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O direito enquanto fenômeno antinatural

No documento NIETZSCHE E O DIREITO DOUTORADO EM FILOSOFIA (páginas 162-166)

CAPÍTULO II QUESTÕES DA CIÊNCIA DO

4.4. O direito enquanto fenômeno antinatural

Dentre as virtudes Socráticas, a justiça era imperativa. Já na contraposição entre direito natural e direito positivo, próprias da filosofia do direito, ou da filosofia jurídica, como também é chamada, é o fato de o homem ser considerado como um ser separado da natureza. Essa cisão ficará ainda mais clara diante das características que o direito natural e o direito positivo apresentam384 e talvez, não por acaso, Nietzsche explorará a gênese do direito, no período da pré-história do homem, quando referida cisão ainda não existia. Este é um dos pontos cruciais na filosofia nietzscheana: em contraste com a tradição ocidental, para Nietzsche o direito aparece como um fenômeno antinatural. O homem domesticado, restrito ao Estado civilizado é cindido de sua condição primeira, de seus instintos mais autênticos.

Seguindo a visão nietzscheana, desde que o mundo é mundo, o direito foi posto pelo homem, até mesmo nas mais primitivas das sociedades, antes mesmo do advento do direito escrito, isto é, quando o direito primitivo sustentava-se pela tradição oral. Esta é a fase que Nietzsche procura enfocar através do método genealógico.

A origem mais remota da dogmática jurídica encontra-se nos pensamentos de Platão e de Aristóteles, eis que apontam para um mundo do “dever ser”. O Estado ideal platônico, tal como descrito na República, em que três classes (artesãos, guerreiros e governantes)

384 Conforme Anexo A.

trabalhariam de forma altruísta, cada um em sua especialização, para o bem de todos, assim como as descrições aristotélicas de que as leis deveriam ser flexíveis, genéricas como a régua de Lésbos e cumpridas conforme o determinado em Ética a Nicômaco são exemplos de uma visão dogmática do direito. A visão dogmática aponta para um mundo ideal, para um mundo do “dever ser”.

No prefácio de Para Além do Bem e do Mal, Nietzsche indica a sua oposição à filosofia dogmática e localiza a sua fonte: Platão.

“[...] Parece que todas as coisas grandes, para se inscrever no coração da humanidade com suas eternas exigências, tiveram primeiro que vagar pela terra como figuras monstruosas e apavorantes: uma tal caricatura foi a filosofia dogmática, a doutrina vedanta na Ásia e o platonismo na Europa. Não sejamos ingratos para com eles, embora se deva admitir que o pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem em si. [...]”385

Na referida obra, o pensamento nietzscheano parece voltar-se a uma reversão da ética ocidental, cuja origem repousa sobre o platonismo e o cristianismo.

O desenvolvimento e a maturação do conceito de vontade de poder permitem a Nietzsche desenvolver a sua teoria sobre a dupla origem da moral, apresentada pela primeira vez em Humano, demasiado humano e a caracterizar o direito como um fenômeno primitivo e anti-natural, com origem na pré-história do homem, razão pela qual alguns estudiosos de Nietzsche aproximaram o seu pensamento, inclusive a sua concepção de direito às dos sofistas Cálicles, Górgeas e Trasímaco, que sustentavam o argumentum ad baculum, tão repudiado e refutado por Platão.

Nessa reversão, e no que se refere à essência do direito, Nietzsche parece estar muito mais próximo dos sofistas que Platão tanto procurou combater. O relativismo jurídico proposto por Protágoras e Górgeas, assim como a concepção do direito como conveniência do mais forte, sugerida Trasímaco, parecem muito mais próximas da concepção nietzscheana

385 GB/BM, Prólogo.

de direito. Isto porque, para Nietzsche o direito é fruto da força, posto de forma mais correta, é fruto da vontade de poder.

Do sofista Cálicles, Nietzsche parece herdar a noção de direito enquanto fenômeno antinatural, uma vez que a natureza (physis) demonstra que os homens não são iguais. Contudo, a lei, oriunda de uma convenção (nomos), afirma justamente o contrário: os homens são iguais. O direito, seria, assim, um fenômeno anti-natural.

Na obra intitulada Os Sofistas, Guthrie chega a questionar a figura misteriosa de Cálicles:

“Cálicles é figura um tanto misteriosa, pois, além de seu aparecimento como personagem no diálogo de Platão, não deixou nenhum traço na história registrada. Todavia é descrito com soma de pormenores autênticos que é difícil acreditar ser personagem fictícia...” 386

A questão não nos parece ser assim tão relevante, uma vez que o pensamento a ele atribuído por Platão, parece ter influenciado Nietzsche de forma marcante. Na mesma obra Guthrie comenta:

“[...]Doods vê até maior importância na “vigorosa e perturbadora eloqüência que Platão concedeu a Cálicles”, mas não deve ser nenhuma novidade para nós que Platão foi soberbo dramaturgo. Esta eloqüência convenceu o jovem Nietzsche, ao passo que o raciocínio de Sócrates o deixou frio. Isto não é surpreendente, mas pouco relevante. O apóstolo do

Herrenmoral (Moral do senhor), da Wille zur Match (Vontade de poder) e

Unwertung aller Werte (Revolução de todos os valores) não precisava de muito convencimento, pois ele era irmão de sangue de Cálicles, ao passo que Sócrates se tornou para ele, para citar de novo Doods, “ uma nascente de falsa moralidade”. (sic) “387

386 GUTHRIE, W.K.C. Os sofistas.São Paulo: Paulus, 1995, p. 98. 387 Guthrie, 1995, p. 103.

Chamar Nietzsche de irmão de sangue de Cálicles não deixa de ser uma retórica bastante rica, e por um lado verdadeira, pois se Nietzsche realmente via o direito e a moral como fenômenos antinaturais, ao chamar Nietzsche de “irmão de sangue” de Cálicles, a associação com a má fama que os sofistas adquiriam ao longo da história da nossa cultura é inevitável. Isso sem mencionar o curso de Retórica que o jovem professor Nietzsche ministrou no início de 1873.

Já é bastante conhecida a interpretação de que Nietzsche estaria mais próximo da cultura sofística, mais próximo de Trasímaco e da defesa de que a justiça seria decorrente da conveniência do mais forte, o que também é bastante sustentável. Mas se Nietzsche afasta-se da dogmática, nem por isso aproxima-se da conotação dada aos sofistas.

Contudo, conforme expõe Giacoia Jr, a oposição Nietzsche Platão não se resume em reverter o platonismo ou dar um valor maior a tudo aquilo que não foi valorizado por Sócrates e Platão.

“[...] Penso aqui ser fundamental distinguir o Nietzsche de fachada de um Nietzsche mais sutil, de intenções filosóficas abissais. Inverter o platonismo não significa, no fundo, retornar à sofística ou ao realismo cru de Tucídides; significa, antes, levá-lo além e acima de si mesmo, superá-lo e transfigurá-lo numa espécie de grandeza, profundidade e elevação cuja virtude não consiste na violência ou na crueldade da dominação física ou política, mas naquilo que se poderia denominar domínio de si, tornar-se senhor de seus próprios demônios.”388

Aqui a dança de conceitos perfaz o seu mais belo passo, pois Nietzsche se apropria da concepção platônica de filósofos governantes e lança a noção de filósofos legisladores, com a intenção de quebrar a dogmática oriunda da própria filosofia ática, lançando, assim, a sua proposta ética.

No documento NIETZSCHE E O DIREITO DOUTORADO EM FILOSOFIA (páginas 162-166)