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A GLOBALIZAÇÃO E A NORMA FUNDAMENTAL DA CONCORRÊNCIA: DO

As novas formas políticas trazidas pelo neoliberalismo em muito ultrapassam um retorno ao capitalismo e ao liberalismo clássico, como se buscou demonstrar até aqui. Elas revelam, na verdade, “uma subordinação a certo tipo de racionalidade política e social articulada à globalização e à financeirização do capitalismo”.195 Nesse sentido, Dardot e Laval

afirmam que a virada neoliberal só pode ter ocorrido mediante a implantação de uma nova lógica normativa que reorientasse todas as políticas em nível global. Com a globalização e a concentração de poder cada vez maior no mercado financeiro, a concorrência consagrou-se enquanto norma fundamental dos governos, marcando a instauração de um novo sistema disciplinar mundial.

193 HARVEY, David. O neoliberalismo…, op. cit., p. 49.

194 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 197. 195 Ibid., p. 190.

Busca-se, entender, neste ponto, em que medida essa nova disciplina mundial fez a concorrência imperar como norma máxima não somente entre empresas e indivíduos, mas também entre Estados e até mesmo entre normas.

Dois atores fundamentais nessa narrativa são o Banco Mundial e o FMI, criados logo após a segunda-guerra mundial, no Acordo de Bretton Woods, em 1945. Enquanto o Banco Mundial tinha por atividade principal o financiamento dos países em desenvolvimento, o FMI era responsável por manter o câmbio estável e zelar pelos acordos monetários. Dardot e Laval destacam que a partir da década de 80 essas instituições passaram a desempenhar um papel fundamental na difusão das normas neoliberais, passando a exercer uma intervenção que “visava a impor o quadro político do Estado concorrencial, ou seja, do Estado cujas ações tendem a fazer da concorrência a lei da economia nacional (...)”196.

Como visto, a fórmula do capitalismo do pós-guerra entrou em declínio a partir da década de 70, fazendo com que o desemprego e a inflação atingissem altos índices, afetando, inclusive, o lucro das classes mais altas. Diante disso, elevar as taxas de juros pareceu uma forma de recuperar o lucro perdido, e o neoliberalismo ergueu a bandeira do combate à inflação para impor suas medidas. Assim, com um aumento nas taxas de juros, surgiram grandes crises de endividamento que afetaram países periféricos, com destaque aos latino-americanos.

Nesse contexto, no começo da década de 80, surgiam as principais lideranças políticas neoliberais, após a experiência laboratorial nos países periféricos, com o destaque de Ronald Reagan nos Estados Unidos (1981-1989) e Margaret Thatcher, no Reino Unido (1970-1990). Com medidas de austeridade, conseguiram combater a inflação, elevando os juros, mas não sem danos: o preço pago foram taxas crescentes de desemprego e de desigualdade de renda. Como essas políticas neoliberais não floresceram sem causar controvérsias, era preciso uma força-tarefa que se encarregasse de disseminar as políticas neoliberais em escala global.

Nesse ponto, o FMI exerceu um papel essencial, que consistiu na proliferação da racionalidade neoliberal por meio de negociações de condições de pagamento com os países endividados, concedendo empréstimos condicionados a planos de ajuste estrutural na política de cada um desses países. O caso do México, em 1984, marca a primeira vez em que o Banco Mundial concedeu empréstimo a um país em troca de reformas neoliberais.197 David Harvey

destaca os efeitos dessas reformas ao analisar dados do país entre 1983 e 1988, em que a renda per capita reduziu em 5% ao ano, os salários foram reduzidos entre 40% e 50% e os subsídios foram reduzidos, resultando em uma queda na qualidade da educação e saúde públicas.198

196 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 198. 197 HARVEY, David. O neoliberalismo…, op. cit., p. 109.

Sem deixar de mencionar o caso brasileiro, considerado o mais tardio episódio de neoliberalização na América Latina, as políticas de neoliberalização marcaram nosso território sob o Governo de Fernando Collor de Mello, entre 1990 e 1992. Como destaca David Maciel, “o Plano Collor I anunciou a aurora da era neoliberal, que tinha o combate à inflação apenas como aspecto inicial de um ambicioso processo de redefinição do padrão de acumulação capitalista e de ofensiva contra os direitos sociais e trabalhistas”.199 Com o impeachment sofrido

por Collor em 1992, o ritmo de neoliberalização recuou, para ser retomado somente depois no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995.200

Na década de 80, FMI e Banco Mundial já se tornavam, então, “centros de propagação e implantação do ‘fundamentalismo econômico do livre mercado’ e da ortodoxia neoliberal”.201

O neoliberalismo percebia, assim, que a forma mais eficaz para se defender do socialismo, do fascismo, das políticas keynesianas e mesmo da vontade da maioria seria sujeitar a governança democrática a essas instituições, “não democráticas e que não prestam contas a ninguém”.202

Como esclarece Naomi Klein,

[o] princípio era simples: países em crise precisam desesperadamente de ajuda emergencial para estabilizar suas moedas. Quando a privatização e políticas de livre comércio estão no pacote com um resgate financeiro, os países não têm muita escolha a não ser aceitar o pacote por completo.203

Seguiu-se, então, uma série de mecanismos que começavam a mudar as regras internas de cada país, colocando-os em uma disputa generalizada que lhes exigia as devidas adequações às reformas neoliberais. Com isso, seguiram-se ondas de privatizações, em um movimento geral de desregulamentação da economia, fazendo da regra da concorrência uma espécie de regra universal dos governos.204 Ou seja, com a onda de neoliberalização da década de 80, os próprios

Estados entravam na concorrência generalizada, em uma corrida pela busca de investimentos estrangeiros. Os Estados deveriam ser atrativos ao Mercado, independentemente dos custos que as medidas pudessem ter para populações inteiras, para a garantia de direitos básicos, e para a própria democracia – que assistiu a todo esse processo de mãos atadas.

199 MACIEL, David. O governo Collor e o neoliberalismo no Brasil (1990-1992). Revista UFG, ano XIII, n. 11,

dez. 2011. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/48390/23725. Acesso em: 29 mai. 2019.

200 FILGUEIRAS, Luiz. O neoliberalismo e crise na América Latina: o caso Brasil. CLACSO, Buenos Aires,

2003. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20100723022522/filgueiras.pdf. Acesso em: 29 mai. 2019.

201 HARVEY, David. O neoliberalismo…, op. cit., p. 38. 202 Ibid., p. 80.

203 KLEIN, Naomi. The shock doctrine: the rise of disaster capitalism. New York: Picador, 2007. p. 206.

(Tradução nossa).

Cabe destacar, ainda, que a atuação do Estado não foi somente pela via da desregulamentação e de sua inserção na corrida da financeirização. Isso porque os próprios Estados desempenharam um papel que contribuiu para a hipertrofia das instituições financeiras, que passaram a assumir riscos cada vez maiores, a fim de aumentarem sua rentabilidade. Essa assunção de riscos cada vez maiores só se fez possível porque o Estado se portou como o grande fiador desse sistema, de modo que “o governo neoliberal faz o papel de credor de última instância”.205 Essas intervenções do Estado enquanto fiador enunciam o princípio da

nacionalização dos riscos e privatização dos lucros. “Construtor, vetor e parceiro do capitalismo financeiro, o Estado neoliberal deu um passo à frente, tornando-se efetivamente, graças à crise, a instituição financeira de última instância”.206

David Harvey afirma que essa série de implementações do neoliberalismo convergiram, enfim, enquanto uma nova ortodoxia com a articulação do Consenso de Washington, em 1989.207 O encontro, que se deu nos Estados Unidos, tinha por principal

objetivo fazer um balanço das experiências realizadas até então na América Latina, para, então, estabelecer recomendações, que incluíam cortes nos gastos sociais, reformas tributárias que beneficiassem o Mercado (aqui, leia-se grandes corporações), privatizações, abertura comercial e econômica, desregulamentação de leis trabalhistas.

Poucos anos mais tarde, na mesma onda de neoliberalização em escala global, a cidade de Marrakesh, no Marrocos, foi palco de um acordo internacional que também é um capítulo importante na história do neoliberalismo. O destaque principal do Acordo de Marrakesh é a criação da Organização Mundial do Comércio, sobre o qual Alain Supiot se debruça ao traçar diferenças elementares com relação à declaração de Filadélfia, de algumas décadas antes.

Segundo o autor francês, a competição enquanto objetivo principal a ser perseguido em escala mundial faz parte de um dogma de que o crescimento do comércio e da produção são, em si, uma finalidade, que, por sua vez, só pode ser alcançada em um ambiente de concorrência generalizada.208 É sobre esse dogma que se erige o Acordo de Marrakesh ao

instituir a Organização Mundial do Comércio.

Desde o início, a dissonância em relação à Declaração de Filadélfia é nítida, ao estabelecer o acordo que as relações entre os Estados devem ser orientadas para a melhoria dos indicadores economicamente calculáveis, assim como o aumento da produção e circulação de mercadorias e serviços.209 O objetivo principal pretendido passa a ser circundar tudo o que se

205 Ibid., p. 204. 206 Ibid., p. 205.

207 HARVEY, David. O neoliberalismo…, op. cit., p. 102. 208 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia…, op. cit., p. 56. 209 Ibid., p. 56.

liga à livre concorrência, em contraposição à Declaração de Filadélfia, que tinha um olhar para os seres humanos, com a finalidade de lhes assegurar sua dignidade, pela concretização dos ideais de justiça social.210

Supiot destaca, ainda, a terceira alínea do preâmbulo, segundo a qual a realização dos objetivos propostos deve levar à celebração de acordos pela redução das tarifas aduaneiras e quaisquer obstáculos ao comércio. Isso indica que as regras comerciais deixam de ser avaliadas à luz do objetivo maior de justiça social, e passam a ser consideradas por si sós, de modo que “não é previsto nenhum procedimento para permitir medir a eficácia da generalização da livre circulação (...) em escala mundial, na visão dos objetivos de nível de vida, de taxas de emprego e de remunerações”.211 O acordo de Marrakesh consagra, então, a lógica do Mercado Total,

segundo a qual o Mercado é o princípio que regula todas as ações, mobilizando “absolutamente todos os recursos humanos, técnicos e naturais”212 para agirem segundo a norma geral da

concorrência.

Assim, o aporte teórico neoliberal que se viu no capítulo anterior passou não somente a ganhar corpo por políticas nacionais, mas a ser disseminado pelas instituições supranacionais. Essas instituições, ilustradas pelo Banco Mundial, FMI e, após, pela OMC, fizeram parte de uma codificação mundial que redefiniu as formas pelas quais os Estados poderiam exercer sua soberania e pela qual a população poderia exercer a democracia. A partir de então, os governos e os povos estão adstritos a agir segundo as vontades do Mercado, em consonância com o fundamentalismo econômico neoliberal, que se tornou uma espécie de religião oficial.213214

No ritmo da neoliberalização em escala global, crescia a passos largos o capitalismo financeiro, tomando o lugar do capitalismo fordista. Desde os anos 80, afirmam Dardot e Laval, as transações já mostravam que o mercado financeiro havia se tornado autônomo em relação à produção de bens e mercadorias.215 Com as privatizações engendradas pelo neoliberalismo, o

210 Ibid., p. 56. 211 Ibid., p. 57. 212 Ibid., p. 55. 213 Ibid., p. 33.

214 A respeito do tema, recomenda-se a entrevista com Giorgio Agamben intitulada “Deus não morreu. Ele tornou-

se Dinheiro". Na entrevista, o filósofo afirma: “Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania ), manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo”. (AGAMBEN, Giorgio. Deus não morreu. Ele tornou-se Dinheiro. Entrevista com Giorgio Agamben. [Entrevista cedida a] Peppe Salvà. Instituto Humanitas Unisinos, 2012. Tradução: Selvino J. Assmann. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben. Acesso em: 02 jun. 2019).

capital estrangeiro passou a dominar as corporações, passando a haver um poder cada vez maior na mão dos acionistas e investidores. Desse modo, as próprias empresas tiveram suas estruturas modificadas, passando a ser controladas não mais por seus gestores, mas pelos acionistas.

É a vontade dos acionistas que, antes de mais nada, ganha o protagonismo nas empresas. Do mesmo modo, não é mais o que ou como a empresa produz que ganha relevância, mas sim, quanto valem suas ações. Essa mudança faz com que o mercado financeiro se torne um “agente disciplinante para todos os atores da empresa, desde o dirigente até o assalariado de base (...).”216 A autonomia dos gestores é, então, limitada, e o comportamento de todos

dentro da empresa deve estar condizente com políticas de valorização na bolsa de valores. Passa-se a seguir a vontade intransigente dos grupos seletos de grandes acionistas e investidores, que os neoliberais preferem chamar apenas de “Mercado”.

Dardot e Laval destacam esse caráter disciplinador dessa nova forma de capitalismo: não se trata de um capitalismo desorganizado, mas de um capitalismo que se ergue sobre novas bases, instaurando uma disciplina específica para fazer da concorrência uma norma fundamental generalizada a nível global:

O que aprouve chamar de ‘desregulamentação’, termo ambíguo que poderia dar a entender que o capitalismo não conhece nenhum outro modo de regulação, é na realidade uma nova ordenação das atividades econômicas, das relações sociais, dos comportamentos e das subjetividades. Nada é mais indicativo disso do que o papel dos Estados e das organizações econômicas internacionais no estabelecimento do novo regime de acumulação predominantemente financeiro. Há, de fato, uma falsa ingenuidade no fato de se lamentar a força do capital financeiro em oposição à força declinante dos Estados. O novo capitalismo está profundamente ligado à construção

política de uma finança global regida pelo princípio da concorrência generalizada.

Nisso, a ‘mercadorização’ (marketization) das finanças é a filha da razão neoliberal’.

217

Ou seja, a globalização não significou a retirada de qualquer imposição, mas trouxe um novo sistema de disciplina, com regras a serem seguidas por todos os atores financeiros, a incluir os indivíduos e os Estados. Não está mais em disputa a possibilidade de contrariar essa nova ordem global, de modo que os sistemas políticos devem se adequar à abertura de fronteiras à mercadoria e ao capital, pois só assim se possibilita a concretização do objetivo principal, que é o da concorrência a nível mundial. Com isso, liberta das barreiras regulatórias, a atividade financeira cresceu descontroladamente, ultrapassando em muito o poder que detêm os Estados, a democracia ou a ultrapassada soberania nacional.

A atividade especulativa das empresas tornou-se muito rentável, causando uma bolha abordada por Ladislau Dowbor em A era do capital improdutivo. O ponto central desenvolvido

216 Ibid., p. 201. 217 Ibid., p. 201-202.

na obra é que a desregulação no sistema financeiro fez com que a especulação substituísse investimentos reais, causando um processo de drenagem no sistema produtivo.218 A distribuição

de renda em nível global, mostrada na imagem 01 do tópico anterior, indica um percentual mínimo de 1% da população adulta mundial que detém mais recursos do que todo o restante da população mundial. Dowbor se dedica, em toda sua obra, ao estudo da concentração de poder nas grandes corporações, alertando para os desvios quando se consideram os Estados como os grandes poderosos:

Quando na capa do The Economist aparece o nome da empresa BlackRock e seu faturamento de 14 trilhões de dólares, quase equivalente ao PIB dos Estados Unidos, temos de reajustar nossos conceitos. Foi realmente o Estado que se tornou um gigante sem controle?219

O grupo seleto do 1% mais rico, que está à frente das grandes corporações que ditam as regras do Mercado, tem fortunas tamanhas que não se satisfazem com o consumo. Desse modo, essas fortunas são reaplicadas no mercado financeiro, que acentua a posição desses super-ricos, pois a aplicação financeira rende muito mais do que investimentos produtivos: enquanto o PIB cresce em um ritmo que oscila entre 1% e 2,5%, as aplicações financeiras têm um rendimento acima de 5%. Dessa forma, cria-se “uma dinâmica de transformação do capital produtivo em patrimônio financeiro: a economia real sugada pela financeirização planetária”.220

Dowbor aborda, em sua obra, uma pesquisa realizada pelo Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica, feito em 2011, intitulado “A Rede de Controle Corporativo Global”. O que esse estudo mostra, aponta Dowbor, é que as grandes corporações se organizam em grandes grupos cujo poder está altamente concentrado, desafiando qualquer tentativa de regulação por parte dos governos nacionais. Como essas corporações são gigantes e desconhecem limites espaciais, transitam livremente entre os terrenos que lhes forem mais favoráveis. Já as possibilidades de regulação, por outro lado, não têm poder análogo, pois estão dispersas, fragmentadas entre países que não se articulam para limitar esse poder desenfreado.221

A pesquisa suíça analisada por Dowbor indica que esse modelo de financeirização desregulada traz uma tendência de dominação do sistema especulativo sobre o produtivo, de modo que essa deformação não decorre de uma articulação global entre os atores beneficiados, mas é estrutural. Entre esses grandes grupos corporativos, quando os interesses convergem, não se faz necessário nenhum tipo de acordo, pois há uma espécie de solidariedade inerente a esse

218 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo…, op. cit., p. 32. 219 Ibid., p. 55.

220 Ibid., p. 33. 221 Ibid., p. 47.

sistema, sobretudo quando se trata de evitar qualquer regulação, taxação ou controle por parte de normas contrárias às do mercado.222

Essa lógica da concorrência como um processo disciplinador e revelador dos mais aptos à sobrevivência em uma sociedade de Mercado reforça a aproximação do neoliberalismo com darwinismo aplicado ao campo social. Como visto, a ideia desenvolvida pelo pensamento neoliberal é a de que as condutas individuais são guiadas pela competição, consolidando um darwinismo social, de modo que qualquer tipo de desequilíbrio à ordem da concorrência é prejudicial a todo o processo evolutivo. A esse respeito, muito se tem estudado essa concepção dos indivíduos em sociedade como se fossem colocados em luta pela sobrevivência, criticando- se, em muitos casos, os lições de meritocracia trazidas por esse tipo de discurso.

O que se pretende demonstrar, aqui, vai além da crítica ao darwinismo social. Trata- se de entender como a racionalidade neoliberal estendeu o discurso cientificista para legitimar a norma da concorrência não somente entre os indivíduos, mas atingiu também os Estados, em uma disputa pelos investimentos do capital financeiro, fazendo com que o Direito fosse colocado na mesa de negociação.

Alain Supiot aborda o que ele chama de darwinismo normativo, de forma significante e muito contributiva para a análise aqui pretendida. Destaca o autor que, no contexto do Mercado Total, o Direito passa a ser mais um dos produtos dentro da competição no cenário mundial. Desse modo, a lei natural que seleciona os mais aptos dentro do mercado competitivo também é aquela que atravessa o Direito em um processo de seleção das normas mais aptas. O Direito é colocado, então, sob norma da concorrência, em vez de, ao contrário, fazer com que a concorrência se sujeite à lei.223

No cenário da globalização, os investidores e empresas são livres para buscarem as leis que lhes forem mais favoráveis, não devendo se sujeitar às legislações dos países em que operam.224 Abre-se um novo mercado de produtos legislativos, em uma livre disputa que visa

a selecionar as normas mais pertinentes aos interesses do mercado. Alain Supiot dá o nome a esse processo: law shopping.225 As corporações passam a ser vistas como consumidoras do

Direito que melhor atender a suas exigências.

Nesse mercado de normas, afirma Supiot, o Banco Mundial exerce um papel fundamental. Anualmente, a instituição publica um relatório que avalia os direitos nacionais e a eficácia econômica de cada país.226 Essas publicações, feitas desde o ano de 2004, constituem

222 Ibid., p. 49.

223 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia…, op. cit., p. 58. 224 Ibid., p. 58.

225 Ibid., p. 59. 226 Ibid., p. 59.

o programa de pesquisa Doing Business, que analisa o contexto regulatório em 190 países buscando relacionar os indicadores relacionados à atividade empresarial. Segundo consta em nota do Ministério da Fazenda – hoje, Ministério da Economia, a respeito do tema, são analisados onze indicadores, sendo eles:

i) Abertura de empresas; ii) Registro de propriedades; iii) Obtenção de crédito; iv) Pagamento de impostos; v) Comércio entre fronteiras; vi) Execução de contratos; vii) Resolução de insolvência; viii) Obtenção de eletricidade; ix) Proteção dos