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A doutrina do livre-arbítrio e o princípio da igualdade dos direitos

CAPÍTULO II QUESTÕES DA CIÊNCIA DO

2.3. A doutrina do livre-arbítrio e o princípio da igualdade dos direitos

Segundo a concepção iluminista, adotada pela escola clássica do direito penal, se o agente praticou o crime é porque efetivamente assim escolheu, pois conhecia a lei e a pena e pode, dessa maneira, calcular o risco que corria. Nesse cálculo, o criminoso efetuou o mais

122 Bobbio, 1996, p.92.

123 GM/GM, I, 17, nota.

124 GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 37. 125 Idem.

puro exercício de livre arbítrio. É seguindo essa linha de pensamento que Strauss sustenta a aplicação da pena de morte para homicídios premeditados.

No início da segunda fase de seu pensamento, Nietzsche procede na desconstrução dos elementos do crime, de forma totalmente assistemática, tendo como foco privilegiado a culpabilidade do agente e ataca frontalmente a questão do livre-arbítrio, premissa sem a qual a escola clássica do direito penal não se sustenta.

A doutrina do livre-arbítrio, segundo Nietzsche, foi edificada a partir de uma ilusão, qual seja, a noção de que o fraco poderia ter agido como forte, se assim o quisesse e, que o forte poderia ter agido como fraco, se assim o quisesse. É dessa ilusão de livre escolha que, segundo Nietzsche, nasceu a psicologia da vontade. Para Nietzsche a origem dessa doutrina encontra-se na própria crueldade humana, eis que desenvolvida com

"[...] o propósito de castigar, isto é, com a intenção de achar um culpado. Toda a antiga psicologia, psicologia de vontade, tem como pré-requisito o desejo de seus autores, os sacerdotes chefes das comunidades primitivas, que quiseram atribuir-se o direito de ordenar castigos - ou seu desejo de criar a Deus um tal direito. Os homens foram ensinados "livres" para que pudessem ser culpados: Conseqüentemente, toda ação tinha que reputar-se voluntária, e a origem de todo ato devia supor-se na consciência".126

A origem da doutrina do livre arbítrio e a ilusão que a acompanha são tópicos de extrema importância para a crítica que Nietzsche faz do direito penal moderno. Para Nietzsche o livre arbítrio é uma invenção das classes sacerdotais, com a vontade de dominar e não foram todos os homens que conseguiram desenvolver e tampouco de igual forma, o livre arbítrio. Alguns homens sequer conseguiram desenvolver razão e consciência.

Desde o início de sua obra Nietzsche não esconde a sua concepção de que os homens são moral, intelectual e espiritualmente diferentes. Em O Estado Grego, terceiro prefácio de

Cinco prefácios para cinco livros não escritos, Nietzsche já criticava a noção de “igualdade

126 CI, Os quatro grandes erros, § 7º

para todos” e os “chamados direitos dos homens”.127 Naquele ensaio Nietzsche argumenta que já no Estado grego

“[...] a imensa maioria tem que se submeter como escravo ao serviço de uma minoria, ultrapassando a medida de necessidade individual e de esforços inevitáveis pela vida”.128

É essa a condição do homem grego, do homem romano, homens absolutamente livres para tratar dos seus assuntos políticos. As leis escritas não podem ser iguais para todos. Os cidadãos gregos, os iguais entre si (isoi) assim como o cidadão romano possuem leis diferentes, privilégios, ainda que o elemento coercitivo dessas leis escritas não possa ser comparado com a coerção existente nas normas jurídicas, isto é, as leis positivas postas pelo Estado moderno. Nietzsche possui plena noção dessa diferença:

“[...] há também direitos entre escravos e senhores, isto é, exatamente na medida em que a posse do escravo é útil e importante para o seu senhor. O

direito vai originalmente até onde um parece ao outro valioso, essencial, indispensável, invencível e assim por diante. Nisso o mais fraco também tem direitos, mas menores. Daí o famoso unusquisque tantum júris habet,

quantum potentia vale [cada um tem tanta justiça quanto vale seu poder] (ou, mais precisamente: quantum potentia valere creditur [quanto se acredita valer seu poder]).”129

Essas diferenças que Nietzsche encontra na base do direito revelam que

“[...] a polis não nasce democrática, mas com o seu nascimento dá início à construção do espaço público, isto é, o espaço político e local de encontro dos iguais (isoi). Essa situação se conecta com o problema da educação do homem para agir na polis e coloca em evidência o exercício consciente da cidadania, cujo pressuposto fundamental é a liberdade do cidadão.

[...]

127 CV/CP, O Estado grego.

128 Idem.

É importante destacar que o conceito de liberdade não é elaborado pela filosofia; ou seja, a filosofia grega não elabora uma noção filosófica de liberdade, o conceito é essencialmente político.” 130

Um exemplo disso nos é relatado, na Apologia de Sócrates, por Platão, quando Sócrates se recusa a acompanhar o povo e a participar do julgamento em massa dos oficiais que não recolheram os corpos dos mortos na batalha naval de Salamina. O julgamento em massa, além de revelar a iniqüidade do povo, feria princípio de direito semelhante ao princípio da individualidade da pena, já existente na Grécia antiga. Dessa passagem podemos observar que na antiguidade a lei escrita possuía um menor valor coercitivo, o que não nos impede de localizar, na própria filosofia ática, um impulso para a dogmática jurídica. Conforme veremos, Nietzsche localiza na filosofia platônica o impulso para a dogmática ocidental, inclusive a jurídica, tal como a maioria, senão todos os pensadores do direito.

Para Nietzsche, a doutrina da igualdade dos direitos, iniciada com o cristianismo e que no direito foi elevada a um grau superlativo no iluminismo francês, é um sintoma do processo de decadência no qual está inserido o homem da modernidade. A doutrina da igualdade dos direitos está prenhe de vingança e ao deixar de levar em consideração as diferenças entre os homens, é mais do que uma injustiça, é uma justiça reativa que enseja o fim da própria justiça, conforme já exposto: 131

“[...] O fato das coisas terem girado em torno daquela doutrina da igualdade de maneira tão terrível e sangrenta entregou a esta “idéia moderna” par

excellence uma espécie de glória e uma aparência de chama, de modo que a revolução enquanto peça teatral seduziu mesmo os espíritos mais nobres. Isto não é por fim nenhum motivo para apreciá-la mais. – Eu só vejo um homem que a acolheu como ela precisa ser acolhida, com nojo – Goethe... “132

Em um primeiro momento pode parecer que Nietzsche estaria defendendo a justiça distributiva aristotélica, aquela que propõe um tratamento desigual aos desiguais, igualando-

130 ASSIS, Olney Queirós. O estoicisimo e o direito. São Paulo: Lúmen, 2002, p. 57. 131 Za/ZA, II, Das Tarântulas.

os.133 Contudo a postura de Nietzsche é radical: os desiguais devem ser tratados de forma desigual, sem a pretensão de que sejam igualados. É o que dispõe o trecho “e o que se segue daí, nunca tornar igual o desigual”. A justiça distributiva que pretende igualar a todos, presente na Ética a Nicômaco, de Aristóteles e que acabou sendo apropriada e aplicada pelos iluministas, fundamenta as concepções e valores da Idade Moderna e não leva em consideração as diferenças entre os homens. Portanto, o ideal de justiça que Nietzsche combate é aquela que teve sua origem na dogmática platônica-aristotélica e cuja expressão maior encontramos no iluminismo e na escola clássica do direito penal.

Pela perspectiva do conceito de vontade de poder, o princípio da igualdade dos direitos nada mais reflete do que o triunfo de uma vontade de poder reativa sobre uma vontade de poder ativa. Ainda que essa perspectiva, divisão e terminologia (“ativo” e “reativo”) não constituem um consenso entre os intérpretes de Nietzsche, possuímos encontramos fundamentação textual na própria obra nietzscheana.134