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Sobre a forma do Direito neoliberal, Alain Supiot afirma que o Direito nascido do neoliberalismo está impregnado de formas antigas, havendo sofrido um processo de feudalização. Segundo o autor, esse processo ensina que as categorias do passado não seguem uma linha evolutiva, e que formas antigas podem ser retomadas a qualquer tempo, “mesmo porque não existe uma variedade infinita de tipos de estruturas jurídicas”.236

Fazendo referência à filosofia política chinesa, Supiot distingue o governo pelas leis do governo pelos homens. Destaca o autor que, no governo pelas leis, a lei decorre da vontade de um poder soberano e é imposta a todos de forma igual. Sendo assim, todos estão submissos a leis gerais e abstratas, o que é também uma “condição de liberdade reconhecida para cada um”.237 Essa estrutura implica a participação de um terceiro, que é a fonte e garantia das leis,

cujos interesses não se confundem com aqueles dos indivíduos.

Já no governo pelos homens, cada indivíduo está inserido em um sistema com muitos elos de dependência, que não diz respeito à igual submissão de todos perante a lei abstrata. Essa dependência se determina, na verdade, pela conformidade dos comportamentos dos indivíduos de acordo com o lugar que cada um ocupa nessa rede de dependências, ou seja, “o que define a condição jurídica dos homens, tanto em suas relações mútuas quanto em suas relações com as coisas, é a inclusão nessas ligações pessoais, e não a submissão a uma mesma lei impessoal”.238

236 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle

Tschiedel, Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 93.

237 Ibid., p. 93. 238 Ibid., p. 94.

No governo pelas leis, são delimitadas duas esferas bem distintas: há um plano jurídico referente a questões que dependem tão somente da deliberação da lei, independentemente de qualquer cálculo de utilidade individual; e há o plano que se refere às ações calculáveis pelos indivíduos, passíveis de negociação pela via do contrato. É nesse segundo âmbito, o do contrato, que os indivíduos podem ser tratados como entidades abstratas e cambiáveis, uma vez que “suas diferenças qualitativas são responsabilidade do domínio do incalculável que incumbe à Lei”.239

No modelo de governo pelos homens, por sua vez, essa distinção entre Lei e contrato, entre incalculável e calculável, é turva. Ou seja, a lei é colocada sob negociação entre grupos de interesse, fazendo com que a suposta lei geral e abstrata seja também suscetível de câmbio. Nesse quadro, a figura do terceiro garantidor não desaparece, mas é fragmentada sob a forma de múltiplos polos que estão conectados nessa mesma rede. O Estado, alerta Supiot, deixa de ser soberano para se aproximar da figura de um suserano em relação a essa rede de interesses global.240

Partilhando da crítica de Supiot, segundo a qual o direito neoliberal retomou o modelo de governo pelos homens, passando pela instrumentalização do Direito abordada no capítulo anterior, este trabalho chega, enfim, ao tema que lhe atribuiu seu título. Arriscando-se caminhar sobre o terreno ainda pouco explorado do lawfare, pretende-se, aqui, trazer algumas considerações principais sobre essa técnica e sua estreita relação com o caminho trilhado pelo Direito neoliberal.

De antemão, faz-se necessário trazer à tona algumas dificuldades no estudo do tema, que, embora venha sendo mencionado com certa frequência nos meios midiáticos e discussões políticas, ainda não recebeu a devida dedicação em matéria acadêmica. As pesquisas por abordagens brasileiras do lawfare mostraram que há alguns artigos e trabalhos esparsos que mencionam o lawfare dentro de análises de casos práticos. No entanto, na grande maioria dessas análises, são os casos que ganham protagonismo, e a menção ao lawfare é trazida, em geral, juntamente com uma curta definição, sem, no entanto, dedicar-se de forma aprofundada ao seu conceito, suas origens e sua íntima relação com o neoliberalismo.

Recorrendo à literatura estrangeira, esta pesquisa debruçou-se diante de um livro inteiro dedicado ao lawfare, intitulado: “Lawfare: law as a weapon of war”, escrito pelo professor de Direito da Universidade Estadual do Arizona e antigo procurador do Departamento de Estado norte-americano, Orde Kittrie. A obra, publicada em 2016, tem a intenção de reunir pontos relevantes sobre a matéria, trazendo, sobretudo, casos em que houve prática de lawfare.

239 Ibid., p. 94. 240 Ibid., p. 94.

O autor parte da constatação de que o Direito tem se tornado uma arma de guerra cada vez mais poderosa. Ele inclui algumas razões que possam ter contribuído para essa crescente instrumentalização, dentre as quais o número crescente de busca por leis e tribunais internacionais, o aumento de organizações não-governamentais com foco em conflitos armados, a revolução das tecnologias da informação e, por fim, o avanço da globalização e da interdependência econômica.241

A análise que aqui se pretende fazer do lawfare, como se demonstrará, é muito distinta daquela feita ao longo da obra de Kittrie. No entanto, é possível reconhecer, desde já, que há ao menos uma concordância ao se admitir a globalização como sendo responsável pela instrumentalização do uso do Direito como arma de guerra.

Reconhecendo o fenômeno de crescimento do Direito enquanto instrumento bélico, o major-general norte-americano Charles Dunlap Jr. escreveu um artigo, em novembro de 2001, que introduziu o termo lawfare sob a forma que é hoje mais utilizada e aceita internacionalmente.242 Em outro artigo escrito alguns anos depois, ele definiu lawfare como

sendo “o uso – ou mau-uso – da lei como substituto de tradicionais meios militares para atingir um objetivo operacional”.243

Dunlap, em seu texto, usou o termo para abordar o uso estratégico do Direito principalmente para criticar o uso de leis que colocassem em risco a legitimidade das campanhas militares orquestradas pelos Estados Unidos e Israel. Ele inicia seu artigo alertando para esse suposto perigo: “Está, o lawfare, transformando a guerra em injustiça? Em outras palavras, o direito internacional está prejudicando a habilidade de os Estados Unidos de conduzirem efetivamente suas intervenções militares?”244 Para Dunlap, o conteúdo desse novo

direito internacional emergente, profundamente antidemocrático, teria o potencial de comprometer a liderança dos Estados Unidos.

Ao atribuir o papel da globalização no crescimento do lawfare, Dunlap cita como exemplo países europeus que, em meio a economias cada vez mais competitivas a nível mundial, pareceram abandonar elementos de sua soberania. Esses países parecem confortáveis com a ideia de obedecer ao Parlamento europeu, que é essencialmente uma legislação externa

241 KITTRIE, Orde F.. Lawfare: law as a weapon of war. New York: Oxford University Press, 2016. p. 1. Tradução

nossa.

242 DUNLAP JR, Charles J. Law and military interventions: preserving humanitarian values in 21st conflicts.

Humanitarian Challenges in Military Intervention Conference, 2001. Disponível em: https://people.duke.edu/~pfeaver/dunlap.pdf. Acesso em 02 jun. 2019. (Tradução nossa).

243 DUNLAP JR., Charles J. Lawfare Today: A Perspective, Yale Journal of International Affairs 146-154

(Winter 2008). Disponível em: https://scholarship.law.xduke.edu/faculty_scholarship/3154/. Acesso em 02 jun. 2019. (Tradução nossa).

244 DUNLAP JR, Charles J. Law and military interventions: preserving humanitarian values in 21st conflicts.

aos países-membros, em uma afronta à soberania estatal que jamais seria aceita, segundo Dunlap, pelos Estados Unidos.245

Importa destacar, no entanto, que tanto para Dunlap, que cunhou o termo na forma pela qual é mais utilizado hoje, quanto para Kittrie, o termo é neutro, não indicando, portanto, que a prática do lawfare seja positiva ou negativa. Como qualquer arma, o lawfare pode ser utilizado para fins diversos, não sendo intrinsecamente prejudicial. Kittrie destaca, nesse sentido, não somente os efeitos malignos, mas também aspectos positivos à segurança norte- americana, em situações nas quais o lawfare protegeu a população dos movimentos de insurgência e em que os processos judiciais auxiliaram a combater o financiamento de atividades consideradas terroristas.246

Para Orde F. Kittrie, o governo dos Estados Unidos engajou-se de forma esporádica com o lawfare, sem desenvolver uma verdadeira estratégia ou doutrina a respeito dessa técnica, o que ele considera uma oportunidade desperdiçada. Nos casos analisados em seu livro, ele procura demostrar que em muitas vezes o lawfare pode substituir o conflito armado, por ser uma prática menos danosa e menos custosa do que a guerra pelos meios tradicionais. 247 As

posições do autor quanto ao uso do lawfare pelos Estados Unidos tornam-se ainda mais claras ao longo da obra: “este livro recomenda que os Estados Unidos e seus aliados melhorem suas habilidades ofensivas e defensivas diante do lawfare instrumental (...)”.248

Embora, em um primeiro momento, a obra de Kittrie pareça servir exatamente ao estudo do presente trabalho, a leitura de suas primeiras páginas já indica o distanciamento com relação ao que aqui se pretende abordar a respeito do lawfare. O distanciamento mostra-se sob diversas formas, entre elas a centralidade da segurança nacional dos Estados Unidos que permeia toda a abordagem de Kittrie; o menor aprofundamento dedicado a questões teóricas em benefício de casos práticos; a discussão em matéria de direito internacional sem um estudo aprofundado de práticas de lawfare dentro das políticas internas. Assim, o livro de Kittrie e o artigo de Dunlap Jr. permitem uma primeira abordagem do tema, marcada antes pelos seus afastamentos do que pelas suas aproximações com o estudo aqui pretendido.

Naquele mesmo ano de 2001, outro estudo a respeito do lawfare também era desenvolvido, dessa vez por John Comaroff, antropólogo norte-americano e então professor da

245 Ibid. (Tradução nossa).

246 KITTRIE, Orde F.. Lawfare: law as a weapon of war. New York: Oxford University Press, 2016. p. 7.

(Tradução nossa).

247 No original, de forma estendida: “Lawfare is almost Always less deadly than traditioanl warfare. […] Lawfare

is also almost Always less financially costly than traditional warfare”. (KITTRIE, Orde F.. Lawfare: law as a weapon of war. New York: Oxford University Press, 2016. p. 3).

248 KITTRIE, Orde F.. Lawfare: law as a weapon of war. New York: Oxford University Press, 2016. p. 32-33.

Universidade de Chicago. A análise de Comaroff partia de pontos muito diferentes daquela pretendida por Dunlap e Kittrie: o antropólogo dedica seu estudo às relações entreDdireito e colonialismo, definindo lawfare como “o esforço para conquistar e controlar povos indígenas pelo uso coercivo de meios legais”.249 Ele fala, portanto, em um lawfare de dominação, que

parte dos colonizadores para as colônias – muito distante do lawfare sofrido pelos Estados Unidos, como argumentam Dunlap e Kittrie.

Em um livro publicado poucos anos mais tarde, intitulado Law and Disorder in the Post Colony e escrito por John Comaroff juntamente com sua esposa Jean Comaroff, os autores analisaram novamente o fenômeno do lawfare, abordando-o enquanto um “recurso a instrumentos legais e à violência inerente ao Direito para cometer atos de coerção política”250.

Os autores tratam da violência inerente ao Direito a partir da perspectiva de Walter Benjamin em seu ensaio Para uma Crítica da Violência (Poder).

O ensaio de Benjamin, publicado em 1921, busca estabelecer uma crítica das relações entre violência e direito. No ensaio, Walter Benjamin discorre que a violência só se apresenta como tal, “no sentido pregnante da palavra, quando interfere em relações éticas”251,

relacionando-se à esfera do Direito e da justiça, portanto. Nesse sentido, a relação entre Gewalt – que pode significar tanto violência como poder – e o Direito se mostra na medida em que toda violência, enquanto meio, é instituinte ou mantenedora do Direito.252

A violência não pode ser um fim em si, isto é, ela só pode servir como um meio. Sendo assim, se a violência é aceita como meio, pode parecer que o critério existente para sua crítica seja aquele relacionado aos fins para os quais a violência é utilizada, se justos ou injustos. Assim, a crítica da violência implicitamente estaria inserida dentro de um sistema de fins justos.253 Mas essa questão não responde à pergunta para saber se “a violência em geral,

enquanto princípio, é ética, mesmo como meio para fins justos”254. Para isso, Benjamin propõe

um critério de crítica ligado aos próprios meios, sem levar em conta os fins.

A posição adotada por Benjamin critica a visão jusnaturalista do Direito, segundo a qual a violência é um produto da natureza que pode ser utilizado desde que para fins justos. Em

249 COMAROFF, John L. Colonialism, culture, and the law: A foreword. Law & Social Inquiry, v. 26, n. 2, p.

305-314, 2001. Tradução nossa. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridge- core/content/view/127843DF67C63ADF9098CD2AFC8F34B4/S089765460001282Xa.pdf/colonialism_culture_ and_the_law_a_foreword.pdf. Acesso em 05 jun. 2019.

250 COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. Law and Disorder in the Postcolony. Social Anthropology, v. 15, n.

2, p. 133-152, 2007. p. 144. Tradução nossa. Disponível em:

https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.0964-0282.2007.00010.x. Acesso em 05 jun. 2019.

251 BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem.

2. ed. São Paulo: 34, 2013. p. 121.

252 Ibid., p. 136. 253 Ibid., p. 122. 254 Ibid., p. 122.

contrapartida, para o juspositivismo, a tese é diametralmente oposta: “se o direito natural pode julgar cada direito existente apenas por meio da crítica aos seus fins, o direito positivo, por sua vez, pode avaliar qualquer direito nascente apenas pela crítica aos seus meios”255. Assim,

enquanto para o direito natural a justiça dos fins legitima os meios, para o direito positivo a justiça dos fins só pode ser garantida se os meios forem legítimos.

Diante da necessidade de estabelecer critérios independentes para fins justos e meios justificados, Benjamin esclarece que sua investigação não pretende abordar os critérios de justiça dos fins. Por isso, sua análise está centrada na “pergunta pela justificação de certos meios que constituem a violência”256. Se os princípios do direito natural não auxiliam na resposta a

essa pergunta, o direito positivo pode ser aceitável como um ponto de partida para a investigação do autor, na medida em que a teoria positivista compreende uma diferenciação entre uma violência historicamente reconhecida, a violência sancionada, de uma violência não sancionada.257

Ou seja, passa a haver uma violência em conformidade com o Direito. Nesse ponto é que o sistema jurídico é quem tem a prerrogativa de estabelecer quais meios violentos são válidos, o que “não se explicaria pela intenção de garantir os fins do direito mas, isso sim, pela intenção de garantir o próprio direito”.258 Daí que, dando um verdadeiro salto no ensaio de

Benjamin, possibilitador de análises muito mais longas e aprofundadas, ele conclua que toda a violência enquanto meio é instituidora ou mantenedora do Direito.

Giorgio Agamben analisa essa “oscilação dialética entre violência que põe o direito e outra que o conserva”259 acrescentando uma terceira forma de violência que não aparece no

ensaio de Benjamin. Ele trata da violência soberana do estado de exceção, que não instaura e nem conserva o Direito, mas “o conserva suspendendo-o e o põe excetuando-se a ele”260. Assim

como a violência divina, outra figura abordada por Benjamin, a violência soberana não se reduz às formas trazidas na dialética da violência entre instituição e conservação do Direito.

Feita essa digressão sobre a relação entre direito e violência, pode-se retomar as lições de Comaroff acerca do uso do Direito e da violência a ele inerente para fins políticos. Nesse ponto, destaca o antropólogo, tradicionalmente o lawfare é utilizado pelo polo mais forte contra o polo mais fraco, embora exista também um tipo de lawfare insurgente, em sentido contrário àquele mais comum.

255 Ibid., p. 124. 256 Ibid., p. 124. 257 Ibid., p. 125. 258 Ibid., p. 127.

259 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, v. I. Tradução: Henrique Burigo. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 72.

O antropólogo aponta três dimensões próprias à guerra que são igualmente aplicáveis ao lawfare na contemporaneidade. O primeiro elemento diz respeito ao aspecto geográfico, isto é, saber onde estão sendo travadas as guerras. Se no sentido da guerra bélica esse aspecto traz um indicativo cartográfico, territorial, no lawfare esse elemento equivale à jurisdição. Nesse ponto, o lugar pode ser determinante para as chances de sucesso de uma guerra sob a forma do lawfare.261

O segundo ponto está relacionado com o armamento utilizado na guerra. No âmbito do Direito, portanto, trata-se das ferramentas jurídicas, da lei, da jurisprudência que será utilizada como forma de derrotar politicamente o inimigo. O Direito, aqui, é instrumentalizado, trazendo em evidência a violência que lhe é inerente, conforme trazido pela leitura benjaminina feita por Comaroff, para se prestar a aniquilação do inimigo.262

Por fim, relacionando-se com o anterior, o terceiro e último elemento diz respeito às externalidades. Segundo Comaroff, trata-se, aqui, do ambiente criado para que o Direito seja utilizado como arma contra o inimigo, a incluir a conjuntura que envolve a captura da mídia, do Estado, da opinião pública pelas grandes corporações.263 No mesmo sentido dessa

abordagem, Ladislau Dowbor aborda a captura do sistema jurídico que cria um sistema paralelo, desresponsabilizando grandes corporações por seus atos ilícitos, crimes financeiros e ambientais, que passam a ser resolvidos com todo tipo de negociação e settlements. Além disso, há a captura da mídia, controlada por poucos grandes grupos privados, que faz com que o princípio da liberdade de imprensa não passe de algo surreal. O autor ainda traz um controle do ensino e de publicações acadêmicas, além do controle direto sobre as pessoas que já não têm mais sua privacidade resguardada.264

A partir dessas externalidades, Comaroff relembra a distinção entre rule of law e rule by law. Enquanto o rule of law (governo da lei) se relaciona com o Estado de Direito, próprio às democracias, sujeitando o exercício do poder político ao Direito, o rule by law (governo pela lei) indica a utilização do Direito sob uma forma instrumentalizada por parte daqueles que detêm o poder. Comaroff esclarece, nesse sentido, que o rule by law é característico de regimes autárquicos, em que se faz uso do Direito para atacar o inimigo e controlar populações.265

Por fim, para se falar em “ataque ao inimigo”, na tentativa de traçar o panorama do Direito empregado como arma de guerra pela via do lawfare, é pertinente recorrer, mais uma

261 JOHN COMAROFF explica Lawfare. 1 vídeo (21min). Publicado pelo canal A Verdade de Lula. Disponível

em: https://www.youtube.com/watch?v=skCRotOT1Lg. Acesso em 14 jun. 2019.

262 Ibid. 263 Ibid.

264 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade

da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017. p. 121.

265 JOHN COMAROFF explica Lawfare. 1 vídeo (21min). Publicado pelo canal A Verdade de Lula. Disponível

vez, a Carl Schmitt. Isso porque o autor não só traz elementos essenciais para a compreensão da mudança no significado de guerra trazida pela dissolução do antigo nomos da Terra, como também se dedica, em O conceito do político, à questão da distinção entre amigo e inimigo como o critério específico da política. Dada a importância da abordagem de Schmitt para a leitura do cenário atual, permite-se, aqui, uma pequena digressão, com o retorno para sua obra. Quanto à questão da inimizade, ou da política – estando ambas intimamente conectadas –, Schmitt afirma que tal como os âmbitos moral, estético e econômico têm diferenciações últimas às quais se pode recorrer a fim de determinar ações e motivos, o âmbito da política também possui uma tal diferenciação específica. Se para a moral tem-se o bom e o mau; para a estética, o belo e o feio; para a economia, o rentável e o não-rentável; para a política, da mesma forma, tem-se o amigo e o inimigo. Esses âmbitos são distintos e não necessariamente imbricados, de modo que pode ser rentável fazer negócios com o inimigo, assim como o amigo pode não ser moralmente bom.266

O inimigo, então, afirma Schmitt, é essencialmente um Outro, um estrangeiro contra o qual há a possibilidade real de um combate de vida e morte, isto é, aquele contra quem se pode declarar uma guerra. Tal enfrentamento não precisa se concretizar, desde que haja sua possibilidade.267 De todo modo, para Schmitt, o importante é que o inimigo é aquele com quem

se pode decretar também a paz. Ou seja, o inimigo não é um criminoso que precisa ser aniquilado.268

Como se buscou demonstrar no primeiro capítulo deste trabalho, a circunscrição da guerra marcou, durante mais de quatro séculos, o nomos da Terra do direito público europeu. Os Estados europeus reconheciam-se enquanto iguais em direito, o que formava uma proteção