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4. DECLÍNIO E QUEDA DA TEORIA NORMATIVA DA

4.2. A dogmática finalista e seus pressupostos filosóficos

Segundo Juarez Tavares 196, o sistema finalista, como doutrina filosófica, implica duas teses distintas: a primeira afirma que o mundo se organiza com vistas a um fim, e a segunda postula que a explicação dos fenômenos consiste em aduzir o fim ao qual eles se dirigem.

Somente essa fundamentação já seria suficiente para percebermos o giro que se tem com a dogmática finalista em relação aos sistemas causais, sejam estes causal- naturalistas (e, portanto, fundamentadores da teoria psicológica da culpabilidade) ou causal-valorativos (e, portanto, fundamentadores das teorias normativas da culpabilidade), os quais (principalmente o segundo) Welzel, o mais referido dentre os

193 É evidente que, diferentemente dos demais doutrinadores normativistas, Goldschmidt, ao tentar construir sua culpabilidade de maneira totalmente valorativa, acabou considerando dolo e culpa, assim como a imputabilidade, pressupostos da culpabilidade, e não seus elementos. Não obstante, o fato de não ter sistematizado dolo e culpa em qualquer outra posição na estrutura do crime, não faz com que o autor escape das mesmas críticas feitas aos demais. Não obstante, é interessante notar, neste ponto, uma aproximação, em Goldschmidt, e ainda que não proposital, daquilo que viria ocorrer com a culpabilidade no finalismo.

194

Cf. SALAS, op. cit. p. 124.

195 Assis Toledo, ao mencionar a ponderação feita por Dohna acerca da culpabilidade, diz: “Para compreender-se esta importante construção, basta meditar sobre a famosa distinção estabelecida por Graf zu Dohna entre valoração do objeto e objeto da valoração. A culpabilidade é uma valoração; não pode estar, portanto, misturada com o objeto da mesma valoração que lhe é exterior. Assim, culpabilidade é apenas a censurabilidade, isto é, a valoração; o dolo situa-se no objeto da valoração.” (op. cit., 2008. p. 230).

doutrinadores finalistas, fez questão de superar com seu novo sistema jurídico- penal.197

Segundo Fábio André Guaragni:

De fato, a teoria finalista implicou, antes de tudo, no câmbio do paradigma filosófico utilizado pela dogmática jurídico-penal para estruturar o conceito analítico do crime. O neokantismo determinara um absoluto divórcio entre os universos do ser e do dever ser, propondo que todas as questões ensejadas pelo direito penal deveriam ter soluções no segundo, o que implicou em plena liberdade para o legislador. Opondo- se a isso, Welzel considerou necessário estabelecer limites ônticos ao legislador.198

Os reflexos destes limites ônticos ou ontológicos na dogmática de Welzel tiveram sua principal manifestação no âmbito da conduta humana. A partir do finalismo, não mais a ação seria compreendida como mero impulso, manifestação da vontade do agente, mas sim “uma vontade consciente acerca do objetivo”199 200. Por essa razão, nas palavras de Tavares: “(...) o ponto fundamental de diferenciação e estruturação desse sistema vem situar-se indiscutivelmente na teoria da ação.”201

Nada poderia ser mais claro do que a própria explicação de Welzel a respeito da ação nos moldes da teoria finalista. Segundo ele:

A ação humana é exercício de uma atividade final. A ação é, portanto, um acontecimento final e não puramente causal. A finalidade, o caráter final da ação baseia-se no fato de que o homem, graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as possíveis conseqüências de sua conduta, designar-lhes fins diversos e dirigir sua atividade, conforme um plano, à consecução desses fins. Graças ao seu saber causal prévio, pode dirigir seus diversos atos de modo que oriente o suceder causal externo a um fim e o domine finalisticamente. A atividade final é uma atividade dirigida conscientemente em razão de um fim, enquanto o acontecer causal não está dirigido em razão de um fim,

197 Não é outra a conclusão de Santiago Mir Puig, quando diz que o finalismo “Aparece, en lo metódico, como reacción frente al relativismo gnoseológico del neokantismo.” (Introducción a las bases del derecho penal – concepto y método. 2 ed. reimpresión. Buenos Aires: Editorial B de F., 2003. p. 224. (Em tradução nossa: “Aparece, no método, como reação frente ao relativismo gnoseológico do neokantismo.”) Exatamente com o mesmo posicionamento também se manifestam: C. NUÑEZ, Ricardo. Manual de derecho penal – parte general. 4 ed. actualizada. Córdoba: Marcos Lerner Editora Córdoba, 1999. p. 55; GUARAGNI, Fábio André. As teorias da conduta em direito penal: um estudo da conduta humana do pré-causalismo ao funcionalismo pós-finalista. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 125, entre outros diversos.

198 op. cit. p. 125. 199

TAVARES, op. cit. p. 59.

200 Nas palavras de Lúcio Antônio Chamon Junior: “A não referencia àquilo que o agente queria, por parte da teoria causal, não seria capaz de nos permitir apreender o ‘sentido social’ da ação. Teríamos, então, por parte do causalismo, um apego à mera voluntariedade e consequente causalidade sem que isto implicasse qualquer averiguação desta vontade concreta, enfim, da própria finalidade da ação.” (Do giro finalista ao funcionalismo penal: embates de perspectivas dogmáticas decadentes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004. p 18).

mas é a resultante causal da constelação de causas existentes em cada momento. A finalidade é, por isso – dito de forma gráfica – ‘vidente’, e a causalidade, ‘cega’.202

Isto posto, a partir da nova concepção da estrutura da ação, resta claro que as alterações trazidas por Welzel tiveram também seus reflexos na estrutura do injusto como um todo.

É fato que o teleologismo já havia influenciado uma breve reestruturação do sistema Liszt-Beling nessa mesma área, ao se descobrirem elementos subjetivos do injusto, principalmente e, com isso, flexibilizando-se a relação objetivo-subjetivo do crime. Não obstante, ainda se insistia em considerar tais elementos subjetivos como exceção à regra, mantendo-se o injusto como o lado eminentemente objetivo do delito203, enquanto a culpabilidade se ocupava de explicar a faceta subjetiva.

A estrutura do crime, com sua nítida divisão objetivo (conduta típica e antijurídica, ou injusto propriamente dito) – subjetivo (culpabilidade), passa a ser condenada definitivamente a partir dos aportes finalistas204. Para Welzel, é lógico que o dolo seja um elemento subjetivo do tipo tanto nos casos tentados como nos consumados. Conforme ele mesmo mencionava, em relação aos crimes tentados essa opinião já era dominante até pouco tempo antes de se desenvolver o finalismo, mas o mesmo raciocínio deveria ser aplicado aos delitos consumados.205

(...) se alguém fere mortalmente outro, depende exclusivamente da existência e do conteúdo do dolo que tenha ele realizado o tipo do homicídio doloso (art. 212), o das lesões corporais seguidas de morte (art. 226) ou o do homicídio culposo. O dolo se representa aqui como um elemento constitutivo do tipo. (...). Em ambos os casos chega-se, pois, à conclusão de que o dolo não é apenas um elemento da culpabilidade, mas sim um elemento constitutivo do tipo.206

202 O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina finalista. Tradução de Luiz Regis Prado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 27. Também assim em: WELZEL, Hans. Derecho penal – parte general. traducción de Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956. p. 79.

203 WELZEL, op. cit., 2001. p. 67.

204 Conforme Guaragni: “O injusto (conduta humana típica e antijurídica), que nos sistemas clássico e neokantiano era o lado objetivo do crime, passou a ser também composto de elementos subjetivos, ou pessoais. Fundava-se a teoria do injusto pessoal, em que o injusto é composto por elementos de ordem objetiva e subjetiva.” (op. cit. p. 162).

205 WELZEL, op. cit., 2001, p. 68. Segundo Welzel: “O dolo é, por isso, segundo a doutrina dominante, um elemento subjetivo do injusto na tentativa. A conseqüência lógica disso deveria ser – indo mais além da opinião dominante – a de, se o dolo pertence ao tipo e não apenas à culpabilidade na tentativa, deve conservar a mesma função quando a tentativa passa à consumação.”.

Tal conclusão é reflexo evidente das alterações realizadas no conceito de ação, e somente do ponto de vista do sistema finalista conseguir-se-ia formulá-la.207 A partir da teoria construída por Welzel, passam a existir verdadeiros tipos dolosos e culposos, retirando-se de vez da estrutura da culpabilidade qualquer resquício de subjetivismo que nela ainda havia, como analisaremos mais cuidadosamente no próximo tópico.

Interessante, como conclusão acerca das alterações proporcionadas pelo novo sistema, é o comentário de Toledo, quando menciona (referindo-se à culpabilidade, porém, com lógicos reflexos em toda a estrutura do crime), de forma acertada, que:

Vê-se, pelo exposto, que a missão de Welzel limitou-se a apanhar os resultados da teoria psicológica e da teoria normativa e, a partir da arrumação de um novo quadro (neues Bild) do sistema do direito penal, dar uma nova redistribuição sistemática aos elementos estruturais do crime. E, com isso, possibilitou-se uma superação de impasses a que haviam chegado penalistas anteriores, em alguns aspectos importantes.208

No que se refere aos pressupostos filosóficos, o pensamento finalista remonta à antiguidade grega. Como influenciadores mais recentes de um finalismo moderno, porém, costuma-se mencionar os nomes de Nicolai Hartman, com seus aportes também filosóficos, bem como Hellmuth von Weber e Alexander Graf zu Dohna, no que se refere aos iniciais pensamentos jurídico-penais. A partir das influências desses autores, surgiu a doutrina de Welzel, sendo ele o sistematizador da dogmática finalista e principal expoente do novo sistema jurídico-penal.209

A Hartman, o finalismo deve sua construção acerca da necessidade de se compreender a ação humana como algo propriamente finalístico, “algo que necessariamente persegue, desde seu aparecimento e, mesmo, antes dele, um determinado objetivo, estranho à própria conduta.” 210

207 Por outro lado, importantíssima é a advertência de Tavares, quando evidencia a diferença entre dolo e finalidade na sistemática finalista. Segundo ele: “Essa confusão é comum naqueles que, pela primeira vez, se adentram no sistema finalista. Finalidade é basicamente sinônimo de sentido, enquanto o dolo é conceito jurídico, relacionado ao tipo legal. É lógico que na ação há vontade dirigida a um fim. Essa vontade finalista é averiguada aí no sentido natural, sem a necessária incidência de valoração jurídica. Nos crimes dolosos, a vontade natural da ação passa a ser valorada tipicamente, tomando nome de dolo, o que não quer significar que entre dolo e vontade da ação haja sempre uma identidade. Já pelo simples fato de que, nos crimes dolosos, a vontade da ação fundamenta o dolo do tipo não implica identificá-los.” (op. cit. p. 61).

208 op. cit., 2008. p. 229. 209

Assim TAVARES, op. cit., p. 53; e SALAS, op. cit., pp. 123-124.

210 TAVARES, op. cit., p. 55. Nas palavras de Schmidt: “Tal metodologia de formação da vontade – cujas origens remontam a Nicolai Hartmann – foram adaptadas por Welzel ao Direito Penal, e, mais propriamente, à noção de conduta humana.” (op. cit., p. 57).

Graf zu Dohna trouxe sua contribuição ao direito, já anteriormente mencionada e que, com os aportes dogmáticos de Welzel, como se verá, tem reflexo direto na culpabilidade. Nas palavras de Salas211, Dohna desenvolveu uma concepção sistemática do delito baseada na tensão valor-realidade, na oposição entre dever ser e ser, e que se traduziu na identificação dos dois elementos acima mencionados, ou seja, o objeto da valoração e a valoração do objeto.

Von Weber, por fim, conforme menciona Tavares212, concluiu que, em determinadas ações previstas em tipos penais, não estaria tão somente descrito o processo causal, e sim condutas dirigidas a determinados sentidos subjetivos. Assim, “isto faz com que se inclua no tipo o próprio dolo (...)” 213

Todos esses aportes jurídicos e filosóficos foram considerados por Welzel que, nas palavras de Tavares214, coroou um sistema que se iniciara na Grécia, a partir das ideias de Anaxágoras, e que, posteriormente, receberia contribuições de diversas áreas do conhecimento humano, até se consolidar como novo sistema jurídico-penal. Assim sendo, devemos nos debruçar sobre o pensamento de Welzel para que, a partir dele, entendamos a nova configuração da teoria finalista da culpabilidade em suas mais diferentes vertentes.