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O surgimento do Estado e duas tipologias básicas

No documento NIETZSCHE E O DIREITO DOUTORADO EM FILOSOFIA (páginas 103-108)

CAPÍTULO II QUESTÕES DA CIÊNCIA DO

3.3. O surgimento do Estado e duas tipologias básicas

Naquele universo primitivo, Nietzsche detecta "dois tipos básicos" de animais- homem: o "animal de rebanho" e a "besta loura".252 Sempre importante frisarmos se tratar de duas tipologias básicas e não de duas raças.Esta noção de "besta loura", apresentada por Nietzsche, que deu margem a tantas controvérsias e mal-entendidos, não é uma concepção racial, não se refere tampouco à "raça nórdica" da qual os nazistas vieram a fazer uso. Quando Nietzsche introduz este termo, ele se refere a árabes, japoneses, a romanos e gregos, tanto quanto a tribos teutônicas.253

Para Nietzsche, a grande maioria de animais-homem era de um tipo ordinário, por ele denominado "animal de rebanho". Em decorrência de uma fraqueza instintiva este tipo de animal-homem necessita se unir em hordas para sobreviver, da mesma maneira que todos

250 M/A, I, 20.

251 Conf. AC/AC, 57.

252 Conf. JGB/BM, IX, 260 e GM/GM, I. 253 Kaufmann, 1974, p. 225.

"os doentes, todos os doentios, buscam instintivamente organizar-se em rebanho, na ânsia de livrar-se do surdo desprazer e do sentimento de fraqueza".254

Possivelmente, esses grupos seriam constituídos por raças pastoras, agrupadas por estirpe e comunidades tribais.255 Em Humano, demasiado humano, Nietzsche propôs que o poder da comunidade por estirpe, "ao longo de milênios foi muito mais forte do que o poder da família, e mesmo muito antes deste existir já reinava e ordenava".256 Em Genealogia da

moral Nietzsche considera esses agrupamentos como sendo as primeiras e mais abundantes comunidades sociais de animais-homem.257

Nietzsche efetuou uma clara distinção entre os representantes destas duas tipologias. Nietzsche concebe as "bestas louras" como guerreiros e conquistadores, que impõem de forma ativa a sua vontade de poder sobre aquela grande maioria de homens mais fracos e ordinários. Quando comparadas com os animais de rebanho, as bestas louras se destacam como sendo homens de "uma natureza ainda natural, bárbaros em toda terrível acepção da palavra, homens de rapina, ainda possuidores de energias de vontade e ânsias de poder intactas".258

Este tipo superior de animal-homem, "o que em qualquer nível significa também "as bestas mais inteiras"..."259 eram "necessariamente ativos, não sabiam separar a felicidade da ação - para eles, ser ativo é parte necessária da felicidade".260 Essas bestas agem necessariamente de forma violenta, mesmo porque não se pode exigir que a força se manifeste de uma outra maneira.261

Esse "homem do instinto", também é identificado por Nietzsche como um tipo "nobre",262 uma vez que pode ser encontrado na raiz de todas as raças aristocráticas:

254 GM/GM, III, 18. 255 Conf. JGB/BM, IX, 257. 256 MAI/HHI, VIII, 472. 257 GM/GM, II, 19. 258 JGB/BM, IX, 257. 259 JGB/BM, IX, 257. 260 GM/GM, I, 10. 261 GM/GM, I, 13. 262 JGB/BM, VI, 191.

“[...] Na raiz de todas as raças nobres é difícil não reconhecer o animal de presa, a magnífica besta loura que vagueia ávida de espólios e vitórias; de quando em quando esse cerne oculto necessita de desafogo, o animal tem que sair fora, tem que voltar à selva - nobreza romana, árabe, germânica, japonesa, heróis homéricos, vikings escandinavos: nesta necessidade todos se assemelham. Foram as raças nobres que deixaram na sua esteia a noção de "bárbaro", em toda parte aonde foram[...]"263

Conforme Giacoia Jr., pouco se atentou "para o "Leitmotiv" artístico que empresta seu vigor à dramatização da "blonde bestie" nietzscheana".264 Essa besta loura "age como um fabuloso animal-de-arte, mais semelhante ao centauro que verificável historicamente".265

Através da violência, da pulsão instintiva que possui, manifestação de sua vontade de poder, esta besta é responsável pelo surgimento e pela fixação dos primeiros regramentos, hierarquizações e distanciamentos constitutivos da civilização. Nas palavras de Nietzsche:

"[...] Sua obra consiste em instintivamente criar formas, imprimir formas, eles são os mais involuntários e inconscientes artistas... Eles não sabem o que é culpa, responsabilidade, consideração, esses organizadores natos; eles são regidos por aquele tremendo egoísmo de artista, que tem o olhar de bronze, e já se crê eternamente justificado na "obra", como a mãe no filho [...]"266

Trata-se de uma obra instintiva, portanto isenta de uma prévia concepção racional ou teleológica que o homem empreendeu consigo mesmo. A dimensão artística da vontade de poder, ao assim se manifestar, caracteriza o homem como criatura e também como criador:

"[...] No homem estão unidos criador e criatura: no homem há matéria, fragmento, abundância, lodo, argila, absurdo, caos; mas no homem há

263GM/GM, I, 11.

264 Giacoia Jr., 1989, p. 103.

265 Türcke, 1993, p. 144. Essa convergência de interpretações encontra seu fundamento no pareamento que Nietzsche efetua entre japoneses, romanos, árabes e heróis gregos, daí Türcke assemelhar a besta loura ao centauro.

também criador, escultor, dureza de martelo, deus e espectador e sétimo dia.[...]" 267

É através dessa dimensão artística e ativa que a besta loura criou nomes, Estados e o próprio direito.268

Quando essas bestas louras se unem "isto acontece apenas com vista a uma agressão coletiva da sua vontade de poder, com oposição da consciência individual".269 A alegria na crueldade, a sede de rapinagem, a livre expansão dos instintos cruéis e agressivos, enfim, a vontade de poder, nas suas mais variadas formas e manifestações, se encontram na base dessa ação em conjunto.

Os homens de rebanho, por sua vez, se unem na luta pela sobrevivência, de maneira reativa às bestas louras. Se "os fortes buscam dissociar-se” os homens de rebanho, “os fracos buscam associar-se"270.

Se a besta loura cria nomes, valores e direitos através de uma valoração própria, através das suas manifestações forças oriundas de sua vontade de poder, a valoração e os direitos criados pelo homem de rebanho são reativos, pois este toma como parâmetro negativo um referencial que lhe é externo: a besta loura. Tudo o que for o contrário à besta- loura, possuirá valor.

Sob essa perspectiva, as guerras entre grupos ou tribos se encontram entre as mais antigas práticas da humanidade. As conseqüências dessas práticas guerreiras são as mais variadas possíveis e entre elas encontramos o Estado.

Em Genealogia da Moral, Nietzsche apresenta a sua definição de Estado, que deve ser concebido como um agrupamento desses animais-homem fortes, dessas bestas louras organizadas para conquistar, rapinar e guerrear, que se juntam para poderem se lançar sobre uma população informe e errante:

267 JGB/BM, VI, 225.

268 Conf. JGB/BM, III, 62. 269 Idem.

"Utilizei a palavra "Estado": está claro a que me refiro - algum bando de bestas louras, uma raça de conquistadores e senhores, que, organizada guerreiramente e com força para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade. Deste modo começa surgir o "Estado" na terra".271

O surgimento do primeiro Estado está diretamente ligado, portanto, àquele tipo superior de animais-homem. Organizados dentro de uma sociedade guerreira, estas bestas se impõem "sobre raças mais fracas, mais polidas, mais pacíficas, raças comerciantes ou pastoras, talvez, ou sobre culturas antigas e murchas".272 É, pois, sob o domínio da força e da guerra que nasce o primeiro Estado:

“O Estado mais antigo apareceu... como uma horrível tirania, como uma máquina trituradora que continuou trabalhando deste modo até que aquela matéria bruta feita de povo e semi-animalidade não somente acabou por ficar bem amassada, maleável, como também por ter uma forma [...]" 273

A primeira ação constitutiva do Estado consiste na subjugação de um grupo por outro e na estabilização do grupo dominante através de uma organização coercitiva a todos, possuindo no castigo o principal instrumento de dominação. Dentro dessa perspectiva, os castigos são concebidos por Nietzsche como um dos bastiões através dos quais as comunidades primitivas e o primeiro Estado se assentam e se mantêm protegidos contra os "velhos instintos de liberdade".274

Com a inserção do animal-homem em um Estado tem início a sua transformação em homem e se o Estado se constitui através da força e da subjugação, não há que se falar em contrato social, apenas em um jogo cíclico de forças, próprio da vontade de poder.

271 GM/GM, II, 17.

272 JGB/BM, IX, 257 273 GM/GM, II, 17. 274 GM/GM, II, 16.

No documento NIETZSCHE E O DIREITO DOUTORADO EM FILOSOFIA (páginas 103-108)