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Por esses vazamentos eles não esperavam

3.3 ANTICORRUPÇÃO: O LAWFARE CHEGA À PERIFERIA

3.3.1 Por esses vazamentos eles não esperavam

No ano de 2010, a plataforma Wikileaks realizou suas publicações mais conhecidas até o momento, “revelando um abuso sistemático do sigilo oficial do governo e das Forças Armadas dos Estados Unidos”358. Dentre os vazamentos divulgados pela organização fundada

por Julian Assange em 2006, estavam uma série de telegramas que mostram articulações entre Brasil e Estados Unidos a respeito de políticas de Segurança Nacional e Antiterror envolvendo os dois Estados.

Em seu último mês como Secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice enviou, em dezembro de 2008, telegramas para mais de 50 embaixadas, oferecendo auxílio financeiro para atividades de combate ao terrorismo.359 Em resposta a esse telegrama, em 31 de

dezembro de 2008, Lisa Kubiske, à época conselheira da embaixada dos Estados Unidos em Brasília, requereu o financiamento para uma conferência que teria início em agosto de 2009, e que discutiria crimes financeiros ligados a terrorismo e organizações do narcotráfico na América do Sul. A proposta era que a conferência expandisse em relação a outro evento ocorrido no ano anterior, incluindo, dentre os participantes, ao menos 200 procuradores e juízes. Ao final do telegrama, Kubiske solicitou um mínimo de 200 a 300 mil dólares para a realização da conferência.360

Em 10 de março de 2009, Kubiske escrevia um novo telegrama enaltecendo as “oportunidades para parcerias da aplicação da lei no Brasil”361. Na mensagem, a conselheira

demonstrava entusiasmo com os novos desafios e oportunidades para o Brasil em matéria de aplicação da lei em parceria com os Estados Unidos naquele ano. Àquele momento, ela já afirmava que a proposta, que levou o nome de Projeto Pontes, havia sido bem recebida por autoridades federais, estaduais e municipais, demonstrando um potencial de cooperação. No telegrama, fala-se do sucesso dos primeiros seminários do Projeto, demonstrando, nesse sentido, que “o sucesso do primeiro seminário Pontes é uma indicação da vontade de uma multi-

358 ASSANGE, Julian. Quando o Google encontrou o WikiLeaks. Tradução: Cristina Yamagami. 1. ed. São Paulo:

Boitempo, 2015. p. 153.

359 RICE, Condolleezza. S/CT: solicitation for NADR–funded proposals to support the regional strategic

initiatives. Secretary of State para US Embassy in Brasília, 5 de dezembro de 2008. Canonical ID: 08STATE128554_a. Disponível em: wikileaks.org/plusd/cables/08STATE128554_a.html. Acesso em 20 jun. 2019.

360 KUBISKE, Lisa. Embassy Brasilia proposal for S/CT NADR project. US Embassy in Brasília para Secretary

of State, 31 de dezembro de 2008, Confidential. Canonical ID: 08BRASILIA1684_a. Disponível em: wikileaks.org/plusd/cables/08BRASILIA1684_a.html. Acesso em 20 jun. 2019.

361 KUBISKE, Lisa. Opportunities for law enforcement partnerships in Brazil. US Embassy in Brasilia para

Secretary of State, 10 de março de 2009. Canonical ID: 09BRASILIA278_a. Disponível em: wikileaks.org/plusd/cables/09BRASILIA278_a.html. Acesso em 20 jun. 2019.

jurisdição por parte de autoridades brasileiras, dispostas a realizar parcerias com os Estados Unidos em assuntos de segurança pública”362.

Alguns meses mais tarde, em 30 de outubro de 2009, um novo telegrama. Dessa vez, levava o seguinte título: “Brasil: Conferência de finanças ilícitas utiliza a palavra ‘T’, com sucesso”363. A mensagem referia-se à conferência ocorrida no Rio de Janeiro, entre os dias 4 e

9 de outubro de 2009, que contou com a participação de autoridades brasileiras federais e estaduais, além de outros representantes da América Latina. A conferência era uma das partes do projeto Pontes anunciado por Lisa Kubiske no telegrama anterior.

A mensagem relata também que a conferência foi elogiada por meio de avaliações escritas pelos participantes do evento, dentre os quais muitos pediram por mais treinamentos, incluindo aqueles específicos para combate ao terrorismo. Nesse ponto, o telegrama destaca que esse posicionamento difere da tradição brasileira, que historicamente evitou utilizar o termo “terrorismo”, preferindo optar por nomenclaturas mais genéricas como “crimes transnacionais”.364

Também foram feitos elogios quanto ao treinamento prático e multijurisdicional dado aos participantes, que incluíram demonstrações sobre como, por exemplo, preparar uma testemunha dentro dos processos. Quanto a esses participantes, o telegrama esclarece que juízes federais e procuradores de cada um dos estados brasileiros fizeram-se presentes, além de representantes do Distrito Federal e de mais de 50 policiais federais, bem como representantes do México, Costa Rica, Panamá, Argentina, Uruguai e Paraguai.

A conferência foi aberta pela Vice-coordenadora antiterrorismo Shari Villarosa. Contrariando a tradição brasileira de não falar na “palavra-T”, a fala de abertura fez menção direta ao combate ao terrorismo e seu financiamento ilícito, sob a ótica segundo a qual essa questão trata-se de um problema global, que deve, portanto, ser enfrentado globalmente.

Na sequência, o juiz Gilson Dipp abordou uma visão geral do histórico legislativo e político da lavagem de dinheiro e de atividades ilícitas no Brasil. Em seguida, o então juiz Sérgio Moro discutiu as quinze questões mais comuns nos casos de lavagem de dinheiro nas cortes brasileiras. Falou-se, na oportunidade, vários aspectos sobre a investigação desses crimes financeiros, incluindo cooperação internacional tanto formal quanto informal.

Os participantes fizeram aplicação prática das técnicas aprendidas na conferência, e “enfatizaram a importância de se discutir técnicas de investigação e julgamento práticos, e a

362 Ibid. (Tradução nossa). 363 Ibid. (Tradução nossa). 364 Ibid. (Tradução nossa).

demonstração de exemplos concretos de cooperação entre procuradores e os aplicadores da lei”.365 Ao final do telegrama, conclui-se que

A conferência claramente demonstrou que o setor judicial brasileiro está muito interessado em se engajar mais proativamente na luta contra o terrorismo, mas precisa de ferramentas e treinamento para se engajar efetivamente. Atualmente, a forma mais efetiva de prender um suspeito de terrorismo é acusando-o de crime organizado, como tráfico de drogas ou lavagem de dinheiro. [...] Consequentemente, há uma necessidade contínua de providenciar treinamento prático para juízes brasileiros estaduais e federais, procuradores, e oficiais de aplicação da lei no que tange ao financiamento ilícito de condutas criminosas. [...] No geral, a conferência foi um sucesso, não somente por convocar um número significativo de profissionais [...] para compartilhar as melhores práticas de investigação e persecução de crimes, mas também para reconhecer que o termo terrorismo não é um tabu para profissionais que têm que estar preparados para o pior.366

Como destaca Gabriel Kanaan em artigo intitulado “O Brasil na mira do Tio Sam: O projeto pontes e a participação dos EUA no Golpe de 2016”, a tática empregada na conferência em solo brasileiro foi semelhante àquela já praticada na guerra ao terror nos Estados Unidos, em que o tráfico de drogas serve à acusação de financiamento do terrorismo.367 Anos mais tarde,

o Brasil marcava um novo passo na direção proposta pelo governo norte-americano, com a aprovação, em 2016, da lei Antiterror (Lei 13.260/2016), sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff, o que lhe rendeu duras críticas por parte do setor progressista brasileiro.

O papel dos treinamentos ofertados aos oficiais brasileiros na ocasião da conferência do Projeto Pontes certamente não se exaure nesses telegramas vazados pelo WikiLeaks. Tanto é que, anos mais tarde, em uma conferência chamada “Lições do Brasil: lutando contra a corrupção em meio à turbulência política”, realizada pelo Atlantic Council em julho de 2017 em Washington, Kenneth Blanco, Vice-Procurador Geral Adjunto do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, afirmou ser “difícil imaginar uma relação de cooperação melhor na história recente do que a que temos entre o Departamento de Justiça dos EUA e do Brasil”.368 Na sua

fala, Blanco justifica essa ação conjunta na medida em que, uma vez que a economia é global, a luta contra o crime também deve ser global369, reiterando que “a corrupção prejudica a

competição livre e justa”370.

365 Ibid. (Tradução nossa). 366 Ibid. (Tradução nossa).

367 KANAAN, Gabriel Lecznieski. O Brasil na mira do Tio Sam: O projeto pontes e a participação dos EUA no

golpe de 2016. Anais do Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da Anpuh-Rio: Hstória e Parceriais.

Disponível em:

https://www.encontro2018.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1530472505_ARQUIVO_KANAAN,GabrielLecznies ki.OBrasilnamiradoTioSam[ANPUHRJ].pdf. Acesso em: jun. 2019.

368 A COOPERAÇÃO escancarada entre Departamento de Justiça dos EUA e Lava Jato. 1 vídeo (15min).

Publicado pelo canal TV GGN. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L6dVJJ5Rx-s. Acesso em 18 jun. 2019.

369 Ibid. 370 Ibid.

Como se vê, mais uma vez, o discurso anticorrupção se relaciona com a concorrência generalizada de uma economia global, na qual os Estados Unidos exercem protagonismo sob novas formas de imperialismo exercidas pela via do lawfare. O telegrama que relata a conferência sobre crimes financeiros do Projeto Pontes é um rico objeto de estudo para a compreensão dos fenômenos do lawshopping, de que se tratou no capítulo anterior. Reconhecendo a limitação da legislação brasileira, procuradores e magistrados buscaram contornar as limitações encontradas no Brasil, tomando emprestadas técnicas e métodos não condizentes com o direito brasileiro para o enfrentamento do terrorismo e seus heterônimos.

A denúncia do lawfare vem sendo feita por alguns grupos nos últimos anos, sobretudo por essa forma de cooperação informal ao arrepio do Estado democrático de Direito, passando por uma legitimação sob o pretexto de combater um mal maior, tal qual no discurso antiterror estadunidense, porém em versão brasileira anticorrupção. Nesse ponto, há de se concordar com o artigo de Sergio Moro, segundo o qual a opinião pública é essencial para o sucesso da operação. Isso porque, se dependesse de sua coerência juridica, as práticas da operação seriam insustentáveis.

Muito recentemente, novos vazamentos vieram à tona, e, com ele, novos capítulos nessa história do lawfare à moda verde-amarela.

No dia 9 de junho de 2019, o Intercept Brasil, agência de notícias que exerce jornalismo investigativo no Brasil desde 2016, começou a publicar uma série de conversas envolvendo juízes e procuradores atuantes no âmbito da Lava-Jato.371 A série de reportagens,

que ficou conhecida como Vaza-Jato, até o momento deste trabalho ainda não divulgou todos os conteúdos obtidos. No entanto, as primeiras partes já reveladas indicam uma sequência de irregularidades na força-tarefa que ficou conhecida como aquela capaz de limpar a corrupção do país.

No ponto em que a conferência do Projeto Pontes indicava uma necessidade de cooperação entre procuradores e aplicadores da lei, as conversas divulgadas pelo Intercept Brasil mostram como essa orientação foi seguida ao pé da letra. A promiscuidade nas relações entre aqueles que acusam e os que julgam é símbolo de que o Estado Democrático de Direito foi suspenso, para que restasse tão somente um Direito instrumentalizado, ao bel-prazer daqueles que detêm poder. Assim, o Direito é utilizado somente por sua violência, que lhe é inerente, sob a forma de uma arma de aniquilação política do inimigo, reconhecido agora como criminoso.

371 GREENWALD, Glenn; REED, Betsy; DEMORI, Leandro. Como e por que o intercept está publicando chats

privados sobre a lava jato e sergio moro. The Incerpt Brasil, 2019. Disponível em: https://theintercept.com/2019/06/09/editorial-chats-telegram-lava-jato-moro/. Acesso em: jun. 2019.

As articulações denunciadas pela Vaza-Jato e a reação apaixonada de defensores da operação, negando qualquer irregularidade nos conteúdos, assinalam a seletividade no próprio sentido do termo corrupção, que se presta a deslegitimar a política, sem chegar nos atores que se colocam fora dela. Segundo essa lógica, a violação às normas mais fundamentais do Estado de Direito por seus operadores faz com que eles sejam vistos como heróis, pois conseguem driblar os entraves legais em nome de uma luta maior do que a própria democracia. Assim, esses não são vistos como corruptos.

Retomando-se a conexão estabelecida por esses agentes entre terrorismo, corrupção e narcotráfico, assim como a parceria EUA-Brasil nessas força-tarefas, um dos principais envolvidos nas conversas divulgadas pelo Intercept, o atual Ministro da Justiça Sérgio Moro, realizou às pressas uma viagem aos Estados Unidos em meio às divulgações pelo Intercept Brasil. Após ser cobrado para explicar as razões da viagem, por parte de parlamentares que o receberiam na Câmara de Deputados para que prestasse esclarecimentos sobre as conversas divulgadas, o ministro afirmou que visitou a Special Operations Division da Administração Antidrogas norte-americana (DEA) com o objetivo de “conhecer o modelo de força tarefa multiagência contra o tráfico de drogas e aprofundar os laços para cooperação internacional”.372

Mais uma vez, a conjuntura aproxima intimamente as forças-tarefa anticorrupção, o combate ao narcotráfico e a guerra ao Terror de modelo norte-americano. Esse moderno meio de aniquilação pela via do Direito, ainda que possa parecer mais sutil do que os tradicionais métodos, tem traços cada vez mais delineados com os episódios que seguem dando o tom da forma neoliberal do Estado de Direito.

Legitimada pela opinião pública, majoritariamente conduzida por uma oligarquia midiática, a instrumentalização do Direito sob a via do lawfare não é acidental ou casuística. O que se buscou demonstrar, até aqui, é que o lawfare não é outra coisa, senão mais uma arma de domínio neoliberal sobre todos os cantos do globo.

O estudo sobre o lawfare que aqui se pretendeu fazer não se deu sem dificuldades, dada a pouca abordagem do tema até o presente momento. Além disso, buscou-se ultrapassar o simples conceito e definição de lawfare, a que se dedica boa parte da literatura já existente, para compreender suas as relações conexões com a razão neoliberal. Ou seja, tratou-se de compreender como o neoliberalismo abriu caminho para que as práticas do lawfare seguissem desimpedidas e sem maiores confrontamentos.

372 MORO, Sérgio Fernando. Visitamos a Special Operations Division da DEA - Drug Enforcement

Administration. Objetivo, conhecer o modelo de força tarefa multiagência contra o tráfico de drogas e aprofundar os laços para cooperação internacional. 25 jun. 2019. Twitter: @SF_Moro Disponível em: https://twitter.com/SF_Moro/status/1143671558696841216. Acesso em: jun. 2019.

No cenário de concorrência generalizada que se impõe a tudo e todos, defender o Estado Democrático de Direito soa como uma tarefa mais complexa do que se faça parecer, na medida em que o neoliberalismo põe não somente o Direito, mas a própria democracia em jogo. Nesse sentido, o caso brasileiro de lawfare oferece um vasto objeto de estudo visível a olho nu, revelando as facetas antidemocráticas em um processo de aniquilação no qual o Direito é principal armamento.

Por um lado, é certo que analisar o lawfare como uma técnica não contingente ou isolada, passando a vê-lo como fruto de uma racionalidade que se alastra a todos os campos da vida, parece pouco animador. Com razão, melhor seria se bastassem os esforços para corrigir questões pontuais que levam à deturpação do Direito. No entanto, a questão que se levantou neste trabalho leva a um sentido diverso. A utilização do Direito como nova arma de aniquilação na nova ordem mundial, sob a forma do lawfare, é o indicativo de mais um dos aspectos da racionalidade neoliberal, que abala não somente as relações profissionais, pessoais, sociais e psicológicas, mas também o próprio Direito.

Embora o cenário não permita muito otimismo, o que se pode esperar quando o lawfare é levado a cabo, como ilustra a situação brasileira, é que, em situações limítrofes, em algum momento o esgotamento da democracia pode, ele mesmo, chegar a seu limite. Frente a essa possibilidade de uma ação verdadeiramente democrática, na contramão do que se alimenta hoje em dia em tempos de despolitização e deslegitimação dos espaços políticos, mantém-se acesa uma tímida faísca de expectativa. É essa partícula de esperança que prefere nutrir um imaginário em que essas situações agudas, se devidamente discutidas e enfrentadas, podem alimentar, no horizonte, alguma espécie de insurgência, corroborada pela participação de novos atores na disputa por narrativas contra-hegemônicas à nova ordem. Seja por um jornalismo independente, ciente de seu papel nos esforços democráticos que podem começar a surgir; seja por operadores verdadeiramente comprometidos com o Direito enquanto um fim em si, rejeitando sua instrumentalização e sujeição. Os esforços não são poucos; e a trajetória, árdua.

CONCLUSÃO

Na introdução de “A era do capital improdutivo”, Ladislau Dowbor mostra uma preocupação com o modo de pesquisa social que pretende desenvolver no livro. Para ele, economista, mais importante do que se limitar à pura apresentação dos fatos, é que a pesquisa social seja feita com clareza a respeito das convicções e valores daquele que a realiza. Dessa forma, aquele que lê o trabalho poderá se situar em suas análises.

Sobre essa premissa, buscando romper com a imagem de um pesquisador puramente técnico e neutro, Dowbor abre o livro esclarecendo quais são suas convicções, mostrando, de certa forma, aquilo que dá sentido à realização de sua pesquisa: “O motor que me move é uma profunda indignação. Hoje 800 milhões de pessoas passam fome, não por culpa delas, mas por culpa de um sistema de alocação de recursos sobre o qual elas não têm nenhuma influência”373.

Ao ler esta frase, a autora deste trabalho não somente viu despertar seu interesse pelo livro de Dowbor, mas também viu a necessidade de reafirmar quais seriam suas próprias convicções que levaram à escolha de sua pesquisa. Como comunicar a suposta tecnicidade do Direito com essa mesma indignação em relação ao sistema de desigualdade, competição e meritocracia que está posto hoje? Essa reflexão revelou-se mais do que necessária, devendo ser renovada de tempos em tempos para que a pesquisa acadêmica nunca se esqueça de tocar a realidade em que está inserida.

Assim, como trazido na introdução da pesquisa, o principal motor que impulsiona este trabalho é a frustração ao perceber como o Direito não somente não nos protegeu, mas foi ele um dos mais importantes atores nos golpes que abriram portas para o processo de desmonte do Estado brasileiro nos últimos anos. Nesse ponto, uma das questões principais que moveram os estudos aqui pretendidos foi justamente a de saber que papel resta àqueles que defendem o Estado de Direito quando a realidade pode fazer parecer que o próprio Direito tenha nos conduzido à atual situação.

A partir disso, a hipótese levantada de que estamos diante de um cenário de guerra global, em que há variados instrumentos de aniquilação, sendo o próprio Direito um deles, auxiliou na condução de algumas respostas. Sendo assim, buscou-se resgatar um breve histórico sobre a nova ordem do mundo - o nomos da Terra, entendido como unidade de ordenação e localização -, a razão neoliberal e a nova forma do Direito incorporada por essa racionalidade mundial.

373 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade

No primeiro capítulo, buscou-se contextualizar o cenário de disputa. O direito público europeu, sob a forma que havia prosperado por mais de quatro séculos, estava sendo dissolvido, sem que fosse substituído imediatamente por uma nova ordem. Nesse ponto, iniciava-se uma reconfiguração no significado de guerra, que deixou de ser circunscrita entre países soberanos, passando a ser uma guerra de aniquilação em que não se reconhece o inimigo enquanto tal, mas sim enquanto um criminoso.

Viu-se, também, como o espírito de Filadélfia, que centralizava o papel da proteção aos direitos do homem, priorizando ideais de justiça social sobre lógicas totalizantes (seja pelo comunismo, seja pelo ultraliberalismo), não saiu vitorioso dessa disputa. Em seu lugar, prosperou uma visão de mundo neoliberal, centrada na competição, e na sujeição dos homens a supostas leis naturais da economia. A essa visão, Dardot e Laval referem-se como razão de mundo.

Partilhando desse entendimento, do neoliberalismo enquanto uma razão-mundo, o segundo capítulo do trabalho abordou variados aspectos da racionalidade neoliberal, mostrando algumas das práticas que se alastram para todas as esferas da vida, em variados espectros políticos e ideológicos. O trabalho retomou as relações entre o neoliberalismo e a profunda desigualdade por ele causada, demonstrando de que forma as mazelas sociais não representaram qualquer ameaça, pela via democrática, à ordem dominante.

Nesse ponto, o trabalho confirmou a relação de incompatibilidade entre neoliberalismo e democracia, destacando o discurso econômico cientificista como forma de afastar os debates