• Nenhum resultado encontrado

2. EVOLUÇÃO DA DOGMÁTICA DA CULPABILIDADE – DA

2.3. Teorias normativas da culpabilidade

2.3.2. Teoria normativa da culpabilidade – principais fundadores

2.3.2.1. O normativismo e a obra de Reinhard Frank

Reinhard Frank foi, sem sombra de dúvidas, o primeiro doutrinador a construir as bases de uma culpabilidade normativa, ou, nas palavras de Asúa71, o precursor de uma teoria autenticamente normativa, em contraposição a alguns parcos elementos ou às limitadas aspirações normativas que já surgiam dentre os próprios psicologistas, como visto. Sua principal obra sobre o tema, Über den Aufbau des Schuldbegriffs (Sobre a estrutura do conceito de culpabilidade), foi publicada em 1907.

A teoria de Frank não foge à máxima, já mencionada, que relaciona as teorias de culpabilidade a seu tempo. Em sua obra, o autor se refere, logo de início, ao desalinhamento entre a realidade social e o direito penal, indo ao encontro das aspirações neokantianas que cresciam entre os doutrinadores da época.

Foi em razão desse desalinhamento que Frank percebeu a insuficiência da teoria psicológica no que se refere, inicialmente, à gradação da culpabilidade de diferentes autores quando cometiam crimes idênticos, e, em consequência, no que se refere à aferição da própria culpabilidade. Segundo ele:

El guardabarrera que luego de un descanso prolongando yerra en la colocación de los desvíos resulta más culpable que su compañero que comete la misma falta después de once horas ininterrumpidas de servicio.72

Frank denunciou em seu trabalho o que, segundo ele, não somente na linguagem comum se verificava, mas também nos tribunais já se praticava73: deve-se atentar para as circunstâncias concomitantes, ou seja, as circunstâncias fáticas que conduzem o autor e que envolvem o delito, na verificação da culpabilidade. Se tais circunstâncias já eram consideradas pelos tribunais a fim de se atenuar ou agravar a

71

op. cit. p. 163.

72 FRANK, Reinhard. Sobre la estructura del concepto de culpabilidad. Reimpresión. Traducción de Gustavo Eduardo Aboso y Tea Löw. Buenos Aires: Editorial B de F, 2002. pp. 28-29. Em tradução nossa: “O porteiro que, após um longo descanso, erra na colocação do desvio é mais culpado do que seu companheiro que comete a mesma falta, após onze horas de serviço contínuo.”

73 Frank menciona o julgamento (que se tornou celebre entre os doutrinadores), ocorrido em um tribunal superior alemão, no qual um cocheiro é absolvido da acusação de atropelamento de um ferreiro, enquanto aquele guiava dois cavalos, um dos quais sabidamente arisco, em virtude de se considerar ter o trabalhador obedecido uma ordem de seu patrão, ainda que tendo previsto o resultado danoso. O tribunal, considerando as circunstâncias concomitantes, considerou que o cocheiro não tinha opção, sendo-lhe imposta a tarefa sob pena de perda de seu emprego.

culpa de um criminoso, não haveria razão para que não pudessem excluir a sua culpabilidade, em determinados casos nos quais não lhe fosse exigível outra conduta.74

Em outras palavras, o nexo psicológico, representado por dolo ou culpa, não poderia tão somente ser suficiente para expressar a culpabilidade de um indivíduo, dado que a prática jurídica mostrava que, mesmo agindo com culpa (estrito senso), por exemplo, a condenação, em determinadas circunstâncias em que se deu sua ação, demonstrava-se absolutamente injusta.

Assim, a consideração das circunstâncias concomitantes mencionadas em seu trabalho foi responsável pela construção de um conceito complexo75 de culpabilidade que, na visão de Frank, deveria abarcar mais do que somente o nexo psíquico entre o agente e seu fato, permitindo-se, até mesmo, a gradação da culpabilidade.

A partir de seus estudos, portanto, culpabilidade passa a apresentar três elementos, sendo estes a imputabilidade, até então entendida como seu pressuposto; a relação psíquica entre o autor e o fato, traduzida por meio do dolo ou da culpa, em sentido estrito; e a normalidade das circunstâncias nas quais o indivíduo atua. Assim, todos esses elementos constituíam a base de um juízo de reprovabilidade. Culpabilidade, para e segundo a teoria de Frank, é reprovabilidade.76

Nas palavras de Frank:

En la búsqueda de una expresión breve que contenga todos los mencionados componentes del concepto de culpabilidad, no encuentro otra que la reprochabilidad. Culpabilidad es reprochabilidad. Esta expresión no es linda, pero no conozco otra mejor.77

Deve-se ressaltar, novamente, que Frank encontrou na ideia de culpabilidade como juízo de reprovação a solução para os antigos problemas que não poderiam ser enfrentados pela letra da lei, nem tampouco pela análise do mero nexo subjetivo entre autor e fato que foi oferecida pela teoria psicológica. Os anseios por julgamentos mais

74 Cf. FRANK, op. cit., p. 30.

75 Nas palavras de Bettiol: “La Colpevolezza non è più un dato psicologico-naturalistico, ma è un giudizio che suppone la presenza di vari elementi, tra i quali anche il nesso psicologico tra l’evento e l’autore.” (op. cit. 1962. p. 285). Em tradução nossa: “A culpabilidade não é mais um dado psicológico-naturalístico, mas é um juízo que supõe a presença de vários elementos, entre os quais se inclui o nexo psicológico entre o evento e o autor.”

76

Cf. FRANK, op. cit. pp. 40-41.

77 idem, p. 39. Tradução nossa: “Na busca por uma expressão breve que contenha todos os mencionados elementos do conceito de culpabilidade, não encontro outra que não a reprovabilidade. Culpabilidade é reprovabilidade. Essa expressão não é linda, porém, não conheço outra melhor.”

justos, à época, foram essenciais para a concretização da nova concepção normativa, que passaria a influenciar grande parte da doutrina, apesar das críticas recebidas.

Note-se, ademais, que, sendo o juízo de reprovabilidade composto por três requisitos positivos, dos quais se ressaltam as circunstâncias concomitantes como o terceiro e mais novo elemento da culpabilidade, a ausência de quaisquer deles excluiria o crime. Assim, ainda que agindo com culpa (em sentido estrito),

a excepcional ocorrência de circunstâncias anormais exclui a culpabilidade, pois, inserido em tal situação, não podia o agente se comportar em conformidade com o direito, sendo exemplo disso o que sucede no estado de necessidade.78

Um importante parêntese deve ser feito, no entanto, para que não cometamos quaisquer equívocos. A construção da nova teoria da culpabilidade, nos moldes propostos por Frank, não foi introduzida por ele repentinamente. O autor, ao longo dos anos, com seus famosos comentários ao Código Penal alemão, enfrentou diversas críticas, motivo pelo qual transitou por vários conceitos para justificar sua doutrina.

O terceiro elemento da culpabilidade, novidade por ele introduzida em sua teoria e que dava origem ao verdadeiro juízo valorativo motivado79, foi o alvo de críticas agudas. Inicialmente, denominando-as de circunstâncias normais concomitantes (1907), Frank logo as modificou para, motivação normal do indivíduo (1911), tentando fugir das críticas que denominavam aquelas como “‘elemento de la culpabilidad’ en su ‘reflejo subjetivo’.”80 81

Posteriormente, em 1914, Frank resolveu abandonar o conceito como elemento positivo da culpabilidade. Não obstante, continuou entendendo que a ocorrência de determinadas causas de exclusão da culpabilidade haveria, ainda que

78 REALE JUNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 180. Note-se que o autor refere-se, obviamente, ao estado de necessidade exculpante, questão da qual trataremos apenas quando da abordagem da legislação penal pátria e sua evolução ao longo do tempo. 79 Cf. ASÚA, op. cit. p. 164.

80 GOLDSCHMIDT, James, La concepción normativa de la culpabilidad. 2 ed. traducción de Margarethe de Goldschmidt y Ricardo C. Nuñez. Buenos Aires: Editorial B de F, 2002, p. 84. Em tradução nossa: “‘Elemento da culpabilidade’ em seu reflexo ‘subjetivo’.” A nova expressão constava em seus comentários ao código penal alemão, entre as 8a e 10a edições (ibidem).

81

Quanto às circunstâncias concomitantes, menciona ainda Edgardo Donna que: “Contra Frank o contra los elementos de su teoría de la culpabilidad - es decir, las circunstancias del hecho - Kriegsmann ha objetado con razón que se puede levantar un reproche de culpabilidad cuando el autor conoció o debió conocer esas normales circunstancias del hecho.” (DONNA, Edgardo. Teoría del delito y de la pena. vol. 1. 2 ed. actual., y ampl. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1996. p. 148). Em tradução nossa: “Contra Frank ou contra os elementos de sua teoria da culpabilidade – é de se dizer, as circunstâncias de fato – Kriegsmann objetou com razão que se pode realizar uma reprovação de culpabilidade quando o autor conheceu ou deveu conhecer essas normais circunstâncias de fato.”

agindo o indivíduo com dolo ou culpa e sendo ele imputável82, o que de certa forma contrariava sua própria alteração na teoria. Por fim, Frank tornou a introduzir em seu conceito de culpabilidade o elemento positivo, dessa vez na forma de liberdade ou domínio sobre o fato (1924-1926)83, ao lado de dolo ou culpa, bem como da imputabilidade.

O resumo histórico nos permite uma maior precisão de análise no sentido de entendermos o porquê de Frank ser considerado o precursor da teoria normativa. Como dito anteriormente, desde 1907, em seu Sobre a estrutura..., o autor já tratava a culpabilidade como reprovabilidade. Inobstante, somente no ano de 1929, com a 18a e derradeira edição de seus Comentários... ele finalmente mencionou ser a culpabilidade um juízo normativo84.

Por essa razão, introduzimos o tópico com a menção a Asúa, no sentido de que Frank foi, sem sombra de dúvidas, o precursor de uma teoria autenticamente normativa. Sua nova doutrina e a afirmação de uma culpabilidade sinônima de reprovação, embasada em múltiplos elementos, sem dúvidas, abriu caminho para a construção de um conceito que superava em muito o formalismo simplista da teoria psicológica. O que não se poderia dizer, porém, é que Frank foi o primeiro a explicar o conteúdo material da culpabilidade com fundamentos essencialmente normativos, já que hesitou, entre as edições de seus comentários, sobre qual seria o seu fundamento.8586.

82

Situação que permaneceu em seus comentários, entre as 11a e 14a edições (Idem, p. 84/85). Note-se, ademais, que expressamente em relação à culpa, lato senso, Frank voltou a mencionar as circunstâncias concomitantes como determinação do grau de exigibilidade (ibidem e ASÚA, op. cit., p. 165).

83 Situação que permaneceu em seus comentários, entre as 15a e 17a edições (Cf. GOLDSCHMIDT, op. cit., p. 85 e ASÚA, op. cit., p. 165).

84 Nas palavras de Goldschmidt: “Por primera vez se habla de manera expresa de un momento ‘normativo’ de la culpabilidad, y se lo discute. En efecto, se expone, como una cosa aceptada, que la reprochabilidad de una conducta de alguien presupone una obligación de omitir tal conducta.” (op. cit., p. 86). Em tradução nossa: “Pela primeira vez se fala de maneira expressa de um momento ‘normativo’ da culpabilidade, e se o discute. Em efeito, se expõe, como uma coisa aceita, que a reprovabilidade de uma conduta de alguém pressupõe uma obrigação de omitir tal conduta.”. Quanto à questão dos termos empregados por Frank sobre sua teoria, Edgardo Donna menciona que: “Se puede decir que con Frank comienza o que es el punto de partida de la teoría normativa de la culpabilidad, aunque evitara emplear el término ‘normativa’.” (op. cit., p. 145). Em tradução nossa: “Se pode afirmar que com Frank inicia- se o ponto de partida da teoria normativa da culpabilidade, que ainda evitava empregar o termo ‘normativa’.”

85 Mais uma vez, a colocação de Goldschmidt é esclarecedora: “Por otra parte, sin embargo, en razón de que Frank fue el primero que caracterizó la culpabilidad como reprochabilidad, debe considerárselo como el iniciador de la ‘moderna doctrina normativa de la culpabilidad’, no obstante que la ‘motivación normal’ siempre ha de ser sólo la base psíquica de la reprochabilidad, esto es, de la ‘característica normativa de la culpabilidad’.” (Idem, p. 88). Em tradução nossa: “Por outro lado, porém, no sentido de que foi Frank o primeiro que caracterizou a culpabilidade como reprovabilidade,