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2. EVOLUÇÃO DA DOGMÁTICA DA CULPABILIDADE – DA

2.2. Teoria psicológica da culpabilidade

2.2.2. Teoria psicológica da culpabilidade e sua crítica

2.2.2.1. O dolus malus e seu reflexo na teoria psicológica

Um dos problemas que causaram divergências imediatas na teoria psicológica da culpabilidade foi a questão da consciência da ilicitude como elemento integrante do dolo. Entre os modernos, a discussão remonta aos criadores do sistema causal- naturalista54. Liszt, por exemplo, entendia que não havia de se falar em consciência da ilicitude para a configuração do dolo55. Já Beling, em oposição, acatava-a como necessária ao conceito aqui tratado56.

Na realidade, afora todas as consequências desta questão no âmbito do erro jurídico-penal, à qual não faremos menção direta neste trabalho57, a tentativa de se sustentar um conceito de dolus malus (derivado dos termos romanos), dentro de uma concepção psicológica pura da culpabilidade, afronta, de certo modo, todo o seu sistema, haja vista que se trata de elemento valorativo ou normativo, sobre o qual se deveria realizar um juízo não comportado pelo psicologismo58.

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Entre os doutrinadores brasileiros, podemos citar como defensor de uma teoria psicológica pura, composta pelo dolo natural, Roberto Lira Filho, tratando explicitamente da questão em seu Compêndio de direito penal (Compêndio de direito penal. vol. 1. parte geral. São Paulo: Bushatsky, 1972. pp. 162- 165) e Basileu Garcia, em Instituições de Direito Penal, v.1, tomo I. 7 ed., rev., e atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

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op. cit., pp. 280-281. 56 cf. TAVARES, op. cit. p. 25.

57 Quanto às complicações referentes à questão do erro jurídico-penal, tendo-se em vista a acepção psicológica da culpabilidade adotada por institutos do Código Penal brasileiro de 1940, ver: Basileu Garcia (op. cit, pp. 358-362); e TOLEDO, Francisco de Assis. “Culpabilidade e a problemática do erro jurídico-penal”. In: FRANCO, A. S. e NUCCI, G. S. (org.). Doutrinas Essenciais – Direito Penal. v. 3. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. pp. 409-426. Em relação à evolução da questão do erro jurídico-penal frente às diferentes construções da culpabilidade, ver: GOMES, Luiz Flávio. Erro de tipo e erro de proibição. 5 ed. rev., atual., e ampl. São Paulo: RT, 2001, e BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição: uma análise comparativa. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2007. 58 A discussão a respeito do conceito de dolo em relação às teorias da culpabilidade é extremamente rica e extensa, como já se verifica na nota anterior. Não obstante, como a elencamos apenas no sentido de demonstrar as inconsistências da teoria psicológica da culpabilidade, não nos aprofundaremos nela. Apenas devemos deixar claro que a problemática envolvendo a consciência da ilícitude como parte integrante do dolo vai além da antiga discussão entre as teorias da representação e da vontade. Tal discussão, a nosso ver, já nesta época estava superada, sendo certo que a melhor conclusão acerca da questão é que ambas se complementam, e, por isso, a maioria da doutrina elenca como figuras imprescindíveis ao dolo a previsão ou consciência, como elemento intelectivo (teoria da representação) e a vontade do fato, como elemento volitivo (teoria da vontade). A distinção que se pretende realizar em torno do dolus malus e do dolo natural encontra-se toda na esfera intelectiva e seu limite. Assim,

Deve-se ter sempre em mente que, por influência das ciências naturais e do positivismo jurídico (razão pela qual se utilizava de um método causal-naturalista, em que se dava maior atenção à observação fenomênica dos fatos), os psicologistas puros eram avessos a quaisquer juízos de valoração sobre a conduta.

Segundo Tavares 59,“Transformando-se o dolo em dolus malus, quer dizer, em vontade de realizar o tipo, com consciência de que atua ilicitamente contradiz-se, por sua vez, todo o sistema”.

Ora, se dentro de uma acepção psicológica de culpabilidade, passamos a aceitar tal dolus malus, tão carregado de valoração, esta teoria não é assim tão psicológica, e pura. Talvez por esse motivo tenha mencionado Asúa que “Ya hemos destacado una exacta frase de Mezger, en la que dice que propiamente jamás ha existido ‘un puro ‘psicologismo’.”60. Essa referência a Mezger é precisa, pois, ou se admite a consciência da ilicitude como parte integrante do dolo, e, portanto, como elemento da culpabilidade, prescindível de valoração frente a uma norma jurídica (seja esta valoração feita por um juiz ou pelo próprio agente), ou se desconsidera essa consciência, elevando a culpabilidade a um conceito puro.6162

para uns, deve haver, no dolo, não somente a consciência da causalidade entre ação e resultado danoso, mas também, a consciência de que tal fato constitui um crime, por parte do agente (e aqui se chama de dolo normativo, advindo do dolus malus). Já para outros, a consciência se resume à relação de causalidade (e aqui o dolo natural, mais próximo do psicologismo puro). Giulio Battaglini explica detalhadamente a controvérsia entre as teorias da representação e da vontade em sua obra Direito Penal (Direito penal. parte geral. Tradução de Paulo José da Costa Júnior e Armida Bergamini Miotto. São Paulo: Saraiva, 1973. p. 283/290). Já Basileu Garcia explica detalhadamente a questão envolvendo o dolus malus e o dolo natural e seus reflexos nas teorias da culpabilidade em seu Instituições de direito penal (op. cit., pp., 357-362).

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op. cit., p. 33.

60 op. cit., p. 154. Tradução nossa: “Já destacamos uma exata frase de Mezger, na qual se afirma que jamais existiu ‘um puro ‘psicologismo’.”

61 Note-se que poderíamos dizer que a consciência da ilicitude, ao se relacionar com o intelecto do autor do fato, única e exclusivamente, não diria respeito a um elemento normativo, e sim psicológico, pois se encontra dentro do sujeito. É, por exemplo, a posição de Bettiol, que, mesmo adepto à teoria normativa, não entendia como necessária a consciência da ilicitude no dolo e não a desprezava dentro de uma concepção psicológica. Inobstante, entendemos que a existência dessa consciência ilícita, ainda que encontrada no intelecto do autor, depende, para sua aferição, de uma valoração normativa e não de mera observação fática. Ora, dizer-se consciente da ilicitude, é dizer-se consciente de algo que, frente a uma norma genérica ou específica, constitui um ilícito.

62 É interessante notarmos que a influência do positivismo teve sua contribuição máxima exatamente entre aqueles psicologistas que tentavam manter a pureza do conceito, desconsiderando do dolo a consciência, uma vez que se limitava ao máximo o crime a sua observação estritamente causal. Nesta linha de raciocínio está, por exemplo, a posição de Kelsen, criador da teoria pura do direito e expoente máximo do positivismo jurídico, acerca da possibilidade de responsabilização do sujeito pelo direito penal, afastando todo e qualquer elemento de valoração da conduta do autor: “O enunciado jurídico que diz que um indivíduo é juridicamente obrigado a certa conduta é válido mesmo se o indivíduo desconhece completamente o fato de estar obrigado. Que ignorância da lei não exime de obrigação é um princípio que prevalece em todas as ordens jurídicas e que tem de prevalecer, já que, do contrário,