a serem perseguidos por diferentes grupos.

A análise de Dullo (2014) sobre a proposição de subjetividades democráticas cidadãs no Brasil a partir do pensamento de Paulo Freire nos ajuda a refletir sobre a “emergência do povo na vida pública” trabalhando com uma questão cara a todos os regimes que se dizem democráticos, inclusive na Índia. Com uma pergunta provocadora Dullo questiona: “como trabalhar pela emancipação de uma população que não se via e não era vista pelos demais como “povo”? [...] mais ainda, qual operação é viável para que um indivíduo se torne autônomo, capaz de decidir por si mesmo?” (Dullo, 2014, p. 25). Estas questões fazem ressoar outras tantas, mas eu acrescento ainda: uma vez que a autonomia do sujeito seja garantida (legalmente), como fazer com que esta perdure diante das reais necessidades do povo e das

práticas cotidianas? Quais operações são consideradas viáveis para que um indivíduo se torne cidadão?

Primeiro, para que exista cidadania “é preciso que essas pessoas sejam livres num nível muito fundamental. Isto é, não apenas livres de uma coerção externa como também livres para realizar alguma coisa” (Dullo, 2014, p. 28). Chakrabarty (1992) trouxe ainda, uma importante contribuição quando se pensa em ideias de “liberdade” no contexto indiano. Para ele por mais que a Índia se apoie em concepções de cidadania liberal a “A liberdade no Ocidente, argumentaram vários autores, significava jathechhachar, fazer o que quisesse, o direito à indulgência própria. Na Índia, dizia-se, liberdade significava liberdade do ego, capacidade de servir e obedecer voluntariamente” (1992, p. 346). Há nestas duas proposições, formas distintas de perceber, por exemplo, a autoridade da opressão. Porém, não é apenas a liberdade que está em jogo, mas a autoridade sobre a qual se toma consciência e se luta para se desvencilhar. Na primeira, a autoridade aparece como algo externo ao indivíduo, e na segunda, pertence ao plano da consciência, muito mais ligado ao “renunciante indiano” de Dumont. A minha opção neste trabalho dialoga com a primeira noção, pois revela, no meu entendimento, a reprodução e a subversão de estruturas de opressão, que se vinculam ao ideal de cidadão, por meio da relação com o mundo social.

Mesmo com uma aparente certeza somos capazes de reconhecer aquilo que nos oprime. E assim como Foucault (1978) também nos questionamos “Por que somos reprimidos? Por que dizemos, com tanta paixão e tanto ressentimento contra nosso passado mais recente, contra nosso presente e contra nós mesmos, que somos reprimidos?” (Foucault’s, 1978, p. 8- 9). Para Sian Lazar “o estudo da cidadania é o estudo de como nós vivemos com os outros dentro de uma comunidade política” (Lazar, 2016, p. 1). Essa noção certamente liga-se ao fato de que

os direitos se associam com este status da teoria que permite indivíduos a buscar suas próprias concepções de vida boa, desde que não interfiram na busca das outras pessoas, e o estado protege o status quo. Em retorno, os cidadãos têm mínimas responsabilidades, as quais giram em torno primeiramente de manter o estado funcionando, pagando os impostos, ou participando no serviço militar” (Lazar, 2016, p. 1).

Lazar (2016) chama atenção para o fato de que “primeiro, que a cidadania é mais do que simplesmente um status denotando pertencer a uma sociedade, mas é constituída por um conjunto de práticas associadas à participação na política. Segundo, a subjetividade política é algo que não se supõe que exista, mas que deve ser criada” (Lazar, 2016, p. 2). A cidadania

nesta perspectiva, seria “um mecanismo de reivindicação nas diferentes comunidades políticas, sobre as quais o estado é apenas uma” (Lazar, 2016, p. 1). Então se a cidadania aparece atrelada a uma comunidade política, como as mulheres se percebem enquanto parte dessa comunidade? Muito foi dito sobre a situação em que essas mulheres se encontravam na relação com seus patrões e com as políticas de reconhecimento do trabalho doméstico fora do lar, além de outros exemplos, para ilustrar as identidades que estão operando na construção desse sujeito - mulher cidadã.

Lazar destaca que a Declaração Francesa dos Direitos do Homem (1789) foi mais radical em relação ao questionamento do regime de “state power” e da soberania. O que está em jogo aqui “é a reivindicação de igualdade do homem em nome dos direitos individuais, especialmente aqueles relacionados a vida, liberdade e a busca da felicidade, propriedade, segurança, e resistência a opressão” (Lazar, 2016, p. 3).

Uma comunidade política para Lazar se dá principalmente pela voluntariedade de formar uma coletividade (Cf. Lazar, 2016, p. 3). A voluntariedade, nesse sentido, é mediada por diversas questões subjetivas e objetivas que fazem da cidadania uma produção cultural, ou seja, a produção do sujeito perpassa uma noção de cidadania que também é construída por meio da cultura. Segundo Días- Barriga & Dorsei (2018) a experiência subjetiva da cidadania cultural inicia com a tese de que a cidadania legal não garante os direitos e proteção as pessoas que são vistas como marginais para a nação. (Días- Barriga & Dorsei, 2018, p. 2). Esse argumento nos dá base para pensarmos na Cidadania cultural como um novo elemento das políticas reivindicatórias. Segundo Anderson

[E]stereótipos racistas se cruzam com questões de cidadania e resultam em uma hierarquia racista que usa cor da pele, religião e nacionalidade para construir algumas mulheres como sendo mais adequadas para o trabalho doméstico do que outras. A posição das trabalhadoras domésticas em relação ao senso formal de cidadania (que passaporte uma pessoa possui) ilumina os debates mais amplos sobre cidadania e demonstra que a relação das trabalhadoras domésticas com o Estado incentiva e reforça a racialização do trabalho doméstico (Anderson, 2000, p. 3).

Ainda sobre a experiência subjetiva da cidadania, podemos considerar esse processo de “self-making” e “being-made” articulado com esquemas raciais e de diferença cultural que se cruzam com jeitos diferentes de localizar grupos minoritários e em vulnerabilidade social, como no caso das trabalhadoras domésticas. Aihwa Ong (1996) trata dessa diferença no contexto dos Estados Unidos comparando a experiência dos imigrantes asiáticos pobres e ricos. Segundo a autora a cidadania é um processo de “subjetificação” destes sujeitos. Imigrantes

asiáticos negociam diariamente suas diferenças com os Estado e com a sociedade civil Norte Americana. Esse processo reflete na normatização de oposições raciais baseadas no capital humano e no poder de consumo dessas populações. (Cf. Ong, 1996, p. 737).

A cidadania cultural pode conferir alguns privilégios para as mulheres dentro da democracia indiana que de certa forma pode ajuda-las a obterem algum grau de prestígio, mas isso não altera a hierarquia social baseada na diferença racial. Pois a experiência delas enquanto migrantes, mulheres e Advasis não é negligenciada simplesmente por falar inglês, comprar um saree de um tecido refinado, ou adquirir certa independência financeira. Para Renato Rosaldo a cidadania cultural “refere-se ao direito de ser diferente (em termos de raça, etnia ou idioma nativo) em relação às normas da comunidade nacional dominante, sem comprometer o direito de pertencer, no sentido de participar dos processos democráticos do Estado-nação” (Rosaldo, 1994, p. 57). O que se vê é um processo de equiparação dessas mulheres com a normatização de uma mão-de-obra feminina reprodutora das desigualdades de casta, gênero e classe.

Concordo com Dullo que “se igualarmos relação de poder com dominação, não será possível analisar o exercício do poder como produção de uma subjetividade democrática” (Dullo, 2014, p. 26). Nesse sentido a opressão contribui não somente para a reprodução de estruturas patriarcais e dominadoras como vimos ao longo do capítulo, mas ela também é produtora de subjetividades que agem criativamente para subverter lógicas de opressão. Quanto a isso tenho uma importante consideração a ser feita e que permite concluir a partir deste capítulo algo que instantaneamente eu conectei, ou seja, a discussão sobre cidadania com a Marcha dos trabalhadores. O fato de que as mulheres não puderam participar na Marcha revela por si só, outras formas de garantir experiências cidadãs e democráticas neste contexto, que não está vinculado diretamente com eventos, mas com o ordinário, ou melhor, com a vida cotidiana. Foi, portanto, isso que me permitiu recriar o sentido da cidadania e da opressão como o lócus de encontro da agência.

Esse capítulo tem sido construído pensando em como a Marcha se traduzia numa experiência democrática e cidadã, e ao mesmo tempo as análises têm demonstrado que a opressão opera na vida das trabalhadoras cotidianamente e não somente com a participação em marchas e sindicatos, mas na vida diária, na relação com os patrões, com a Igreja e dentre elas mesmas. Busco, portanto, desvincular a ideia de agência a situações de opressão que ganham uma visibilidade maior nestes eventos, quero com isso, me voltar para o cotidiano. Os estudos de Veena Das (2007) têm contribuído de forma significativa para recriar essa ideia a partir da minha vivência na Marcha. O ordinário para Das é interpretado da seguinte forma: “A suspeita do ordinário parece-me estar enraizada no fato de que os relacionamentos exigem uma atenção

repetida aos objetos e eventos mais comuns, mas nosso impulso teórico geralmente é pensar na agência em termos de escapar do comum e não como uma inclinação para dentro dele” (Das, 2007, pp. 6-7).

Para a autora, os grandes eventos da Partição da Índia em 1947 e o assassinato da Primeira Ministra Indira Gandhi suscitaram questionamentos a partir da violência cotidiana na consolidação do estado-nação indiano. Das (2007) argumenta que as narrativas recriadas a partir do medo e do trauma são consequências de atos violentos, como o ataque a comunidades muçulmanas em Gujarat em 2002, os ataques as comunidades Sikhis no estado de Panjab, fizeram, por exemplo, que “eventos de violência coletiva continuassem configurando e entrelaçando experiências de comunidades e do estado de forma letal, especialmente para as minorias na Índia (Cf. Das, 2007, p. 3).

Eu sugiro pensarmos o sujeito como um agente que está implicado nas suas experiências cotidianas durante o curso de sua vida. O sentido que eu atribuo as formas como a cidadania é vivida diariamente é porque faço alusão ao uso de “fragmentos”, ou seja, como um meio de “aludir formas particulares de habitar o mundo” (Das, 2007, p. 5). Dessa forma, conclui-se que, se há, portanto, a hipótese de que as mulheres se vejam como oprimidas, isso certamente não é tudo que elas são, pois elas recriam ativamente no cotidiano maneiras de ser que passam por formas de agenciamento relacionadas, ou não, a situações de opressão.

CAPÍTULO 4