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Lawfare: o direito como arma de guerra na razão neoliberal

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DEPARTAMENTO DE DIREITO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

FERNANDA CECCON ORTOLAN

LAWFARE: O DIREITO COMO ARMA DE GUERRA NA RAZÃO NEOLIBERAL

Florianópolis, 2019

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LAWFARE: O DIREITO COMO ARMA DE GUERRA NA RAZÃO NEOLIBERAL

Trabalho Conclusão do Curso de Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do Título de Bacharel em Direito

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Jeanine Nicolazzi Philippi

Coorientador: William Hamilton Leiria

Florianópolis 2019

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ao longo do curso de Direito e também dos outros cursos da vida.

Mas, mais do que isso, é fruto de uma feliz sequência de acasos, das artes do encontro e de muitos privilégios que tive e me trouxeram até onde estou.

Minha família, que todos os dias é meu lar para diálogos, carinho, troca e aprendizado. Entre nós, cultivamos, dia após dia, reflexões sobre o mundo que nos cerca, com as percepções e críticas trazidas inevitavelmente por esse longo e por vezes doloroso processo. Ainda assim, caminhar ao lado de vocês torna todo esse caminho mais bonito. Ao meu pai, Renato; minha mãe, Liana; meus irmãos, Daniel e Júlia; ao nosso recente novo mini-membro de quatro patas, Tonico: meu muitíssimo obrigada por serem quem são e por tudo o que construímos enquanto família.

À Universidade Federal de Santa Catarina, meu agradecimento por todos os aprendizados e vivências desses últimos cinco anos. A oportunidade de passar por uma universidade pública e gratuita é um enorme privilégio, que deveria ser direito de todos. Em tempos de desmonte da educação, que a luta continue e só se fortaleça.

Os aprendizados nesses anos de UFSC não teriam sido os mesmos não fosse pelos meus quase dois anos fazendo parte do PET Direito. Lá, não só aprendi muito sobre Teoria do Direito, mas também sobre a Universidade, sobre amizades, sobre acolhimento em momentos difíceis. As tardes de quarta feira serão sempre lembradas com muito carinho.

Um enorme agradecimento à professora Jeanine, também pela orientação deste trabalho, mas muito mais do que isso. Só tenho a agradecer por seu impecável papel como tutora do PET e pela inspiração que representa para mim, desde o começo do curso, enquanto professora e pesquisadora comprometida e ética. Desde as primeiras aulas de Teoria do Direito, o exercício do pensamento crítico tornou-se, para mim, um caminho sem volta.

Certamente esses anos de UFSC fizeram-se mais leves com os bons encontros trazidos no caminho, merecedores de especiais agradecimentos. Ao William, pela amizade que construímos desde os primeiros momentos do curso e nosso processo seletivo para o PET Direito. Por todos os cafés, conversas, desabafos, especialmente pela enorme ajuda na construção deste trabalho. À Milena e à Bruna, pela amizade sincera, acolhedora e leve que sei que sempre estará por perto. À Vitória, pelo companheirismo de todas as horas e por ser tão autêntica. À Giovanna, com quem tive pouco convívio na UFSC, mas a quem agradeço pela relação de carinho que até hoje temos, construída em algumas poucas aulas de italiano.

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que são quase a minha também. Obrigada, Téo, Eliani, Maria, Ricardo, Marco e Anne.

Não posso deixar de agradecer o apoio dos amigos: Mariah, Sachi, Bernardo, Letícia, Patrícia e João Victor. Que nossos caminhos se comuniquem sempre, resistindo aos diferentes cursos tomados pela vida. Também aos amigos do intercâmbio: Alessandra, Bernardo, Carlos, Caroline, Daniel, Estevan, Gabriel e Letícia.

Agradeço também à Lurdes, pelo suporte e ajuda diária que em muito facilitou todo o tempo dedicado a este trabalho, pelas conversas e por todas as trocas dos últimos anos.

Por fim, agradeço ao Gustavo, com quem há dois anos compartilho os mais bonitos sentimentos e sonhos. Agradeço especialmente pela paciência nesses últimos meses, pelas revisões e por seu gosto pela ABNT, por acreditar em mim nas vezes em que eu mesma não o fiz, por termos um relacionamento que é, antes de tudo, afeto e companheirismo. Agradeço por tudo aquilo que somos e também pelo que queremos ser.

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En el siglo XX la mitad del mundo sacrificó la justicia em nombre de la libertad y la otra sacrificó la libertad em nombre de la justicia. En el siglo XXI sacrificamos las dos em nombre de la ‘Globalización’.

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mas estudando suas relações com a razão de mundo neoliberal. Assim, o problema da pesquisa consiste em saber se o Direito vem sendo utilizado, a nível global, e também mais especificamente no Brasil, sob a forma de lawfare, enquanto uma arma dentro de um cenário de guerra de aniquilação. Para responder a essa questão, o trabalho levantou a hipótese, ao final confirmada, de que o Direito foi incorporado à razão de mundo neoliberal, de modo que a forma de sua aplicação se dá pela via do lawfare, em um cenário de concorrência generalizada no qual o Direito passa a ser não somente mercadoria, mas armamento. Além disso, a segunda hipótese, igualmente confirmada, é a de que a prática do lawfare se configura no Brasil, sobretudo no contexto da luta anticorrupção que se desenvolveu nos últimos anos. O método de abordagem utilizado para a pesquisa foi o indutivo. O objetivo geral do trabalho consistiu, então, em verificar se o Direito está sendo utilizado sob a forma do lawfare para atender às imposições de uma agenda neoliberal. Para isso, procurou-se analisar historicamente a disputa entre projetos políticos no contexto do pós-guerra, com a dissolução da antiga ordem mundial; em seguida, buscou-se estudar os traços principais do neoliberalismo, ordem vitoriosa enquanto nova razão do mundo; para, enfim, adentrar à figura lawfare, examinando seu(s) conceito(s) e as origens do termo. Por fim, buscou-se analisar a influência do lawfare desde o discurso antiterror norte-americano até o discurso anticorrupção brasileiro, sob a ótica das semelhanças e articulações entre Brasil e Estados Unidos que as explicam. Os principais marcos teóricos desta pesquisa foram: Pierre Dardot e Christian Laval, Michel Foucault, Carl Schmitt, Alain Supiot, Naomi Klein e Ladislau Dowbor. Ao final do trabalho, as hipóteses foram confirmadas, demonstrando-se como o lawfare está relacionado à utilização do Direito enquanto arma, atendendo às necessidades de livre concorrência da razão neoliberal, tanto no mundo, como, mais especificamente, no Brasil. A relevância da pesquisa se revela diante do cenário brasileiro de incertezas jurídicas e políticas, em que o Direito não aparece como garantidor, mas enquanto um ator fundamental para a inserção completa do Brasil no domínio neoliberal.

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also by studying its relations with the neoliberal world-reason. Thus, the research problem is whether the Law has been used, on a global level, and more specifically in Brazil, under the form of lawfare, as a weapon in a war of annihilation scenario. In order to answer this question, the work proposed the hypothesis, confirmed at the end, that the Law has been incorporated by the neoliberal world-reason, therefore its application happens through lawfare, in a context of widespread competition where the Law can be used not only as a tradable good, but also as a weapon. Besides that, the second hypothesis, also confirmed by the end of the work, is that the practice of lawfare occurs in Brasil, especially in the context of the anti-corruption fight that has been developed in the last few years. The inductive approach method was used for this research. The main objective of this work consisted of verifying whether the Law is being used under the form of lawfare to satisfy the impositions of a neoliberal agenda. In this regard, the study analysed historically the dispute between political projects in the post-war context, with the dissolution of the old world order; then, the work studied the main features of neoliberalism, winning world order as a new world-reason; finally, the essay reached the figure of lawfare, with the examination of its concept(s) and the origin of the term. Lastly, the study analysed the influence of lawfare, from the American antiterror to the Brazilian anticorruption discourse, under the perspective of the similarities and articulations between these countries. The main theoretical landmarks of this research were: Pierre Dardot and Christian Laval, Michel Foucault, Carl Schmitt, Alain Supiot, Naomi Klein and Ladislau Dowbor. At the end of the work, the hypotheses were confirmed, demonstrating how the lawfare is related to the use of Law as a weapon of war in order to attend the needs of the neoliberal rationality of free competition, in the world and, more specifically, in Brazil. The relevance of this research is revealed in view of the Brazilian context of political and legal uncertainties, where the Law does not present itself as a guarantor of rights, but as a fundamental actor for the complete insertion of Brazil into the neoliberal domain.

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de sa définition, mais aussi par l’étude de ses relations avec la raison du monde néolibérale. Ainsi, le problème de la recherche consiste à savoir si le Droit est utilisé, au niveau global, et plus spécifiquement au Brésil, sous la forme du lawfare, comme une arme dans un contexte de guerre d’anéantissement. Pour répondre à cette question, le travail a envisagé l’hypothèse, confirmée à la fin, où le Droit a été intégré à la raison du monde néolibérale, de sorte que son application survienne par la voie du lawfare, dans um contexte de concurrence généralisée dans lequel le Droit n’est pas seulement une marchandise mais aussi un armement. En outre, la seconde hypothèse, aussi confirmée à la fin du travail, c’est que la pratique du lawfare a lieu au Brésil, surtout dans la lutte anticorruption qui s’est dévéloppée dans les dernières années. La recherche a utilisé la méthode inductive. L’objectif général du travail a consisté à vérifier si le Droit est utilisé sous la forme du lawfare pour répondre à des exigences de l’agenda néolibéral. Pour cela, il a été éxaminé historiquement la dispute entre deux projets politiques au contexte de l’après-guerre, avec la dissolution de l’ancien ordre mondial; ensuite, le travail a étudié les principales caractéristiques du néolibéralisme, qui a été l’ordre victorieux comme nouvelle raison du monde; enfin, l’étude est arrivé à la figure du lawfare, en examinant le(s) concept(s) et l’origine du terme. Finalement, le travail a analysé l’influence du lawfare depuis le discours antiterrorism nord-américain jusqu’au discours anticorruption brésilien, dans la perspective des similitudes et articulations entre le Brésil et les États-Unis. Le cadre théorique de cette recherche a été composé par: Pierre Dardot et Christian Laval, Michel Foucault, Carl Schmitt, Alain Supiot, Naomi Klein et Ladislau Dowbor. À la fin du travail, les hypothèses ont été confirmées, en montrant que le lawfare a rapport avec l’utilisation du Droit comme une arme, en servant aux besoins de libre concurrence de la raison néolibérale, dans le monde et aussi au Brésil. La pertinence de cette recherche se révèle face au scénario brésilien d’incertitudes juridiques et politiques, dans lequel le Droit n’apparaît pas comme um garant, mais comme um acteur fondamental pour l’insertion complète du Brésil au domaine néolibéral.

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1 O GLOBO EM DISPUTA: DOIS PROJETOS PARA O ESTADO DE DIREITO NO

PÓS-GUERRA ... 15

1.1 PÓS-GUERRA: UM DECLÍNIO DO LAISSEZ-FAIRE? ... 15

1.2 O ESPÍRITO DE FILADÉLFIA NA DISPUTA POR UMA NOVA ORDEM ... 25

1.3 O ANTÍDOTO PARA A JUSTIÇA SOCIAL: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE MONT-PÈLERIN ... 37

2 NEOLIBERALISMO: TRAÇOS DA NOVA ORDEM ... 45

2.1 O NEOLIBERALISMO COMO RACIONALIDADE ... 45

2.2 DEMOCRACIA: UM DESAFETO NEOLIBERAL ... 53

2.3 A GLOBALIZAÇÃO E A NORMA FUNDAMENTAL DA CONCORRÊNCIA: DO DARWINISMO SOCIAL AO DARWINISMO NORMATIVO ... 63

3 LAWFARE: QUANDO O NEOLIBERALISMO ENCONTRA O DIREITO ... 73

3.1 NOTAS SOBRE O LAWFARE ... 73

3.2 A DOUTRINA DO CHOQUE: A EMPREITADA NEOLIBERAL DO ANTITERROR ... 82

3.3 ANTICORRUPÇÃO: O LAWFARE CHEGA À PERIFERIA ... 91

3.3.1 Por esses vazamentos eles não esperavam ... 99

CONCLUSÃO ... 105

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INTRODUÇÃO

Estudar o Direito em meio à série de acontecimentos recentes na história do Brasil pode ser causa de uma grande incompreensão e sentimento de impotência, diante da percepção de que nós, estudantes e operadores do Direito, mesmo dotados de um certo conhecimento técnico, somos, ainda assim, incapazes de entender o que está acontecendo ou de antever como certas questões serão respondidas juridicamente. Isto é, há algum tempo o Direito vem sendo compreendido como um jogo de tabuleiro com regras obscuras e variáveis desconhecidas, incapaz de oferecer subsídios para combater os golpes antidemocráticos e a ascensão de um governo símbolo da barbárie.

Por consequência, essa incompreensão vem acompanhada também de uma profunda frustração, quando se percebe que o Direito foi antes aquele que permitiu essa sequência de golpes em nosso curto e frágil histórico democrático, do que aquele que nos protegeu dele, de alguma maneira. Assim, estudar o Direito criticamente implica reconhecer seu protagonismo inserido em relações e hierarquias que não mais se explicam pela pirâmide kelseniana, mas sim por interesses específicos sob o véu da pura tecnicidade exercida por seus operadores.

Diante da frustração, que acomete e imobiliza grande parte do setor comprometido com o Estado Democrático de Direito, o presente trabalho foi pensado, desde o início, como ferramenta para se compreender o que está acontecendo. Assim, motivado em superar essa frustração, seu propósito é o de encontrar formas de ação frente a essa batalha de disputas em que o Direito está imbricado hoje. Importante destacar que, para isso, o trabalho se guia por um livre agir, que no dizer de Alain Supiot é diferente de obedecer ou reagir a determinado acontecimento. Por essa razão, não se trata de encontrar uma reação frente ao que está posto, mas sim uma ação, que só é livre na medida em que presume uma capacidade de ação, tal como elucida Alain Supiot em sua obra. Pode-se dizer, então, que a grande busca aqui é por essa capacidade de ação.

A pesquisa que ensejou o trabalho “Lawfare: o Direito como arma de guerra na razão neoliberal” se encarrega de compreender como o Direito se coloca hoje no novo conceito de guerra trazido pela nova ordem do mundo, o neoliberalismo. Assim, trata-se de saber se o contexto do neoliberalismo, em que as exigências de concorrência generalizada se estendem a todos os campos da vida, também incorporou o Direito, que passou a ser instrumentalizado enquanto uma arma no cenário de guerra global. Além disso, a pesquisa também busca verificar se – e como – esse fenômeno do lawfare se verifica no Brasil.

A hipótese levantada é a de que, no cenário neoliberal, o Direito é inserido no imperativo de concorrência generalizada, de modo que se coloca na disputa global do livre

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comércio. Sendo assim, deve adequar-se às necessidades dessa disputa, funcionando como uma arma nesse cenário de guerra, que admite não somente o armamento tradicional, mas também modernos meios de aniquilação política. Além disso, a hipótese trabalhada é a de que o lawfare chegou ao Brasil, sobretudo pelas parcerias informais entre Brasil e Estados Unidos no contexto da luta anticorrupção.

Assim se deu o pontapé inicial da pesquisa, que seguiu o método indutivo, sobretudo pela análise bibliográfica de fontes primárias – tanto quanto fosse possível – para a verificação das hipóteses em questão.

No primeiro capítulo do trabalho, buscou-se fazer um apanhado histórico do contexto que marcou uma ruptura em relação à ordem anterior ao neoliberalismo. Para isso, o trabalho retomou o período da primeira guerra mundial, analisando, sobretudo pela obra “O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europæum”, como se deu a dissolução da antiga ordem mundial, centrada do direito das gentes europeu. Inicia-se o capítulo abordando o contexto de descrença nos velhos dogmas do laissez-faire, que passavam a ser questionados entre o final do século XIX e início do século XX. Com essas oscilações, a ordem mundial, centrada na Europa por mais de quatro séculos, começava a ser dissolvida sem que houvesse uma nova ordem para substituí-la imediatamente.

Assim, no cenário de disputa por uma nova ordem, o trabalho analisou dois dos importantes atores que tentavam salvar o liberalismo, sob formas muito distintas. O primeiro deles é representado pelo Espírito de Filadélfia, bem elucidado por Alain Supiot em livro de idêntico título, e que diz respeito a uma série de textos que sucederam à segunda guerra-mundial, reunindo ideias de justiça social e dignidade humana. Com a proclamação da Declaração de Filadélfia, havia uma clara preocupação em não instrumentalizar o Direito, e em colocar a Economia a serviço dos homens, e não o contrário. Em contraposição a essa proposta, ganha corpo um grupo difuso em que se constitui o segundo ator nessa disputa: os intelectuais do neoliberalismo. Embora eles discordassem entre si a respeito de uma série de questões, havia entre eles uma grande convergência. Foi essa união de esforços que culminou na formação da Sociedade Mont Pélèrin, dedicada a destruir sistematicamente as bases de justiça social que se tentava erguer com o Espírito de Filadélfia.

Em seguida, o trabalho abordou os aspectos principais daquela que restou vitoriosa como nova ordem do mundo. Assim, o segundo capítulo dedicou-se a estudar o neoliberalismo, compreendido não enquanto uma ideologia, mas enquanto uma racionalidade que se impôs em todos os aspectos da existência humana. Para esse momento do trabalho, foram fundamentais as contribuições de Pierre Dardot e Christian Laval em “A Nova Razão do Mundo”, e de Michel

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Foucault em “Nascimento da Biopolítica”, guiando a análise do neoliberalismo desde sua fundação intelectual até suas práticas em toda e qualquer esfera da vida.

O capítulo seguiu abordando relações pouco amigáveis entre neoliberalismo e democracia, analisando de que forma as práticas neoliberais, a despeito da desigualdade crescente e piora nas condições de vida para a maioria esmagadora da população, conseguiram manter-se imunes às forças democráticas. Para isso, analisou-se a relação entre neoliberalismo e democracia tanto sob o ponto de vista de produção intelectual, quanto por meio de práticas e estruturas que esvaziam o debate democrático para esse tipo de questão. Nesse ponto, viu-se como a defesa cientificista da Economia serviu à legitimação do neoliberalismo.

Por fim, o segundo capítulo debruçou-se sobre a predominância de certos atores no cenário da globalização, que estende a norma da concorrência a esferas inimagináveis. Dessa forma, sobretudo com o auxílio de atores supranacionais e não democráticos, mostrou-se como o Direito sujeitou-se também às normas da livre concorrência, ensejando um fenômeno que Alain Supiot denomina como darwinismo normativo. Nesse cenário, em que o Direito perde valor como um fim em si, garantidor da dignidade humana, e passa a ser mais um ator do livre mercado, abre-se o caminho para a abordagem do lawfare, realizada no terceiro e último capítulo do trabalho.

Buscando as origens do conceito de lawfare, o estudo realizado encontrou a definição do major americano Charles Dunlap Jr., além da visão atribuída ao antropólogo norte-americano John Comaroff, que o analisa sob uma ótica colonizadora, partindo das grandes potências para exercer domínio sobre territórios periféricos. Comaroff demonstra como essa prática se relaciona com a arma de aniquilação de um adversário político não reconhecido como legítimo.

A partir disso, o trabalho avaliou a distinção entre a antiga figura do inimigo da figura do criminoso, este trazido sob o novo conceito de guerra que adveio da dissolução da antiga ordem mundial. Com o auxílio das obras “Estado de Exceção”, de Giorgio Agamben, e “A Doutrina do Choque”, de Naomi Klein, analisou-se a suspensão do Direito diante da figura de um inimigo criminalizado, sob o exemplo principal da guerra antiterror perpetrada pelos Estados Unidos, com força após os ataques em 11 de setembro de 2001. A guerra ao terror, nesse sentido, representa tanto a suspensão das garantias individuais, como uma empreitada neoliberal sob a forma da doutrina do choque, que permitiu uma série de reformas de livre mercado, aproveitando a oportunidade de uma população atônita e desnorteada logo após o ataque.

O desenho dos principais traços da guerra ao terror e sua relação com o neoliberalismo e o estado de exceção permitiram a chegada do tópico que encerra o terceiro capítulo, abordando

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a presença do lawfare no Brasil, sob a forma da guerra contra a corrupção, encampada por autoridades brasileiras em parceria informal com as norte-americanas, tomando emprestados regramentos externos. Para isso, o estudo contou com a análise de materiais divulgados pelo WikiLeaks com uma série de telegramas entre autoridades brasileiras e norte-americanas, descrevendo esforços no combate à corrupção através da realização do Projeto Pontes, bem como contou com as recentes matérias divulgadas pelo Intercept Brasil revelando conluio entre procuradores e magistrados no âmbito da operação Lava-Jato.

Espera-se, com o esforço deste trabalho, que as considerações levantadas permitam uma melhor compreensão da utilização do Direito hoje, rompendo com a perspectiva tradicional do Direito para analisar questões que envolvem disputa por poder em um cenário global. Ressalte-se, ainda, que o estudo sobre lawfare, por ser ainda recente e pouquíssimo explorado no Brasil e no mundo, ainda permitirá, certamente, debates mais profundos e extensos. De todo modo, o trabalho não tem a presunção de esgotar a abordagem do tema, buscando servir sobretudo como um dos elementos para despertar, nos operadores do Direito – aqueles que o compreendem e respeitam –, e em todos aqueles que possam se insurgir, alguma capacidade de ação.

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1 O GLOBO EM DISPUTA: DOIS PROJETOS PARA O ESTADO DE DIREITO NO PÓS-GUERRA

O final do século XIX e início do século XX trouxeram profundas modificações na ordem do mundo. Com a dissolução do antigo nomos da Terra, centrado no direito público europeu, havia uma ruptura que não deu lugar a uma nova ordem de forma imediata, mas deixou um espaço de disputa sobre que projeto político faria as vezes dessa nova ordem do mundo.

Neste capítulo, analisa-se o cenário de declínio desse antigo nomos da Terra, que trouxe a revisão dos velhos dogmas do liberalismo clássico, que já não mais serviam à leitura da sociedade que enfrentara uma grande crise e também uma grande guerra. Assim, surgiam novos atores na disputa, sob a forma de dois projetos políticos que, embora quisessem salvar o liberalismo, pretendiam fazê-lo de modo muito distinto. De um lado, o Espírito de Filadélfia; de outro, os neoliberais.

1.1 PÓS-GUERRA: UM DECLÍNIO DO LAISSEZ-FAIRE?

Pautar a discussão sobre neoliberalismo à luz de uma mera oposição entre estado mínimo versus estado intervencionista mostra que, a despeito da popularidade desse tipo de debate, pouco ele se aprofunda no que é essencial ao neoliberalismo. Em outras palavras, a menção corriqueira que se faz às “políticas neoliberais”, ao “pensamento neoliberal” ou à “ideologia neoliberal” por muitas vezes ignora que o neoliberalismo não se traduz em “Estado mínimo”, e não se confunde com o liberalismo.

O que se deve ter claro, desde já, é que o neoliberalismo “não é herdeiro natural do primeiro liberalismo, assim como não é seu extravio nem sua traição. Não retoma a questão dos limites do governo do ponto em que ficou”1. Como se pretende demonstrar, o neoliberalismo

tem características próprias que pouco se comunicam com aquelas do liberalismo clássico. Para isso, dando início ao presente trabalho, busca-se estabelecer, desde logo, a distinção entre a figura clássica do liberalismo e do laissez faire daquilo que hoje chama-se neoliberalismo. Para a melhor compreensão do fenômeno ascendente do neoliberalismo, é necessário retroceder algumas décadas e analisar o contexto em que se encontrava o liberalismo clássico – buscando compreender como esse contexto possibilitou uma mudança de paradigma nada singela no modo de governar, e, para o que interessa a essa pesquisa, no modo de se pensar o Direito.

1 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

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O liberalismo clássico tomou corpo no século XVIII e tinha como ponto central a imposição de limites ao Estado. Na visão liberal, esses limites deveriam ser sempre estabelecidos por leis econômicas naturais, que deveriam guiar a ação pública. Foi no fenômeno do Liberalismo, acompanhado da economia política, que Michel Foucault aprofundou-se, em suas aulas ministradas no Collège de France no ano de 1979, analisando as transformações que marcaram um novo modo de governar em todo o ocidente.

Para explicar o fenômeno do liberalismo, Foucault aponta uma mudança, que se deu em meados do século XVIII, caracterizando a razão governamental moderna. Para ele, essa transformação consiste em uma limitação intrínseca da arte de governar, ou seja, uma limitação interna à própria racionalidade governamental. Assim, a razão governamental não mais deve respeitar somente limites externos – aqui se compreendendo os direitos naturais que limitam o poder soberano -, mas deverá respeitá-los a partir de cálculos que ela mesma pode fazer, em função dos objetivos que pretende alcançar.2 Trata-se de uma limitação interna à própria arte

de governar3, ou também de uma crítica interna da razão governamental, pautada em “como

não governar demais” 4. Ao analisar o que permitiu a emergência dessa crítica interna, Foucault

afirma que “esse instrumento intelectual, o tipo de cálculo, a forma de racionalidade que permite que a razão governamental se autolimite” 5 não é o direito, mas a Economia Política.

O liberalismo marcou, segundo Foucault, uma nova arte de governar, que se caracterizou pelo aparecimento de mecanismos internos que não mais têm a função de assegurar o crescimento do Estado em termos de força, riqueza ou poder – como ocorre na Razão de Estado -, mas justamente tem por finalidade limitar esse exercício do poder de governar.6

Entretanto, frisa Foucault que essa nova arte do governo mínimo é, ela mesma, uma Razão de Estado: “é a razão do governo mínimo como princípio de organização da própria Razão de Estado”.7

É de suma importância para o presente trabalho a questão suscitada por Foucault em uma de suas aulas do Collège de France, no tocante ao papel do direito nessa transformação: se a autolimitação do governo, a partir de uma razão de governo mínimo, é (não somente, mas) também uma limitação jurídica, de que forma se pode formular uma limitação em termos de

2 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010. p.

36.

3 Importa notar que Foucault não pretende estudar a prática governamental real, mas sim a arte de governar, que é

a maneira de governar o melhor possível e também a melhor maneira possível de governar. Essas considerações estão ilustradas na aula de 10 de Janeiro de 1979 do curso de Foucault trazido no Nascimento da Biopolítica. (FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010).

4 Ibid., p. 37. 5 Ibid., p. 38. 6 Ibid., p. 55. 7 Ibid., p. 56.

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direito? Isto é, “se há uma economia política, o que acontece com o direito público?”8 Pautado

nessa limitação pelo Direito, há um deslocamento no problema central do direito público, que deixa de ser a questão da soberania e passa a se concentrar em como estabelecer os limites ao exercício do poder público. No resumo de seu curso em Nascimento da Biopolítica, Foucault propõe que se analise o liberalismo

não como uma teoria nem como uma ideologia (...), mas sim como uma prática, ou seja, como uma maneira de fazer orientada para objectivos e regulada numa reflexão contínua. O liberalismo deve ser então analisado como princípio e método de racionalização do exercício do governo – racionalização que obedece, e esta é a sua especificidade, à regra interna da economia máxima. (...) a racionalização liberal parte do postulado de que o governo (...) não pode ser, em si, o seu próprio fim.

9

Essa leitura, a partir do Nascimento da Biopolítica, foi partilhada por Christian Laval e Pierre Dardot ao tratarem da crise liberal em A Nova Razão do Mundo. Para os autores franceses, a crise que o liberalismo enfrentou foi uma crise de governamentalidade. Isto é, o liberalismo, enquanto arte de governar, começou a enfrentar dificuldades advindas da necessidade de intervenção política em matéria econômica e social, bem como da forma pela qual se poderia justificar essa intervenção.10

Dardot e Laval mostram que a crise do liberalismo, que culminaria, mais tarde, no nascimento do neoliberalismo, colocou dogmas liberais como o de um direito natural, da liberdade do comércio, da propriedade privada e da confiança no equilíbrio do mercado sob críticas das mais variadas: como se pode reduzir todo o funcionamento de uma sociedade à soma das trocas entre indivíduos?11 O radicalismo na Inglaterra, a sociologia francesa e o

socialismo encarregaram-se de denunciar muitos desses dogmas.

A dificuldade em alimentar a crença nos livres contratos entre indivíduos formalmente iguais, sobretudo nas relações de emprego, se explicava pela realidade das grandes indústrias que se formavam com a revolução industrial. Jornadas de trabalho extenuantes, trabalho infantil e o empobrecimento material, físico e mental dos operários que são ilustrados na figura de Charles Chaplin, em Tempos Modernos, mostram que o liberalismo e seus dogmas estariam, a qualquer hora, sujeitos a revisão.

No final do século XIX, a reforma de Otto von Bismark, que instituiu na Alemanha o primeiro sistema público de aposentadoria, inaugurou, no final dos anos 1870, uma série de regulamentações destinadas a proteger os assalariados. Nesse contexto é que apareceram, então,

8 Ibid., p. 66.

9 Ibid., p. 394. (grifo nosso).

10 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 38.

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as primeiras legislações sobre trabalho infantil, limitação da jornada de trabalho, direito de greve e associação, na intenção de combater o novo tipo de pobreza, fruto do novo ciclo de negócios que começava a desenhar o capitalismo de grandes corporações.12

Além dessas críticas externas ao pensamento liberal, surgiram divergências dentro do próprio liberalismo. É que, embora a questão de limitação da ação governamental desempenhasse um papel central no liberalismo, a suposta unidade desse pensamento também começou a enfrentar problemas a partir do século XIX. Compreendendo essa cisão como uma crise interna do liberalismo, Dardot e Laval expõem algumas das divergências que passavam a surgir entre dois tipos de liberalismo: de um lado, os reformistas sociais que tinham um ideal de bem comum; de outro lado, aqueles que viam na liberdade individual um fim absoluto.13

Como demonstram os autores, não apenas por parte dos socialistas ou dos conservadores declarados, mas também dentro do próprio pensamento liberal passou a haver um questionamento à crença nas “virtudes da harmonia natural dos interesses e no livre desabrochar das ações e faculdades individuais”14.

Para ilustrar essas divergências, Dardot e Laval trazem o pensamento de Tocqueville e John Stuart Mill, que entre 1835 e 1840 se debruçavam sobre a tendência das sociedades modernas de serem marcadas por uma maior intervenção governamental na vida social. Dardot e Laval utilizam o exemplo de Mill como um ponto significativo que mostra a ruptura do radicalismo inglês com o dogma da não intervenção estatal.15

Em On socialism, texto de Mill do ano de 1869, publicado postumamente em 1879, o autor critica o controle da economia nos moldes socialistas e demonstra sua preocupação, que perpassa outras de suas obras, com uma tirania democrática. Para ele, essa tirania resulta no esmagamento dos indivíduos pelo peso da maioria e da opinião pública, causando uma impotência do indivíduo que precisa ser remediada.16

No entanto, apesar das críticas que tece ao socialismo, Mill reconhece a limitação do laissez faire e reconhece uma mutabilidade no conceito de propriedade: “A ideia de propriedade não é uma única coisa, idêntica ao longo da história e incapaz de sofrer alterações, mas é variável como todas as criações da mente humana”17.Nesse sentido, “a sociedade tem a

possibilidade de alterar qualquer direito de propriedade quando julgar, após a devida consideração, que atrapalhem o bem público” 18.

12 Ibid., p. 41. 13 Ibid., p. 37. 14 Ibid., p. 42. 15 Ibid., p. 43. 16 Ibid., p. 44.

17 MILL, John Stuart. On socialism. Chicago: Belfords, Clarke & CO, 1879. p. 155. E-book. Disponível em:

http://www.gutenberg.org/ebooks/38138. Acesso em 08 mai. 2019. (Tradução nossa).

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Mas a esse movimento de relativização da não intervenção estatal por parte do radicalismo inglês e do utilitarismo se contrapôs o pensamento de Herbert Spencer, no final do século XIX. O spencerismo, opondo-se frontalmente ao intervencionismo econômico ou social, introduziu alguns dos temas que seriam depois resgatados pelo neoliberalismo, anos mais tarde. Seu pensamento se insere na segunda corrente dos liberais, composta pelos individualistas, que acusavam o primeiro grupo, os reformistas, de terem traído o movimento liberal, cedendo ao socialismo.19

Por volta de 1880, quando os velhos liberais foram percebendo a perda da unidade do liberalismo, Spencer, ao ver a inclinação de utilitaristas à intervenção estatal, viu a necessidade de refundar o utilitarismo sobre novas bases. Assim, com Spencer, o utilitarismo jurídico ou econômico deu lugar a um utilitarismo evolucionista.

Esse é um ponto central no pensamento de Spencer: há uma lei da evolução que impede qualquer intervenção do Estado. A partir disso, ele rechaça violentamente a postura dos liberais reformistas, entendendo-os como falsos liberais ou socialistas. Para Spencer, as proteções aos mais fracos são restrições que atrapalham a vida de todos os cidadãos, e a intervenção estatal, reforçada, ainda, pela educação e pelo sufrágio universal, alimenta desejos inacessíveis à grande massa.20 Para Spencer, a função do liberalismo no futuro será a de colocar

limites ao poder do parlamento, que está submetido à “pressão impaciente das massas incultas”

21. O evolucionismo biológico de Spencer, que se utilizou da obra de Darwin, publicada em

1859, como forma de justificar a sobrevivência dos mais aptos para negar qualquer tipo de intervenção que protegesse os mais fracos, deixou marcas na doutrina liberal – Dardot e Laval até afirmam, nesse sentido, que o spencerismo possa ter representado uma verdadeira virada dentro do pensamento liberal.

Sem a intenção de abordar pormenorizadamente essas vertentes do liberalismo que entravam em conflito, bem como não querendo aqui esgotar as análises do darwinismo social, que serão abordadas em outro momento oportuno deste trabalho, cabe enfatizar a crise interna do liberalismo, que se buscou demonstrar até aqui.

Seja sob o ponto de vista de uma crítica interna ou externa, certo é que a doutrina do livre mercado já não mais sabia responder ao fenômeno da “empresa” que se acentuava desde o século XIX. Nessa época, Estados Unidos e Alemanha, enquanto duas potências emergentes, tinham capitalismos que elucidavam a distância do protótipo liberal, que vê os indivíduos como

19 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 46.

20 Ibid., p. 48. 21 Ibid., p. 50.

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seres econômicos independentes e isolados. Na prática, essa visão não correspondia mais ao sistema financeiro e industrial que se desenvolvia por meio de grandes grupos de interesse:

O surgimento dos grandes grupos cartelizados marginalizava o capitalismo de pequenas unidades; o desenvolvimento das técnicas de venda debilitava a fé na soberania do consumidor; e os acordos e as práticas dominadoras e manipuladoras dos oligopólios e dos monopólios sobre os preços destruíam as representações de uma concorrência leal, que beneficiava a todos. (…) Os políticos faziam sobretudo o papel de marionetes nas mãos dos que detinham o poder do dinheiro. A ‘mão visível’ dos empresários, dos financistas e dos políticos ligados a eles enfraqueceu formidavelmente a crença na ‘mão invisível’ do mercado. 22

Além disso, em matéria de política internacional, cresciam as proteções alfandegárias, nacionalismos e imperialismos, o que parecia, como um todo, contrariar a ordem liberal. Percebeu-se, então, que os liberais “não dispunham de uma teoria das práticas governamentais que haviam se desenvolvido desde meados do século” 23.

Esse processo de revisão nos dogmas do pensamento liberal, que começava na segunda metade do século XIX, foi acelerado pela Primeira Guerra Mundial, que marcou uma ruptura, aqui digna de uma extensa nota. Carl Schmitt foi o responsável por se debruçar sobre essa mudança, que ele atribuiu como sendo o momento de dissolução do antigo nomos da Terra centrado no direito público europeu.

Em “O nomos da Terra”, obra publicada em 1950, Schmitt se debruça sobre a ordem do mundo. Ele vê a terra como a mãe do Direito: a tomada de terra, para Schmitt, é o ato originário que funda o Direito.24 Esse ato originário, que pode ser tanto a tomada de terra,

quanto fundações de cidades ou estabelecimento de colônias25, funda o Direito tanto interna

quanto externamente. Voltado para o interior, ele cria as relações de posse e propriedade dentro do grupo que tomou a terra. Externamente, esse grupo que tomou a terra se contrapõe a outros grupos que também tenham tomado terras. Já em sentido contrário, “o mar não conhece essa unidade clara entre espaço e direito, entre ordenação e localização” 26. Ou seja, “o mar é livre” 27.

Enquanto que as ordenações pré-globais eram essencialmente terrestres, a época dos Descobrimentos marcou uma consciência global nos povos europeus. No direito das gentes pré-global, embora a Terra já fizesse parte de alguma partição, não havia, aí, um nomos da Terra, pois não se tinha uma visão abrangente da ordem espacial como um todo. Embora o direito das

22 Ibid., p. 40. 23 Ibid., p. 42.

24 SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europæum. Tradução: Alexandre

Guilherme de Sá et al. 1 ed. Rio de Janeiro: Contraponto Ed PUC-Rio, 2014. p. 4.

25 Ibid., p. 40. 26 Ibid., p. 38. 27 Ibid., p. 38.

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gentes dessa época já tivesse disposições jurídicas sobre paz e guerra, ele permanecia rudimentar, pois não era capaz de alcançar uma circunscrição da guerra por meio do reconhecimento de outros impérios como um inimigo, o que conduzia a uma guerra de aniquilação. Faltava, então, “a concepção de uma ordem comum, que abrangesse toda a Terra”

28.

Foi somente quando a Terra passou a ser vista globalmente, com os descobrimentos a partir do século XV, que nasceu o primeiro nomos da Terra. Antes de abordar essa primeira ordem global, é importante traçar, aqui, a definição que Schmitt dá a nomos:

O nomos é, portanto, a forma imediata na qual a ordem política e social de um povo se torna espacialmente visível, a primeira medição e divisão das pastagens, ou seja, a tomada de terra e a ordem concreta que nela reside e dela decorre. (...) Nomos é a medida que parte o chão e o solo da Terra e os localiza em uma ordenação determinada: é também a forma, assim adquirida, da ordem política, social e religiosa. Medida, ordenação e forma configuram aqui uma ordem espacial concreta.29

Segundo Schmitt, esse nomos da Terra que surgiu marcava o moderno direito das gentes europeu, que “consistia em uma determinada relação entre a ordem espacial da terra firme e a ordem espacial do mar livre, e foi, durante quatrocentos anos, portador de um direito das gentes eurocêntrico, o jus publicum europæum” 30. Essa ordem que surgia tinha por núcleo

o Estado territorial, e por princípio a igualdade de Direitos entre esses Estados europeus. Com o surgimento de uma visão global da Terra, cientificamente mensurável, surgiu um problema novo, que consistia em conformar uma ordem espacial global ao direito das gentes.31

Diante desse impasse, surgiram as primeiras linhas globais que passaram a dividir a Terra. Essas linhas, que foram a primeira tentativa de delimitar o espaço global da Terra, não eram somente divisoras no aspecto geométrico da superfície, mas também demarcavam os conteúdos da ordem espacial da Terra. Essa ordem espacial, desde o século XVI até o século XX, estava centrada na Europa: “na época, europeu designava o status normal que reivindicava fornecer a norma para a parte não europeia da Terra. O termo civilização equiparava-se a civilização europeia”32.

Cabe destacar, aqui, as amity lines (linhas de amizade), que marcavam a divisão entre a Europa e o Novo Mundo. Para além dessas linhas, terminava o direito público europeu, e, com ele, a circunscrição das guerras trazida pelo Direito das gentes europeu. Se no direito público europeu os Estados se reconheciam como igualmente soberanos, inseridos em uma

28 Ibid., p. 53. 29 Ibid., p. 69. 30 Ibid., p. 46. 31 Ibid., p. 87. 32 Ibid., p. 87.

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ordem comum, para além das linhas de amizade o direito que vale é somente aquele dos mais fortes.33

O direito das gentes europeu, que caracterizou o nomos da Terra por quatro séculos, trouxe uma importante mudança em relação ao conceito de guerra. Como os Estados europeus se reconhecem como iguais, porquanto são soberanos, a guerra deixa de ser uma guerra de aniquilação contra um criminoso, e passa a ser uma guerra contra o justo inimigo. Isto é, há uma racionalização e uma humanização da guerra no âmbito do solo europeu, porque “a ambas as partes beligerantes cabe o mesmo caráter estatal com igual direito” 34. É justamente porque

as partes se reconhecem como Estados soberanos que é possível diferenciar o inimigo do criminoso. Isso demonstra como “o direito das gentes europeu conseguiu a circunscrição da guerra com a ajuda do conceito de Estado” 35.

Schmitt dedica boa parte de sua obra à circunscrição da guerra, que ele aponta como sendo a essência do direito das gentes europeu. Para Schmitt, essa forma de circunscrever a guerra é a mais elevada forma de ordem, uma proteção contra a aniquilação mútua. Assim, o êxito do jus publicum europæum foi em circunscrever a guerra, e não em eliminá-la.36

O momento que interessa ao presente trabalho, na análise do contexto de declínio do liberalismo clássico, é o período final desse nomos da terra do direito público europeu, no começo do século XX. Schmitt passa a analisar, em sua obra, a dissolução desse nomos, sob um contexto em que o Direito público europeu deu lugar a um Direito das superpotências mundiais. Com a dissolução do antigo nomos da Terra, o liberalismo centrado no Direito Europeu via-se diante de sua grande crise.

Como aponta Schmitt, já no final do século XIX, a ciência do direito europeu inclinava-se a considerar as colônias como território estatal. Essa alteração modificava a estrutura de todo o direito público europeu, que era centrada justamente na distinção entre o solo europeu e o solo não europeu.37 Nesse sentido, Schmitt afirma que as próprias potências

europeias “não somente haviam esquecido os pressupostos espaciais de seu próprio direito das gentes, mas também haviam perdido todo o instinto político, toda a energia comum para assegurar uma estrutura espacial própria e circunscrever a guerra”38.

33 Ibid., p. 95. 34 Ibid., p. 151. 35 Ibid., p. 151. 36 Ibid., p. 199. 37 Ibid., p. 237. 38 Ibid., p. 241.

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Segundo Schmitt, “a primeira grande sombra”39 que havia caído sobre o jus publicum

europæum vinha do Ocidente. Tratava-se do poder ascendente dos Estados Unidos, em um misto de isolamento em relação à linha de separação com a Europa, de um lado, e uma “intervenção universalista e humanitária em escala mundial”40, de outro.

Assim como a antiga distinção entre povos civilizados, meio civilizados e selvagens, as relações espaciais em escala continental e a distinção entre o status do solo da metrópole e da colônia também se tornaram juridicamente irrelevantes.41 Surgia uma concepção de

universalismo global, à qual correspondia uma realidade no âmbito da economia, distinta do Estado. Ou seja, “um comércio mundial e um mercado mundial livres, com livre circulação de ouro, capital e trabalho”42. Nesse sentido, como foi sintetizado na própria obra de Schmitt,

“acima, abaixo e ao lado das fronteiras políticas dos Estados, traçadas por um direito das gentes de aparência puramente interestatal e político, estendia-se o raio de ação de uma economia livre, ou seja, não estatal, uma economia mundial” 43.

Essa passagem elucida a transição do liberalismo europeu, cujas bases erigiam-se sobre relações entre Estados territorialmente definidos, que se reconheciam enquanto soberanos e iguais, para a ascensão de uma economia mundial, destituída de espaço; uma economia não territorial e não estatal. Essa mudança é perceptível quando Schmitt aborda a espécie de participação que os Estados Unidos estabeleceram com a Liga de Genebra, que incluía um misto de isolamento e intervenção.

Para Schmitt, a postura norte-americana era indicativa da razão pela qual a Liga de Genebra não poderia representar uma nova ordem mundial, pela ausência das duas potências territoriais modernas, representadas pela União Soviética e Estados Unidos.44 Nesse ponto,

Schmitt destaca que os Estados Unidos permaneciam formalmente ausentes da Liga de Genebra, embora fizessem-se presentes de modo indireto, em uma “mistura de ausência oficial e presença efetiva que caracterizava a relação entre os Estados Unidos, de um lado, e a Liga de Genebra e a Europa, de outro”45. Essa mistura é de grande importância na análise aqui

pretendida, e “a chave para compreendê-la é a separação entre política e economia, defendida pelos Estados Unidos e reconhecida pela Europa”46. Essa separação parece corresponder à regra

39 Ibid., p. 244. 40 Ibid., p. 244. 41 Ibid., p. 252. 42 Ibid., p. 252. 43 Ibid., p. 253. 44 Ibid., p. 263. 45 Ibid., p. 270. 46 Ibid., p. 274.

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segundo a qual deve-se ter “o máximo possível de comércio e o mínimo possível de política”47.

Assim se marcava um método de exercício de influência dos Estados Unidos, “cuja característica mais significativa era invocar o comércio livre (ou seja, livre de Estado) e o mercado igualmente livre como padrão constitucional do direito das gentes”48.

Embora a antiga ordem mundial do Direito europeu já tivesse uma constituição econômica reconhecida, criando um espaço econômico comum,49 tratava-se de uma

combinação entre economia livre e soberania estatal, na medida em que “a comunidade de um liberum comercium internacional se escondia atrás da fachada dos Estados soberanos territorialmente delimitados”50. Já no momento de passagem para a dissolução do nomos da

Terra, passou a haver um “movimento geral em direção à liberdade”51, que representou uma

“mobilidade total e intensiva, uma deslocalização geral”52, fazendo com que o dualismo entre

o direito interestatal e político e o direito econômico internacional passasse despercebido. Ao se ausentarem de forma aparente da liga de Genebra, os Estados Unidos asseguravam uma presença que não era política, mas econômica, embora sua participação estivesse “pronta para o exercício do controle político, se necessário”53. Não foi por acaso,

então, que o poder econômico dos Estados Unidos no pós-guerra converteu-se imediatamente em poder político, por mais que trouxesse, externamente, a noção de que se deveria reduzir a política o tanto quanto fosse possível, em prol da economia. Ao tratar desse isolamento dos Estados Unidos em relação à Europa, Schmitt esclarece que essa linha de isolamento norte-americana não foi capaz de criar um novo nomos da Terra, embora estivesse inserida na dissolução do nomos do direito público europeu.

Como trazido por Rüdiger Voigt na apresentação da edição brasileira da obra de Schmitt, muito embora o fim da Primeira Guerra tenha confirmado o fim do velho nomos da Terra, foi somente com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial em 1941 que o século norte-americano se aproximou de um dos seus ápices.54 Naquele momento, a Europa

já não ocupava o centro da ordem global, e os Estados Unidos tinham saído da Segunda Guerra como os grandes vitoriosos. O antigo nomos da Terra já estava dissolvido, mas ainda não havia, à época, um novo nomos que o houvesse substituído.

O contexto era de disputa. Resta compreender como essas disputas se deram no cenário global desde a dissolução do nomos da Terra, e quais atores merecem o destaque na busca pela 47 Ibid., p. 274. 48 Ibid., p. 274. 49 Ibid., p. 211. 50 Ibid., p. 253. 51 Ibid., p. 255. 52 Ibid., p. 255. 53 Ibid., p. 275. 54 Ibid., p. 26.

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instituição uma nova ordem mundial. Se um rápido exame da atualidade já indica a ordem que se consagrou como grande vencedora, isso não torna menos importante o estudo do que foi deixado para trás. É necessário, então, que se exponha uma versão pouco contada da história.

1.2 O ESPÍRITO DE FILADÉLFIA NA DISPUTA POR UMA NOVA ORDEM

Por mais que as propagandas tenham feito passar por natural o curso da sociedade rumo à globalização econômica, apagando discussões que caberiam a toda a humanidade, essa naturalização, na verdade, encobre a lembrança das lições sociais extraídas das guerras.55

Seguindo essa advertência de Alain Supiot, faz-se necessário analisar as tensões que vieram na sequência da dissolução do antigo nomos da terra, mostrando como havia uma ordem mundial em disputa, cujos rumos não foram decididos por caminhos naturais, como se possa fazer parecer.

A crise do liberalismo, que se estendeu entre 1860 e 1930, trouxe à tona duas respostas diferentes entre aqueles apegados ao liberalismo clássico.56 Em ordem cronológica, como

apontam Dardot e Laval, surgiram as figuras do novo liberalismo e do neoliberalismo. Desde já, é perceptível pela semelhança na nomenclatura que “trata-se nos dois casos de responder a uma crise do modo de governo liberal”.57 Nos dois casos, buscava-se fazer frente à ameaça de

fim do capitalismo que aparecera após a Primeira Guerra Mundial e que aparecia sob a forma dos totalitarismos crescentes na Europa. No entanto, por mais singela que possa parecer a distinção no nome de cada corrente, essa diferença, na verdade, traduz uma oposição nem sempre percebida de forma imediata.

O novo liberalismo teve em John Keynes sua expressão tardia das mais elaboradas. O britânico escreveu, em 1926, um ensaio intitulado O fim do laissez faire, em que resgata as origens do liberalismo, abordando suas principais ideias, o contexto que lhe deu notoriedade, e, ao fim, as críticas ao que ele entende como o dogma do laissez-faire. Nesse ponto, cabe transcrever, aqui, o seguinte trecho de seu ensaio:

Devemos esclarecer desde o início os princípios metafísicos ou gerais sobre os quais o laissez-faire fundamentou-se de tempos em tempos. Não é verdade que os indivíduos possuam uma liberdade natural prescritiva em suas atividades econômicas. (...) O mundo não é governado de cima de modo que os interesses particulares e sociais sempre coincidam. Não é administrado aqui embaixo para que esses interesses coincidam. Não é uma dedução correta dos princípios da economia

55 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle

Tschiedel, Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 9.

56 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 68.

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que o interesse próprio esclarecido sempre opere a favor do interesse público. Também não é verdade que o interesse próprio seja, de modo geral, esclarecido; mais frequentemente, indivíduos agindo separadamente para promover seus próprios fins são muito ignorantes ou muito fracos para atingir até a eles. A experiência não mostra que indivíduos, quando fazem parte de uma unidade social, são sempre menos esclarecidos do que quando agem separadamente.58

Muito embora Keynes tenha sido duramente criticado pelos neoliberais, deve-se ter em mente que ele partilhava com eles uma mesma intenção de salvar, o quanto fosse possível, o sistema capitalista de um modelo liberal que começava a enfraquecer.59 Contudo, como se

verá adiante, as diferenças se agigantaram frente às semelhanças entre as duas vertentes; e o keynesianismo, juntamente com as políticas a ele vinculadas, passaram a ser o principal inimigo dos neoliberais – até hoje.

Pela via do novo liberalismo, Keynes reivindicava para si a criação de um novo tipo de liberalismo, que, contrariamente ao que seria proposto mais tarde pelos neoliberais, era favorável à intervenção política, em uma conjugação do radicalismo inglês com o socialismo, porém voltado para reformar o capitalismo. A proposta desse novo liberalismo consistia em superar o dogma do laissez-faire, estipulando as agendas do Estado que deveriam “pôr em questão, na prática, a confiança que se depositou até então nos mecanismos autorreguladores do mercado e a fé na justiça dos contratos entre indivíduos supostos iguais”60. Ou seja, para

realizar os ideais do liberalismo e organizar o capitalismo, seria necessário defender meios aparentemente contrários a ele, como por meio de leis trabalhistas, tributação progressiva e auxílios sociais.

O pensamento de Keynes ganhou destaque na medida em que, com a Grande Depressão de 29, o liberalismo se viu ainda mais ameaçado, chegando ao ponto que muitos definem como o grande marco da crise do modelo liberal. O desemprego, a pobreza, a quebra de empresas e a recessão nas economias mundiais colocou em evidência a descrença no modelo autorregulador do laissez faire. Os Estados Unidos, palco dessa grande crise, viram uma reação política nos anos subsequentes, com a necessidade de imposição de regulações, sobretudo sobre o sistema financeiro. A política do New Deal, nesse sentido, inseriu-se em um novo planejamento da política estadunidense. Implantado pelo então presidente Franklin Roosevelt, o New Deal previa medidas sob forte influência do keynesianismo, tendo por objetivo criar condições para a redução das taxas de desemprego, articulando uma atuação estatal positiva.

58 KEYNES, John Maynard. The end of laissez faire. Panarchy. Disponível em:

https://www.panarchy.org/keynes/laissezfaire.1926.html. Acesso em 10 mai. 2019. (Tradução nossa).

59 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 58.

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Por outro lado, o neoliberalismo, que surgiu mais tarde, apresenta divergências. Quanto à concepção segundo a qual as agendas do Estado devem ultrapassar o dogma do laissez-faire, essa corrente está de acordo com a primeira, do novo liberalismo. No entanto, as duas matrizes do neoliberalismo – o ordoliberalismo e o neoliberalismo austro-americano – se opunham ao estado de bem-estar social, rejeitando qualquer forma de dirigismo econômico, planificação ou intervencionismo estatal.

Em Nascimento da Biopolítica, Foucault aborda os caminhos do neoliberalismo alemão e americano sob pontos de implantação diferentes. A implantação do neoliberalismo alemão se liga à “República de Weimar, à crise de 1929, ao desenvolvimento do nazismo, à crítica do nazismo e, por fim, à reconstrução do pós-guerra”61, ao passo que o neoliberalismo

americano está ligado à “política do New Deal, à crítica da política de Roosevelt”62 que se

desenvolve, sobretudo no período pós guerra, em uma crítica ao intervencionismo federal e aos programas de assistência.

Apesar dessas distinções no curso histórico que contextualizou essas matrizes do neoliberalismo, Foucault aponta os muitos aspectos comuns às duas correntes. Ele assinalada que tanto a escola neoliberal alemã quanto a escola de Chicago tiveram a mesma base para analisar os problemas do liberalismo:

para se evitar a redução de liberdade provocada pela passagem ao socialismo, ao fascismo, ao nacional-socialismo, estabeleceram-se mecanismos de intervenção econômica. Ora, será que estes mecanismos de intervenção econômica não introduzem de forma sub-reptícia tipos de intervenção, não introduzem modos de ação que são pelo menos tão comprometedores para a liberdade quanto as formas visíveis e manifestas que se quer evitar?63

Ou seja, como aduz Foucault, o centro dos debates promovidos pelas escolas neoliberais é o combate às políticas keynesianas e às políticas de bem-estar social crescentes no período pós-guerras. Assim, em torno das políticas intervencionistas que se deram entre as décadas de 30 e 60, antes e após a guerra, provocou-se uma crise do liberalismo, e, segundo Foucault, “é esta crise do liberalismo que se manifesta em algumas reavaliações, reconsiderações, em alguns projetos na arte de governar, formulados na Alemanha antes e logo após a guerra, e atualmente na América”64.

Ao contrário da corrente do novo liberalismo, que era “mais consciente das relações sociais e econômicas”, os neoliberais se opõem frontalmente a qualquer entrave ao jogo da

61 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010.

p. 110.

62 Ibid., p. 110. 63 Ibid., p. 99-100. 64 Ibid., p. 99-100.

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concorrência. Não se trata, para eles, de limitar o mercado por meio de regulações, proteções ao trabalho ou auxílios sociais, mas de “desenvolver e purificar o mercado concorrencial por um enquadramento jurídico cuidadosamente ajustado”65. Assim, o neoliberalismo combina a

readequação da intervenção pública com uma ideia de mercado centrada na concorrência. Na década de 30, iniciava a fundação intelectual da versão alemã do neoliberalismo. Essa versão tomava a forma do ordoliberalismo, que só se impôs economicamente após a Segunda Guerra mundial na República Federal da Alemanha.66 Buscando encontrar as origens

do ordoliberalismo, Foucault retoma o ano de 1948 para relembrar as exigências que deveriam comandar as políticas econômicas na Europa no pós-guerra. Em primeiro lugar, havia a exigência de uma reconstrução, ou seja, da “reconversão de uma economia de guerra numa economia de paz”, e da “reconstituição de um potencial econômico destruído”67. Em segundo,

a exigência da planificação como um elemento central para essa reconstrução. Por fim, em terceiro, a exigência era por “objectivos sociais que foram considerados politicamente indispensáveis para evitar que recomeçasse o que acontecera, a saber, o fascismo e o nazismo na Europa”68.

Essas exigências, como aduz Foucault, implicavam uma política de intervenção estatal, que ele reconhece como uma “plena política Keynesiana”69. Do mesmo modo,

Wolfgang Streeck, ao se debruçar sobre o capitalismo pós 1945, relembra que o capitalismo não é um estado natural, “mas, sim, uma ordem social que, associada a determinado tempo, necessita ser formada e legitimada”70. O autor relembra que o capitalismo, àquela época, estava

sob uma situação defensiva, e que ele só conseguiu “renovar sua licença social” 71 com essas

políticas keynesianas, que contribuíram para uma fórmula da paz após a Segunda Guerra. Essa fórmula, segundo Streeck, foi mediada e supervisionada por um Estado intervencionista, que “impunha disciplina ao mercado, planejava e distribuía, tendo também de garantir os fundamentos para o negócio do novo capitalismo, sob pena de perder sua própria legitimidade”72.

Como entender, então, que possa ter surgido um neoliberalismo que se opusesse às práticas keynesianas nesse contexto? O contexto do ano de 1948 era o do pós-guerra em que a

65 DARDOT, Pierre; Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 69.

66 Ibid., p. 101. 67 Ibid., p. 111. 68 Ibid., p. 112. 69 Ibid., p. 112.

70 STREECK, Wolfgang. O tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Tradução: Marian

Toldy. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 72.

71 Ibid., p. 72. 72 Ibid., p. 72.

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Alemanha ainda não estava reconstituída, de modo que não era possível, àquela época, “reivindicar uma legitimidade jurídica na medida em que não há aparelho, não há consenso, não há vontade coletiva que se possa manifestar numa situação em que a Alemanha está, por um lado, dividida e, por outro, ocupada”73. Como coloca Foucault: como assegurar a limitação

do Estado ao mesmo tempo em que se deve fazer existir um Estado? “Como torná-lo aceitável a partir de uma liberdade econômica que vai assegurar sua limitação e, ao mesmo tempo, permitir que exista?”74

A defesa do ordoliberalismo era no sentido de que se poderia criar o novo Estado Alemão por meio das liberdades econômicas. O centro do pensamento ordoliberal está na ideia de que a ordem da concorrência não é uma ordem natural, e por isso deve ser assegurada pela criação de um “quadro institucional especificamente adaptado a uma economia de concorrência”75.

Sem o intuito de analisar pormenorizadamente a corrente ordoliberal, destaca-se o que Foucault chama de “golpes de força teóricos e analíticos”76 do ordoliberalismo. O

ordoliberalismo foi exitoso ao associar o protecionismo, o assistencialismo econômico, o planismo e o keynesianismo com o nazismo, sob a ideia de que “o nazismo é revelador de algo que é simplesmente o sistema relações necessárias que existe entre esses diferentes elementos”77. Com essa articulação, os ordoliberais encontraram no nazismo, e de quebra, nas

políticas intervencionistas, um grande adversário. O ponto mais fundamental resultante dessa análise ordoliberal é o de que, considerando que os efeitos do nazismo não podem ser atribuídos à economia de mercado, mas sim a defeitos intrínsecos do Estado, há uma passagem da crítica, que deixa de se direcionar à economia de mercado e passa a ser uma crítica ao próprio Estado: “É preciso dizer: nada prova que a economia de mercado tenha defeitos, nada prova que tenha uma deficiência intrínseca, visto que tudo o que se lhe atribui como defeito e como efeito da sua deficiência deve ser atribuído ao Estado”78.

Como se pôde notar, esses movimentos de resposta à crise do liberalismo não constituem uma continuidade no pensamento liberal ou uma simples reação frente a uma crise. Buscando salvar o capitalismo da ameaça socialista que se acentuava após a Segunda Guerra, os movimentos não resgataram o liberalismo clássico, mas trouxeram inovações e métodos

73 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010.

p. 114.

74 Ibid., p. 140.

75 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 102.

76 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010.

p. 154.

77 Ibid., p. 148. 78 Ibid., p. 154.

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próprios que os mantivesse em pé na disputa por uma nova ordem mundial. Assim, inserem-se na busca por um novo nomos da Terra, para substituir aquele que havia sido dissolvido com o fim do direito público europeu.

Se a articulação de diferentes doutrinas até aqui expostas – sobretudo as do neoliberalismo – parece apresentar alguns dos sujeitos ativos dentro dessa disputa por uma nova ordem, é fundamental dedicar as próximas páginas a uma doutrina, uma corrente – ou melhor, a um Espírito – que muito se aproximou na busca por instituir uma nova ordem mundial e trouxe os caminhos necessários para fazê-lo. Passa-se a estudar, então, aquilo que Alain Supiot chamou de Espírito da Filadélfia.

Supiot, jurista francês e atualmente professor no Collège de France, dedicou sua obra O Espírito de Filadélfia – A Justiça Social diante do Mercado Total precisamente ao estudo das lições aprendidas no período do pós-guerra, e em como elas foram negligenciadas com o avanço da globalização econômica. A obra de Supiot tem sua análise centralizada no que o autor chama de Espírito de Filadélfia, inaugurado com a Declaração de Filadélfia, datada de 10 de maio de 1944, assim como também tem central importância o seu princípio norteador de justiça social.

Contextualizando a proclamação da Declaração de Filadélfia, denominada Declaração sobre os fins e os objetivos da Organização Internacional do Trabalho, o texto, que posteriormente se tornou anexo à Constituição da OIT, remonta ao contexto da “pesada experiência histórica” do ano de 194479. Naquele ano, a Segunda Guerra mundial ainda não

havia chegado a seu fim, Hiroshima ainda não havia sido bombardeada, e a amplitude do holocausto ainda era pouco conhecida. No entanto, já se sabia que os Aliados sairiam vitoriosos do grande conflito, e os autores da Declaração de Filadélfia queriam iniciar uma nova ordem mundial a partir das lições “da Guerra dos Trinta Anos, que estraçalhou o mundo de 1914 a 1945”80.

A Declaração de Filadélfia se insere, no pós-guerra, na busca por uma nova ordem internacional não mais baseada na força, mas sim no Direito e na justiça81. Como se buscou

demonstrar anteriormente, o laissez-faire não havia sido capaz de impedir a destruição que se instaurou na Europa com uma grande crise e duas grandes guerras. Os ideais da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade resultavam, até então, limitados à preocupação com a esfera da liberdade, sem a busca por concretização dos ideais de igualdade e fraternidade.

79 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle

Tschiedel, Porto Alegre: Sulina, 2014. p.10.

80 Ibid., p. 10. 81 Ibid., p. 9.

Referências

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