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A DOUTRINA DO CHOQUE: A EMPREITADA NEOLIBERAL DO ANTITERROR

“Eu chamo esses ataques orquestrados [...] na sequência de eventos catastróficos, combinados com o tratamento de desastres como grandes oportunidades de marketing, de ‘capitalismo de desastre’”.279

277 SCHMITT, Carl. O conceito do político, op. cit., p. 97-99. 278 Ibid., p. 98.

279 KLEIN, Naomi. The shock doctrine: the rise of disaster capitalism. New York: Picador, 2007. p. 6. (Tradução

Naomi Klein começou a se debruçar sobre a relação de dependência entre o neoliberalismo e o poder do choque com a ocupação do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003. Em seguida, de Bagdá ela dirigiu sua pesquisa ao Sri Lanka, para onde viajou a fim de testemunhar outra versão da manobra da doutrina do choque, ocorrida após o tsunami que devastou o país em 2004.280 Ao início de sua pesquisa, afirma a jornalista e ativista canadense,

ela percebia que, tradicionalmente, as três principais demandas dos mercados – privatização, desregulação governamental e cortes nos gastos sociais – apesar de impopulares, eram negociadas pelos governos sob uma espécie de consenso mútuo entre supostos experts na matéria.281

O que surpreendeu Klein e passou a ser o ponto central de seu estudo, ensejando o livro A doutrina do choque e a ascensão do capitalismo de desastre é precisamente a nova forma de imposição do programa neoliberal: por meio do choque, seja sob ocupação militar logo após uma invasão estrangeira, ou no que sucede a um desastre natural. Com os exemplos estudados em 2003 e 2004, a visão da autora retorna ao ano de 2001 para concluir que o dia “11 de setembro deu a Washington o sinal verde para parar de perguntar aos países se eles queriam a versão norte-americana de ‘livre comércio e democracia’ e para começar a impô-la mediante choque e forças militares”.282

Retrocedendo ainda algumas décadas a mais, a década de 70 no Chile mostra a afeição de Milton Friedman a essa doutrina do choque. Como já visto em momento anterior, a população chilena experimentou as mais bruscas reformas institucionais e econômicas nos anos da ditadura de Pinochet, que havia sido aconselhado por Friedman a impor uma rápida transformação da economia, o que ficou conhecido por “revolução da Escola de Chicago”283.

Assim era a relação de Milton Friedman com o choque: “enquanto algumas pessoas estocam comidas enlatadas e água para se prepararem para grandes desastres, os seguidores de Friedman estocam ideias de livre-mercado”.284

Seguiu-se, assim, a estratégia apoiada por Friedman e seus discípulos, que consistia em “aguardar por uma grande crise para então vender partes do Estado para atores privados, enquanto os cidadãos ainda estavam cambaleando em função do choque, e então rapidamente fazer ‘reformas’ permanentes”285. Por mais de três décadas, essa fórmula se espalhou para

disseminar o fundamentalismo do livre mercado em outros países. O que aconteceu em 11 de

280 Ibid., p. 9. 281 Ibid., p. 11.

282 Ibid., p. 11. (Tradução nossa). 283 Ibid., p. 8. (Tradução nossa). 284 Ibid., p. 7. (Tradução nossa). 285 Ibid., p. 7. (Tradução nossa).

setembro, afirma Naomi Klein, foi que essa ideologia teve sua chance de, enfim, voltar para casa. 286

O medo gerado pelos ataques ao World Trade Center e ao Pentágono em 2001 serviu não somente para justificar a guerra ao terror, mas também para assegurar o crescimento exponencial de determinados mercados, como o departamento de segurança interna dos Estados Unidos, que se tornou um setor de mais 200 bilhões de dólares.287 A autora mostra, ao longo

do livro, como a guerra ao terror e as violações que dela decorreram estiveram ligadas ao interesse de algumas grandes corporações, fazendo da tortura uma parceira para o livre comércio global.288

Não somente no sentido literal, mas também metaforicamente, a tortura auxilia na compreensão do que é a chamada doutrina do choque trazida por Klein. Denominada sob o eufemismo de “interrogação coercitiva” pela CIA, a tortura tem a finalidade de desorientar os indivíduos, forçando-os a tomar atitudes contrárias a seus desejos. “A tortura, então, quebra as fontes de resistência dos indivíduos, fazendo com que eles não mais tenham sentidos a respeito do mundo que os cerca”289, sujeitando-os a fornecer as informações, confissões e renúncias que

se fizerem necessárias. Esse processo é mimetizado pela doutrina do choque, segundo Klein, de modo que, em larga escala, uma sociedade inteira se vê desorientada e suscetível a aceitar medidas que em condições normais não o faria. Aqueles que defendem a doutrina do choque acreditam que somente mediante uma grande ruptura, decorrente de desastres naturais, guerras ou ataques terroristas é que pode surgir o contexto perfeito para implementação de novas políticas.290 Nesse sentido, o mais claro exemplo é aquele logo após o atentado de 11 de

setembro, que marcou uma espécie de “ano zero”, fazendo dos indivíduos e da sociedade traumatizada uma folha em branco sobre a qual seria possível escrever novas histórias.291

Se antes do ataque às torres gêmeas os Estados Unidos participavam de práticas de tortura de forma indireta e discreta, mediante fontes externas, sob experimentos realizados em outros países com apoio norte-americano, a sociedade em choque pelo terror de 2001 era uma verdadeira tábula rasa para que se desenhasse a tortura institucionalizada pelos próprios Estados Unidos, que “exigiram o direito de torturar sem qualquer constrangimento”.292

Foi esse o contexto que motivou Giorgio Agamben ao cargo de professor que lhe tinha sido ofertado na Universidade de Nova Iorque, em protesto à política estadunidense, e a

286 Ibid., p. 14. 287 Ibid., p. 15. 288 Ibid., p. 20.

289 Ibid., p. 20. (Tradução nossa). 290 Ibid., p. 35.

291 Ibid., p. 20.

publicar, em 2003, sua obra Estado de Exceção, dando continuidade a Homo Sacer: O Poder Soberano e A Vida Nua, publicado anteriormente em 1995. Na obra, o filósofo italiano dedica- se a reconstruir o conceito de estado de exceção para mostrar como essa prática não se aplica em casos esporádicos ou excepcionais, mas que a exceção se tornou a regra. Ou seja, o estado de exceção “tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante da política contemporânea”293, mesmo dentre os Estados chamados democráticos. Nesse quadro,

Agamben analisa o modo pelo qual “o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão”294, anulando o estatuto jurídico dos indivíduos para incluir a vida nua, a vida

“matável e insacrificável”295 do homo sacer.

Essa inclusão da vida nua pelo direito, sob a forma de sua própria suspensão, aparece na sequência de atos que surgiram logo após o atentado em 11 de setembro. A guerra contra o terrorismo, proclamada por George W. Bush após o ataque, instaurava um “estado de Guerra global, uma guerra infinita e indefinida, contra um inimigo abstrato”.296 Na realidade, afirma

Moniz Bandeira em Formação do império americano, a guerra contra o terrorismo pretendia se opor a todos os países do oriente médio que não aceitassem a hegemonia norte-americana: era o fundamentalismo islâmico que representava, àquela altura, uma ameaça igual ou até maior do que o comunismo durante a guerra fria.297

Em 6 de outubro, Bush lançou oficialmente a campanha global contra o terror, declarando que as nações deveriam escolher entre “stand with the civilized world, or stand with the terrorists”298, ou seja, escolher se elas estão aquém ou além da nova amity line. Nesse discurso, fica claro onde se situa a figura do terrorista: no lugar da não-civilização, em oposição à democracia liberal norte-americana. No dia seguinte, iniciavam-se os bombardeios às instalações da Al-Qa’ida no Afeganistão.

Ao mesmo tempo em que se iniciava a ofensiva em território islâmico, as medidas antiterror tomavam forma dentro do país símbolo das liberdades ocidentais. Logo nos primeiros dias após o 11 de setembro, já se iniciava uma primeira versão do que seria, pouco mais tarde, o Patriot Act.299 Aprovado quase que sem alterações pelo Congresso Americano, o Patriot Act,

293 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 13. 294 Ibid., p. 14.

295 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, vol. I. Tradução: Henrique Burigo. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 48.

296 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra

no Iraque. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 638.

297 Ibid., p. 639.

298 Tradução nossa: “Ficar do lado do mundo civilizado ou ficar do lado dos terroristas”. (THE WHITE HOUSE. President Bush’s Radio Address to the Nation, October 6, 2001. The White House – Office of the Press Secretary, October 6, 2001).

promulgado em 26 de outubro, autorizava o procurador geral a manter presos os estrangeiros suspeitos de atividade ameaçadora à Segurança Nacional, devendo ser deportados ou acusados dentro do prazo de sete dias.300

Segundo o que afirma Agamben, em Estado de exceção, a nova ordem instaurada por Bush inova ao “anular radicalmente todo o estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável”301, que não é um prisioneiro, nem

um acusado, mas apenas tratado como detainee, isto é, ele é tratado como “objeto de uma pura dominação de fato, de uma detenção indeterminada não só no sentido temporal mas também quanto à sua própria natureza, porque totalmente fora da lei e do controle judiciário”.302 Nesse

sentido, explica Moniz Bandeira:

Dentro da moldura do USA Patriot Act, os direitos humanos e os direitos civis foram violentados, no âmbito doméstico, com detenções sem acusação prévia ou julgamento. Mais de 1.200 estrangeiros foram presos e deportados do Estados Unidos, por meio de procedimentos secretos, sem que sequer seus nomes fossem revelados. As liberdades individuais sofreram graves restrições dentro dos Estados Unidos. Milhares de imigrantes de todas as nacionalidades, lá residentes, ou portadores do

green card, poderiam ser presos, indefinidamente, sem acusações formais, conforme

decisão da Suprema Corte e do Departamento de Justiça. [...] O procurador-geral John Ashcroft, decidiu, igualmente, determinar a detenção por tempo indeterminado, sem considerar as circunstâncias de cada um, dos estrangeiros que chegassem ilegalmente nos Estados Unidos.303

Acresce-se, ainda, aquilo que José Maria Gomez entende como a peça-chave dessa guerra ao terror: a ordem executiva assinada por George W. Bush em 13 de novembro de 2001, intitulada Detenção, tratamento e julgamento de certos estrangeiros na guerra contra o terrorismo. A ordem permitia que cidadãos não nacionais ficassem sob custódia por tempo indeterminado, sem que lhes fosse assegurado recorrer aos tribunais norte-americanos, ao de sua nação de origem ou aos estrangeiros. Além disso, caso passassem por um julgamento, a competência seria das comissões militares nomeadas pelo próprio poder executivo estadunidense. 304 Como bem pontua Agamben, é nessa ordem executiva (Military Order) que

se mostra de forma mais clara o “significado imediatamente biopolítico do estado de exceção como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão”305. O século XXI tem início com a imagem da vida nua no campo de Guantánamo.

300 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 14. 301 Ibid., p. 14.

302 Ibid., p. 14.

303 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra

no Iraque. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 644-645.

304 GÓMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantánamo. Desterritorialização

e Confinamento na “Guerra contra o Terror". Contexto internacional, v. 30, n. 2, 2008. p. 271. Disponível em: https://search.proquest.com/openview/285dbe8294db202f850e74b2d8c796e0/1?pq-

origsite=gscholar&cbl=1936339. Acesso em 10 jun. 2019.

Como destaca Gomez em seu trabalho, a política antiterror norte-americana é um retrocesso em relação às conquistas relacionadas aos Direitos humanos dos últimos sessenta anos. 306 A estratégia neoconservadora pós 11 de setembro revela a subtração de uma categoria

inteira de não-cidadãos que não se enquadram no conceito estadunidense de civilização, e estão, portanto, despidos de garantias, sujeitando-se tão somente à vontade discricionária do soberano. Nesse sentido, Gomez conclui que, em última análise, a base dessa pretensão soberana universal de soberania está no monopólio da violência em escala mundial pretendido pelos Estados Unidos. Isto é, trata-se de uma “superioridade militar não apenas de fato [...] mas também legítima, como se a sua própria força fosse de ‘outra’ natureza, de uma natureza que, em última instância, não necessita de justificativa”307.

Retomando a perspectiva de Naomi Klein, viu-se, até aqui, a terapia de choque em seu sentido mais literal, imprimido contra os não-cidadãos, não reconhecidos enquanto adversários ou oponentes de guerra, mas verdadeiros inimigos para os quais toda garantia está suspensa. Eles são colocados fora da lei ou fora da humanidade, como afirma Schmitt, de forma que a eles só resta a aniquilação.308 Nesse ponto, Agamben lembra como essas políticas antiterror não

são medidas excepcionais, mas se tornaram a própria norma: “O terrorismo é inseparável do Estado porque define o sistema de governo. Sem o terrorismo, o sistema atual de governo não poderia funcionar.”309

Assim, se há uma relação entre Estado e terrorismo, da mesma forma há, também, uma relação entre a doutrina do choque por ele causada e as regras do livre mercado, trazendo o segundo sentido da terapia de choque abordado no livro de Klein. A autora dedica-se, nesse ponto, à forma pela qual a Guerra ao Terror trouxe consigo uma doutrina do choque econômico, abrindo caminho para a aplicação das teorias neoliberais mesmo às atividades mais essenciais do Estado, supostamente protegidas de privatizações.

À época dos ataques do 11 de setembro, o Secretário de Defesa dos Estados Unidos era Ronald Rumsfeld. Essa informação poderia ser um detalhe, não fosse pela trajetória de Rumsfeld, que auxilia na compreensão de sua relação com a doutrina do choque. O Secretário, que fez parte do governo de Gerald Ford, entre 1975 e 1977, havia dedicado suas últimas décadas ao mundo corporativo, de modo que, ao ser nomeado por George W. Bush, já tinha

306 GÓMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantánamo. Desterritorialização

e Confinamento na “Guerra contra o Terror". Contexto internacional, v. 30, n. 2, 2008. p. 268. Disponível em: https://search.proquest.com/openview/285dbe8294db202f850e74b2d8c796e0/1?pq-

origsite=gscholar&cbl=1936339. Acesso em 10 jun. 2019.

307 BALIBAR, Etienne apud GOMEZ, José Maria. Ibid., p. 290.

308 SCHMITT, Carl. O conceito do político. Lisboa: Edições 70, 2015. p. 99, 139.

309 PAÍS, El. Giorgio Agamben: “O estado de exceção se tornou norma”. 2018. Disponível em:

uma fortuna acumulada em 250 milhões de dólares.310 A familiaridade de Rumsfeld com o

capitalismo de desastre, abordado por Naomi Klein, mostrou-se de forma mais explícita em 1997, quando ele foi nomeado presidente da Gilead Sciences, uma empresa de biotecnologia que detinha a patente do tratamento para combate à gripe aviária. Naquele caso, se houvesse uma epidemia do vírus ou mesmo uma grande ameaça por ele, a empresa veria suas vendas subirem exponencialmente.311 A corporação já era familiar com o poder do choque.

Quando se juntou ao governo de Bush, em janeiro de 2001, Rumsfeld já havia declarado sua intenção em reinventar a guerra, “fazendo dela algo mais psicológico do que físico, mais espetacular do que uma luta, e muito mais lucrativo do que jamais antes havia sido”312. O Secretário de Defesa propunha uma grande transformação, inserindo dentro das

forças armadas a lógica das grandes corporações, principalmente por meio da criação de uma marca (branding) e pela terceirização.313 Buscando aproximar o Departamento de Defesa do

mundo corporativo, Rumsfeld proferiu um discurso no Pentágono, no dia 10 de setembro de 2001, em que afirmou que a maior ameaça ao país era a própria burocracia do Pentágono. Para ele, o Departamento de Defesa deveria se concentrar nas guerras, ao passo que todas as outras atividades não essenciais deveriam ser terceirizadas.314 O discurso foi impactante e

desencadeou reações muito contrárias, porque a própria Constituição dos Estados Unidos previa que a segurança nacional deveria ser matéria de competência do governo. No entanto, apesar das discordâncias, o ataque simbólico de Rumsfeld ao Pentágono não ganhou repercussão, pois no dia seguinte o próprio Pentágono se veria diante de um ataque muito mais relevante, no sentido menos metafórico do termo.315

Com o ataque em 11 de setembro, as ideias neoliberais tiveram sua fragilidade exposta, e a série de privatizações dos anos 80 e 90, até então observadas sem maiores críticas, começavam a trazer levantamentos. Naomi Klein exemplifica uma dessas preocupações com a situação nos aeroportos: “em 10 de setembro, desde que os voos fossem baratos e lotados, nada disso parecia um problema. Mas no dia 12 de setembro, contratar trabalhadores encarregados da segurança nos aeroportos por 6 dólares a hora parecia irresponsável”316.

Quando Bush tomou posse, em 2001, a queda no crescimento das empresas indicava a ameaça de uma grave crise econômica. Ao contrário do que sugeriria o modelo Keynesiano, segundo o qual o incentivo às obras públicas seria uma forma de sair da recessão, a solução de

310 KLEIN, Naomi. The shock doctrine: the rise of disaster capitalism. New York: Picador, 2007 p. 358. 311 Ibid., p. 366.

312 Ibid., p. 358. (Tradução nossa). 313 Ibid., p. 359.

314 Ibid., p. 362. 315 Ibid., p. 363.

Bush foi que o governo desmantelasse a si mesmo. Mas com os atentados de 11 de setembro, a solução de um governo autodestrutivo não pareceu uma boa ideia. Diante da população aterrorizada em busca de proteção vinda de um governo sólido, os ataques poderiam ter posto fim ao projeto de Bush.

Com a crise que sucedeu, decaía a fé na indústria privada para prover serviços essenciais, e enquanto os CEOs caíam de seus pedestais, os verdadeiros heróis do 11 de setembro eram os funcionários públicos que haviam trabalhado e até mesmo sacrificado suas próprias vidas para as atividades de resgate. Naquele momento, aponta Klein, George W. Bush tratou o serviço público com uma dignidade não vista havia pelo menos quatro décadas, e o discurso de corte de gastos subitamente saiu de sua agenda.317

No entanto, apesar dos pronunciamentos públicos da época, o governo de Bush não tinha a menor intenção de se converter às políticas keynesianas ou favorecer, de alguma forma, a prestação de serviços públicos como forma de fugir da crise. Em sentido contrário, as falhas no sistema de segurança que se mostraram no dia dos atentados somente reafirmam a ideia de que somente as empresas privadas poderiam possuir a inteligência necessária para enfrentar os novos desafios que se apresentavam em matéria de segurança nacional.318

O governo estava, sim, disposto a gastar dinheiro para movimentar a economia. Ocorre que a política pretendida era muito distante daquela realizada por Roosevelt com o New Deal. Tratava-se, na verdade, de um New Deal corporativista, com a transferência de dinheiro público para grandes empresas. Explicando esse fenômeno à luz da ideia desenvolvida em sua obra, Klein explica que “o que aconteceu no período de desorientação em massa depois dos ataques foi, olhando-se por retrospectiva, uma forma doméstica de terapia de choque econômico”319.

A equipe de Bush, adepta às ideias de Friedman – sobretudo sob a figura de Rumsfeld, que nutria admiração pelo economista desde a década e 60 e com ele manteve uma relação próxima –, empenhou-se em explorar o choque que pairava sobre a nação inteira, para alavancar sua visão de um governo vazio, em que tudo, desde a guerra até a resposta aos desastres, fosse uma aventura lucrativa.320 Seguindo uma fórmula distinta daquela dos anos 90, que consistia

em simplesmente vender as empresas públicas, a estratégia seguida por Bush e sua equipe foi construir uma nova estrutura para suas ações. Assim tomava forma a Guerra ao Terror, construída para ser privatizada desde o princípio.321

317 Ibid., p. 374. 318 Ibid., p. 376.

319 Ibid., p. 376. (Tradução nossa). 320 Ibid., p. 376.

O projeto da Guerra ao Terror precisava passar por dois estágios: primeiro, a Casa Branca deveria se aproveitar do senso de perigo após os ataques para aumentar a demanda por policiamento, vigilância, detenções e gastos com a guerra. Em segundo, essas novas funções deveriam ser terceirizadas e entregues ao setor privado, sendo desenvolvidas de forma lucrativa. Com isso, sob o pretexto de combate ao terrorismo, o que se criava era um verdadeiro complexo do capitalismo de desastre, de forma que o governo se encarregava de garantir a demanda necessária para um Estado de segurança privatizada.322

Naomi Klein destaca, nesse ponto, que a ferramenta ideológica mais efetiva na Guerra ao Terror foi a reivindicação de que não se tratava mais de uma ideologia econômica que estava