• Nenhum resultado encontrado

2. EVOLUÇÃO DA DOGMÁTICA DA CULPABILIDADE – DA

2.3. Teorias normativas da culpabilidade

2.3.2. Teoria normativa da culpabilidade – principais fundadores

2.3.2.2. O normativismo e a obra de James Goldschmidt

Segundo Ricardo C. Nuñez 87, percebe-se que os expositores da teoria normativa, desde o seu início, apresentam seus argumentos em torno de dois pontos capitais: por um lado, discutem qual é o caráter da norma que apoia o juízo de culpabilidade; por outro lado, discutem a matéria real que serve de base a esse juízo.

James Goldschmidt, escrevendo em 1913, com sua obra Der Notstand, ein Schuldproblem (O Estado de necessidade, um problema de culpabilidade) e, posteriormente, em 1930, com seu Normativer Schuldbegriff (A concepção normativa da culpabilidade) – este em resposta às críticas da época e com algumas alterações em seu conceito – foi precursor do segundo grande passo em busca de um puro conceito normativo de culpabilidade, ao trabalhar justamente com o caráter da norma fundamentadora do juízo de censura penal.88

Se Frank, segundo parte da doutrina da época, não conseguira chegar a uma solução de natureza puramente normativa acerca de seu conceito de culpabilidade em razão dos tormentosos motivação normal e domínio sobre o fato, Goldschmidt introduziu o conceito de reprovação baseado na violação da norma de dever, dando àquela conteúdo normativo.

Em outras palavras, Goldschmidt utilizou-se das ideias de Kant, na área da filosofia, para estabelecer duas categorias de normas que justificariam o conteúdo normativo da culpabilidade, retirando, ademais, da sua estrutura, todos os elementos de fato, transformando-os em pressupostos dela.

deve-se considerá-lo como o iniciador da ‘moderna doutrina normativa da culpabilidade’, não obstante que a ‘motivação normal’ sempre será somente a base psíquica da reprovação, ou seja, da ‘característica normativa da culpabilidade’.”

86 Comentando o caso, menciona Reale Júnior que Frank não logrou êxito em encontrar um juízo de reprovabilidade com conteúdo eminentemente normativo, ao transitar pelos deferentes conceitos do terceiro elemento da culpabilidade. (Dos Estados de Necessidade. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1971. p. 23). Já Asúa diz que “Fué Frank el primero que caracterizó la culpabilidad como ‘reprochabilidad’, a pesar de que la ‘motivación normal’ no sea más que uno de los elementos del juicio de reproche, de carácter psíquico, ya que el propio autor jamás la estimo como elemento normativo de lo culpable.” (op. cit. p. 166). Em tradução nossa: “Foi Frank o primeiro que caracterizou a culpabilidade como ‘reprovabilidade’, apesar de que a ‘motivação normal’ não seja mais que um dos elementos do juízo de reprovação, de caráter psíquico, já que o próprio autor jamais a considerou como elemento normativo do culpável.”

87 “Bosquejo de la culpabilidad”. In: GOLDSCHMIDT, James. La concepción normativa de la culpabilidad. 2 ed. Buenos Aires: Editorial B de F, 2002. p. 75.

Goldschmidt entendia que toda ação relaciona-se com a norma jurídica penal sob dois aspectos: a sua conformidade ou não com a norma de direito propriamente dita (ou norma de ação) e a sua conformidade em relação à norma de conduta, ou, como menciona o autor89, norma de dever. A primeira tem caráter objetivo e geral, vincula-se, portanto, à faceta externa da norma, à obrigação de se adequar objetivamente ao direito. “Na norma de direito há uma proibição, p. e.: ‘não mate’”90. No campo dogmático, estaria relacionada à constatação da antijuridicidade. Já a norma de dever, objeto do juízo de reprovabilidade, nas palavras do próprio autor91, é aquela que manda ao particular que se motive pelas representações de valor jurídicas, e que se dirige à vontade de atuação. A norma de dever se comunica subjetivamente com cada indivíduo, de maneira que lhes determine que se conduzam de acordo com a norma de ação, da forma como é prescrita.92

É exatamente a norma de dever que se relaciona à constatação de culpabilidade, na doutrina normativa de Goldschmidt. Conforme menciona Asúa:

Ésta es tan solo un juicio de reproche, que versa sobre la exigibilidad, y que tiene por contenido la ‘no motivación por la representación del deber jurídico a pesar de la exigibilidad’93.

Em outras palavras, e para que se esclareça melhor a questão, Goldschmidt aproveita as bases doutrinárias da teoria de Frank, no sentido de que também entende ser a culpabilidade um juízo de reprovação, e não somente um mero nexo entre o indivíduo e o resultado criminoso. Não obstante, fundamenta o juízo de maneira

89

op. cit. p. 82.

90 REALE JÚNIOR, op. cit. , p. 23. 91 op. cit. p. 91.

92 Conforme mencionado, Goldschmidt extraiu suas ideias aplicadas no campo da culpabilidade da doutrina de Immanuel Kant. A constatação é imediata quando se lê o trecho, a seguir transcrito, de A metafísica dos costumes. Segundo Kant: “Em toda legislação (quer prescreva ações internas ou externas ou que as prescreva a priori pela razão somente ou pela escolha de um outro) há dois elementos: em primeiro lugar, uma lei, que representa uma ação que precisa ser realizada como objetivamente necessária, isto é, que faz da ação um dever; em segundo lugar, um motivo, o qual relaciona um fundamento para determinação da escolha a essa ação subjetivamente com a representação da lei. Daí, o segundo elemento é o seguinte: que a lei torne dever o motivo. Pelo primeiro, a ação é representada por um dever e isso constitui um conhecimento meramente teórico de uma determinação possível da escolha, isto é, de regras práticas. Pelo segundo, a obrigação de assim agir está relacionada no sujeito com um fundamento para determinar a escolha geralmente.” (A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003. p. 71). Goldschmidt, entretanto, não admite um caráter ético implícito à norma de dever, como leciona Kant. Segundo aquele, a norma de dever está a serviço do direito, e não da ética. (cf. NUÑEZ, op. cit., p. 82).

93 op. cit., p. 162. Em tradução nossa: “Esta é tão somente um juízo de reprovação, que versa sobre a exigibilidade, e que tem por conteúdo a ‘não motivação pela representação do dever jurídico apesar da exigibilidade’.”

diversa, eliminando o terceiro elemento de culpabilidade sobre o qual Frank flutuou ao longo de seus comentários, relegando-o à função de pressuposto.

Goldschmidt94 exclui o termo motivação normal, uma vez que nitidamente elemento psíquico dentro do aspecto normativo da culpabilidade, chamando a base da reprovação de violação à norma de dever, esta com característica eminentemente normativa, ou seja, passível de valoração. Os demais elementos da culpabilidade, elencados por Frank, dessa maneira, passam, para Goldschmidt, à categoria de pressupostos, sendo culpável tão somente à vontade contrária ao dever. Nesse sentido, imputabilidade, dolo ou culpa, e a própria motivação normal são pressupostos da culpabilidade, segundo este autor.

Interessante notar que Goldschmidt,

En vez de considerar la “motivación normal” como “tercer elemento” de la culpabilidad, considera como característica negativa de la culpabilidad la “motivación anormal”; es decir, una causa o causas de inculpabilidad.95

Dessa forma, as normas de dever determinam o juízo de reprovabilidade e se ligam ao que é exigível. Culpabilidade é tão somente reprovabilidade, e reprovável é somente o que é exigível. Não obstante, não havendo motivação normal, ou melhor, havendo uma hipótese fática de motivação anormal para o sujeito, torna-se inexigível a conduta, tendo a não exigibilidade caráter de causa geral de exclusão da culpabilidade, e sendo, portanto, a motivação anormal seu pressuposto, “(...) fuente real de las normas de ‘autoconservación’, cuya consideración lleva a la limitación de la exigibilidad y, por consiguiente, de la reprochabilidad.”96

Sendo assim, para Goldschmidt, a motivação normal, que constituía elemento positivo da culpabilidade na doutrina de Frank, passa a atuar como seu pressuposto negativo genérico, limitador da exigibilidade e da própria reprovabilidade, portanto.

Segundo o autor:

(…) el reconocimiento de causas de exculpación ‘supralegales’ estriba en el concepto básico de que hay motivos que el ordenamiento jurídico

94 op. cit., p. 87.

95 Cf. ASÚA, op. cit., p. 168. Em tradução nossa: “Em vez de considerar a ‘motivação normal’ como ‘terceiro elemento’ da culpabilidade, considera como característica negativa da culpabilidade a ‘motivação anormal’; ou seja, uma causa, ou causas de inculpabilidade.”

96 GOLDSCHMIDT, op. cit., p. 106. “(...) fonte real das normas de ‘autoconservação’, cuja consideração leva à limitação da exigibilidade e, por conseguinte, da reprovabilidade.” (tradução nossa).

debe reconocer como superiores al motivo de deber en relación a un hombre medio.97

A partir desta citação, reafirma-se o que havia sido colocado. Ainda que contrária à norma de dever, se não exigível a conduta, segundo um critério estabelecido com base no conceito do homem médio98, não há culpabilidade.

Uma das características mais importantes da teoria normativa nos moldes desenvolvidos por Goldschmidt é o fato de que se justificam teoricamente as causas de exclusão da culpabilidade, já reconhecidas pelos tribunais da época, as quais não poderiam, de qualquer forma, ser explicadas por meio da teoria psicológica.

Segundo Edgardo A. Donna, “Lo fundamental en este tipo de concepción de la culpabilidad es que se da un fundamento a las causas de inculpabilidad. Ocupa un lugar esencial, para ello, la ‘motivación normal’”.99

À teoria de Goldschmidt, no entanto, também não faltaram críticas. Em primeiro plano, muitos foram aqueles que julgaram inútil o trabalho desse autor em criar uma teoria que separava a norma jurídica em norma de dever e norma de ação100, haja vista que, nas palavras de Reale Júnior, “a norma jurídica, em suma, impõe a positividade de um valor e se põe ela mesma como um valor, como um dever ser, constituindo-se um todo indecomponível.”101102

97 Idem, p. 120. Em tradução nossa: “(...) o reconhecimento de causas de exculpação ‘supralegais’ se estriba no conceito básico de que há motivos que o ordenamento jurídico deve reconhecer como superiores ao motivo de dever em relação a um homem médio.”

98

Conforme menciona o próprio Goldschmidt: “Desde luego que, como jurídicamente preponderantes, hay que reconocer sólo aquellos motivos que según las circunstancias dadas hubieran superado el motivo de deber en un hombre medio” (Idem, p. 121). Em tradução nossa: “Desde logo que, como sendo juridicamente preponderantes, há que se reconhecerem somente aqueles motivos que segundo as circunstâncias dadas houverem superado o motivo de dever em um homem médio.” A opção do autor pelo critério do homem médio se explica pelo fato de ser objetivo, na medida em que não depende de qualidades e capacidades pessoais do autor, evitando-se a impunidade do delinquente por opção (ibidem).

99 “Breve Síntesis del problema de la culpabilidad normativa”. In: GOLDSCHMIDT, James. La concepción normativa de la culpabilidad. 2 ed. Buenos Aires: Editorial B de F, 2002. p. 23. “O fundamental neste tipo de concepção da culpabilidade é que se dá um fundamento às causas de inculpabilidade. Ocupa um lugar especial, para ele, ‘a motivação normal’.” (tradução nossa)

100

Nesse sentido, por exemplo, encontra-se Luigi Scarano, quando diz que: “Costruire la categoria del dovere accanto alla categoria dell’obbligo giuridico significa voler creare un inutile doppione. La norma dell’obbligo perciò non sta accanto, ma nella norma giuridica, come l’antidoverosità non sta accanto, mas nell’antigiuridicità. (La non esigibilità nel diritto penale. Napoli: Casa Editrice Libraria Humus, 1948. p. 26). Em tradução nossa: “Construir a categoria do dever separada da categoria da obrigação jurídica significa querer criar uma divisão inútil. A norma de obrigação, pois, não está separada da norma jurídica, mas está no seu interior, assim como a contrariedade ao dever em relação à antijuridicidade.”

101 op. cit., p. 135.

102 Por outro lado, como se viu, e como se retomará mais à frente, é de se considerar que foi justamente a divisão da norma entre norma de ação e norma de dever que proporcionou a Goldschmidt a

Outro ponto de vista questionado é o critério do homem médio, adotado por Goldschmidt, em sua obra de 1930, quando da aferição da não exigibilidade por motivações anormais. Ainda hoje, tal critério é utilizado dentro do direito penal como fonte de mensuração e limitação de determinados institutos. Não obstante, entendem os críticos dessa teoria que não parece ter tal critério qualquer conteúdo que possibilite valoração.103 Goldschmidt procurava, com ele, evitar a impunidade de delinquentes por opção, impedindo que estes se utilizassem das excludentes de culpabilidade. Fato é que, tão perigoso quanto tornar a não exigibilidade uma forma de impunidade é criar generalizações em contextos nos quais elas não caibam, como na vontade humana.104