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3. EVOLUÇÃO DA EXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NA

3.7. A teoria de Heinrich Henkel e o resgate da doutrina da exigibilidade e

Dado o cenário que fora acima traçado, acerca da dogmática jurídico-penal, o qual se estendeu até o final da Segunda Guerra Mundial (no que se refere aqui à doutrina Alemã), era de se esperar que as novas tendências apenas começassem a aflorar a partir do final da década de 1940.

Não obstante, as novas contribuições não poderiam mais advir da criminologia. Com a queda do regime nazista, ruiu também a política criminal do Estado nacional-socialista, e, com esta, sua avassaladora influência na ciência penal da época. Os doutrinadores penalistas, que, se não contribuíram, ao menos se silenciaram frente ao regime imposto, tinham agora somente as discussões dogmáticas para se apoiarem, e, logicamente, foi em direção a ela que todos direcionaram seus estudos.

Interessante notarmos que a conclusão é quase imediata se tivermos em mente o que ocorreu a partir da década de cinquenta com relação à ciência do direito penal. Foi exatamente nesse momento, mais precisamente com a publicação da monografia Modernas orientações da dogmática jurídico-penal (no original Moderne Wege der Strafrechtsdogmatik), escrita por Mezger, em 1950, que se inicia a duradoura

174 Conforme Salas: “En la época en que se formulan, estas críticas se mezclan ya con los primeros brotes de ideología nacionalsocialista en el interior de la dogmática juridicopenal, con su ‘pretensión de disposición total del Estado nacionalsocialista sobre todos los ciudadanos.’” (op. cit., p. 117). Em tradução nossa: “Na época em que se formulam, estas críticas se mesclam já com os primeiros surtos de ideologia nacional-socialista no interior da dogmática jurídico-penal, com sua ‘pretensão de disposição total do Estado nacional-socialista sobre todos os cidadãos’.”

discussão entre os adeptos da teoria causal da ação e os adeptos da teoria final175 da ação.176

É nesse cenário propício ao embate dogmático, ainda sob o domínio da teoria normativa da culpabilidade, que se revitaliza a discussão acerca da exigibilidade de conduta diversa, trazida à tona com o importante artigo escrito por Heinrich Henkel “Exigibilidade e inexigibilidade como principio jurídico regulamentar” (no original, Zumutbarkeit und Unzumutbarkeit als regulatives Rechtsprinzip), publicado, pela primeira vez, no livro em homenagem ao septuagésimo aniversário de Mezger177, no ano de 1954.

Até esse momento, no que se referia à exigibilidade, o assunto havia se estagnado na doutrina, no início da década de 1930, com a conclusão da corrente majoritária que seu lugar haveria de ser na estrutura da culpabilidade, como causa de exculpação, limitada às hipóteses tipificadas na lei. Todo o movimento doutrinário e jurisprudencial que conduziu a isso foi por nós analisado nos tópicos referentes à exigibilidade com fundamento individualizador (defendida principalmente por Freudenthal) até sua versão com fundamento generalizante (com parâmetro no critério do homem-médio, conforme a doutrina de Eberhard Schmidt, adotada posteriormente por Goldschmidt), e posterior declínio, até mesmo, na jurisprudência.

Henkel178 ressuscita a discussão a partir desse ponto, dando, entretanto, uma roupagem completamente nova à estrutura da exigibilidade, de modo a adaptá-la a

175

Da qual nos ocuparemos, no que se refere à culpabilidade, no próximo capítulo.

176 Conforme Muñoz Conde: “Esta monografía, oficialmente concebida como un complemento a la tercera edición del Tratado, que no era más que una reimpresión de la segunda edición de 1933, constituye de hecho el primer escrito polémico que MEZGER escribe expresamente para criticar la teoría final de la acción y el sistema del Derecho penal basado en ella, que ya desde los años 30 venía elaborando el entonces joven penalista y filósofo del Derecho Hans WELZEL, al que hasta entonces MEZGER prácticamente no le había dedicado ninguna atención.” (op. cit., 2003. p. 89). Em tradução nossa: “Esta monografia, oficialmente concebida como um complemento à terceira edição do Tratado, que não era mais que uma reimpressão da segunda edição de 1933, constitui de fato o primeiro escrito polêmico que MEZGER escreve expressamente para criticar a teoria final da ação e o sistema de Direito penal baseado nela, que já desde os anos 30 vinha elaborando o então jovem penalista e filósofo de Direito Hans WELZEL, ao que até então MEZGER praticamente não tinha dedicado nenhuma atenção.”

177 Livro este cujo título era: “Festschrift für Edmund Mezger zum 70. Geburtstag 15/10/1953”

178 Não sem antes dar o crédito da ressurreição a Ebehard Schmidt, que em um jornal jurídico alemão teria acendido novamente a discussão sobre exigibilidade como causa geral e supralegal de exclusão da culpabilidade em referência aos recorrentes processos contra médicos nazistas que teriam participado da campanha de “eutanásia” promovida por Hitler contra deficientes físicos e mentais. (HENKEL, Heinrich. Exigibilidad e inexigibilidad como principio jurídico regulativo. reimpresión. Traducción de José Luiz Guzmán Dalbora. Buenos Aires: Editorial B de F, 2008. p. 59). Este caso da eutanásia praticada por médicos sob as ordens de Hitler ficou famoso e deu margem à discussões que se estenderam por décadas, como se verá ao longo da abordagem das demais teorias da culpabilidade. Em uma breve síntese, o regime nacional-socialista possuía um “programa de eliminação de doentes

uma função diferente de todas que até então tinha assumido: a de princípio geral regulamentar.

Duas são as teses179 centrais do trabalho publicado por Henkel: a primeira é resultado de uma análise feita pelo autor, em razão da qual ele conclui que a exigibilidade constitui um princípio jurídico geral. Nesses termos, segundo ele, a própria discussão acerca dos limites da exigibilidade e da inexigibilidade dentro da estrutura da culpabilidade se encontra superada, já que o conceito não está vinculado ao direito penal, nem tampouco a qualquer área do direito, sendo certo que exerce, isso sim, influência sobre todo o ordenamento jurídico.180

Segundo suas próprias palavras:

Los ejemplos que hemos aportado aquí podrían multiplicarse fácilmente desde casi todas las ramas del ordenamiento jurídico, pero debieran ser suficientes para mostrar que el concepto de exigibilidad constituye un principio presente en el conjunto del dominio del Derecho. Debiera haber quedado de manifiesto, además, la significación metodológica del principio, que es lo decisivo del argumento en cuestión.181

A segunda tese de Henkel, por sua vez, refere-se à natureza desse princípio geral. Uma vez que atua igualmente em todas as áreas do direito, não poderia ser a exigibilidade um princípio normativo, carregado de valoração a priori. A exigibilidade funcionaria como princípio regulamentar, com a função (secundária e

mentais”. Alguns médicos, à época, tiveram de realizar uma seleção dentre uma série de indivíduos, que, segundo o regime, seriam considerados aptos à “eutanásia”. É fato que a seleção foi realizada, porém, ficou posteriormente comprovado que assim agiram os médicos com o intuito de salvar a maioria da morte certa, entregando somente alguns indivíduos ao programa de extermínio. Sob um ponto de vista jurídico, após a queda do regime, entretanto, acabaram acusados por auxílio ou cumplicidade no homicídio praticado contra aqueles indivíduos considerados doentes. Em sua defesa, passou-se a alegar que eles agiram sob o manto de uma causa de exclusão supralegal da culpabilidade, com base na inexigibilidade de conduta diversa, uma vez que se não tivessem agido da forma como fizeram, provavelmente todos os indivíduos que lhes foram apresentados seriam mortos, e, sendo assim, a sua atitude corroborou para a salvação da maior parte das pessoas.

179 Conforme assim mencionam DALBORA, José Luis Guzmán, e FERNÁNDEZ, Gonzalo D. “Estudio introductorio”. In: HENKEL, Heinrich. Exigibilidad e inexigibilidad como principio jurídico regulativo. reimpresión. Buenos Aires: Editorial B de F, 2008. p. 15.

180 Henkel chega a esta conclusão após uma apurada análise feita ao longo de todo o ordenamento jurídico, concluindo que não somente no direito penal, mas igualmente nas demais áreas do direito, a exigibilidade está presente e funciona como um princípio. Assim, traz exemplos referentes ao direito civil, na área contratual (atuando a exigibilidade como elemento de flexibilização do pacta sunt servanda) e na área do direito de família (como princípio que autorizaria o divórcio em casos de descumprimento do dever conjugal); ao direito administrativo (regulando a intromissão do poder público na esfera privada, limitando o poder de polícia); e também ao direito internacional (no que tange a concreção da cláusula rebus sic istantibus que rege os tratados internacionais). Todos os exemplos podem ser vistos em HENKEL, op. cit., passim (p. 62/72).

181 Ibidem. pp. 72-73. Em tradução nossa: “Os exemplos que aportamos aqui poderiam se multiplicar facilmente a partir de quase todos os ramos do ordenamento jurídico, mas devem ser suficientes para mostrar que o conceito de exigibilidade constitui um princípio presente no conjunto do domínio do direito. Deve estar manifesto ademais, o significado metodológico do princípio, que é o decisivo do argumento em questão.”

auxiliar) de determinar, no caso concreto, os limites da exigência de dever contida no elemento normativo da culpabilidade.182183 Ou seja, não há qualquer conteúdo material imanente ao princípio regulamentar, função que, para ele, assume a exigibilidade, diferentemente do que defendem os doutrinadores que a elencam como elemento da culpabilidade. Ela tem, sim, a função de trazer ao juiz os limites possíveis e adequados (as fórmulas para a solução do conflito), no caso em concreto.

Conforme o próprio Henkel:

(...) un principio regulativo, que como tal no señala el contenido preciso de la decisión, pero sí el camino que lleva a ella, instruyendo que se decidan los límites inciertos de facultades y deberes jurídicos según el conjunto de todas las circunstancias perceptibles del caso singular y a través de una concreta ponderación de los criterios valorativos que se presentan. 184

Em consequência direta dessa conclusão a que chega o autor, tem-se que, uma vez no âmbito do direito penal, a determinação do exigível serviria tanto à culpabilidade como à adequação típica e antijurídica, e também por esse mesmo motivo, não haveria que se confundir a inexigibilidade com uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade.185 Ademais, nesse mesmo sentido, perde valor também a discussão acerca do critério para aferição da culpabilidade, seja ele individual ou a partir do homem médio.186

Interessante notarmos que a tese proposta por Henkel procede. Como mencionamos na introdução do presente tópico, não obstante o resgate da discussão do direito penal à esfera da dogmática, a discussão em torno da exigibilidade continuava apagada e, quando muito, estava ela restrita às hipóteses legais de exclusão da culpabilidade, extremamente limitadas pelo ordenamento penal.

Henkel visava obviamente a superar a discussão com sua contribuição, alçando a exigibilidade um patamar que, até então, não havia sido considerado, o de um princípio informador de todo o ordenamento jurídico.

182 Cf. DALBORA e FERNÁNDEZ, op. cit., p. 19.

183 Conforme Dalbora e Fernández, a ideia de princípio regulamentar na teoria de Henkel foi evidentemente trabalhada a partir da filosofia Kantiana, que em sua “Crítica do juízo” distingue os princípios regulamentares e constitutivos na faculdade de julgar. (op. cit. p. 20).

184 “(…) um princípio regulamentar que, como tal, não indica o conteúdo preciso da decisão, mas sim o caminho que leva a ela, instruindo que se decidam os limites incertos de faculdades e deveres jurídicos segundo o conjunto de todas as circunstâncias perceptíveis do caso singular e através de uma concreta ponderação dos critérios valorativos que se apresentam.” (op. cit, p. 73. Tradução nossa)

185 Idem, p. 73/74. 186 Idem, p. 130.

Quanto a isso, não há dúvidas de que obteve sucesso. Sua tese se molda tanto aos defensores do fim da exigibilidade, dado que pode ser utilizada apenas como aparato formal, como uma espécie de moldura (e, portanto, acabando com a insegurança jurídica proporcionada por uma exigibilidade segundo critérios individualizados, por exemplo) das causas de exclusão da culpabilidade, como àqueles que a defendiam como elemento da própria culpabilidade, uma vez que, em última análise, também sobre ela incidiria, ainda que não no sentido de um elemento propriamente dito.187

Não obstante, parece-nos que sua contribuição estaria mais propensa a críticas do que a elogios, ao menos por parte dos idealizadores da doutrina da exigibilidade como elemento da estrutura da culpabilidade, na medida em que, ao elevar a discussão da exigibilidade à esfera principiológica, como princípio regulamentar, e, portanto, sem qualquer conteúdo material, reduz-se severamente sua importância (e de maneira inversamente proporcional ao seu crescimento como princípio do ordenamento como um todo) em relação à própria estrutura da culpabilidade, que, na visão de doutrinadores como Freudenthal, chegava a ser identificada com a exigibilidade. Nas palavras de Dieter, tal fundamentação apenas “limita sua teoria à dimensão de uma mera redefinição formal do problema.”188

Essa ausência de conteúdo e hipertrofia da exigibilidade vazia também foi criticada por Zaffaroni, que a classificando como “la exigibilidad a secas”189, advertiu que a adoção da ideia como princípio regulamentar geraria o risco de se cair em um grosseiro erro conceitual entre antijuridicidade e culpabilidade.190

Segundo ele, ademais,

Entendida la exigibilidad "a secas", sin preguntarse por el contenido, sin averiguar exigibilidad de qué y a quien, esto es algo mucho más amplio que un "principio regulativo", mucho más amplio que un criterio para el juez, esto es nada más ni nada menos que la esencia misma del derecho. No es ningún principio regulador, sino que es tan amplio que lo regula todo sin precisar nada.191

187 Excetuando-se, aqui, talvez, a doutrina de Freudenthal, por exemplo, que considerava a exigibilidade como o fundamento único da própria reprovabilidade.

188 op. cit. p. 49.

189 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal – parte general. t. IV. Buenos Aires: Ediar, 1999. p. 72. “exigibilidade vazia” (tradução nossa).

190

Ibidem.

191 Ibidem. (sublinhado, em partes, no original). “Entendida a exigibilidade “vazia”, sem perguntar-se pelo conteúdo, sem averiguar exigibilidade de que e a quem, isto é algo muito mais amplo que um “princípio regulamentar”, muito mais amplo que um critério para o juiz, isso é nada mais nem nada

Não é ao acaso que, quase de forma contraditória, os doutrinadores mais conservadores, que voltaram sua atenção para a análise feita por Henkel, foram aqueles que adotaram seu pensamento, erigindo a exigibilidade a essa espécie de princípio informativo de todo o ordenamento, desprovido de qualquer conteúdo material e condutor do juízo decisório dos casos concretos.

Assim, por exemplo, o seguiu Edmund Mezger em seu Derecho Penal – libro de estudios192, o qual, inclusive nessa época, deixa de aceitar a exigibilidade como causa geral de exclusão (supralegal) da culpabilidade, para, então, adotá-la como princípio regulamentar e somente aceitar as excludentes devidamente tipificadas.

Na realidade, este posicionamento, menos suscetível à ideia da exigibilidade como causa de exclusão supralegal da culpabilidade, chega até os dias de hoje, na doutrina alemã, existindo apenas alguns focos que começam a ver o conceito de exigibilidade com olhos diferentes (como analisaremos adiante). Além disso, também da doutrina brasileira da atualidade podemos dizer que emergiu uma corrente que bebeu de ideias próximas às de Henkel, haja vista considerarem a exigibilidade como princípio, ainda que, neste caso, princípio afeto somente ao direito penal e com conteúdo determinado (como também analisaremos).

Portanto, o que se deve ter em mente com a doutrina de Henkel, é que, do ponto de vista de um modelo de culpabilidade individualizador e garantista, sua contribuição não foi das mais simpáticas. Conforme já mencionado acima, nos aportes que fizemos a Zaffaroni, a hipertrofia e o concomitante esvaziamento de conteúdo da exigibilidade, e mais, seu afastamento propriamente dito do interior da estrutura da culpabilidade não significaram um resgate à sua ideia original, mas sim um maior afastamento de suas funções originais. Nesse contexto, não seria equivocado afirmar que a exigibilidade de conduta diversa, no que se refere a sua importância na estrutura da culpabilidade (ao menos até o ponto em que a analisamos) teve seu auge com sua criação. A partir desse ponto, ruiu continuamente, até encontrar seu espaço “adaptada” como princípio regulamentar, na doutrina de Henkel.

menos que a essência mesma do direito. Não é nenhum princípio regulamentar, senão que é tão amplo que regula tudo sem esclarecer nada.” (tradução nossa)