• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II QUESTÕES DA CIÊNCIA DO

4.2. O valor da vida

O estudo da ciência do direito também possibilitou a Nietzsche uma transferência de conceitos, qual seja, a abordagem radical da questão sobre o valor da vida. Em O nascimento

da tragédia Nietzsche abordou a questão do valor da vida de forma abreviada e através do pensamento mítico, mais particularmente a partir da lenda do rei Midas e seu encontro com o sábio demônio Sileno. Após perseguí-lo pela floresta e finalmente capturá-lo, o rei Midas pergunta para Sileno qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Sileno permaneceu imóvel e calado por algum tempo. Forçado a falar, entre um riso amarelo, prorrompeu as seguintes palavras:

375 Ibidem, págs. 17 e 18.

“[...] – Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada

ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”. 376

No terceiro prefácio de Cinco prefácios para cinco livros não escritos intitulado O

estado grego, Nietzsche observa que, para os gregos, a “existência não tem nenhum valor em si mesma”.

Naquele ensaio, o filósofo explora de forma privilegiada os diferentes valores da antiga sociedade grega e da sociedade moderna.

Identificada com a vontade de poder, a vida pode ser compreendida como o único parâmetro que, de fato, poderia ser entendido como absoluto e, portanto, único aplicável na crítica da cultura e dos valores ocidentais. É nesse sentido que dentro da filosofia nietzscheana o questionamento sobre o valor da vida adquire importância filosófica quando interpretado como sintoma revelador de uma condição psicológica subjacente:

"[...] A condenação da vida por parte do vivente continua a ser, em última instância, apenas o sintoma de uma determinada espécie de vida: a pergunta, se ela é justa, se ela é injusta, nem sequer é levantada com isso [...]" 377

De igual maneira, os preconceitos e os valores morais também são sintomas na medida em que afirmam ou negam a vida. Dessa forma Nietzsche desenvolve uma linguagem de sinais e de afecções que lhe possibilita estabelecer uma hierarquia de morais.

A questão sobre o valor da vida é abordada de forma privilegiada por Nietzsche em 1888, na obra Crepúsculo dos ídolos:

“[...] Em todos os tempos os grandes sábios sempre fizeram o mesmo juízo sobre a vida: ela não vale nada...Sempre e por toda parte se escutou o

376 GT/NT, 3.

mesmo tom saindo de suas bocas. Um tom cheio de dúvidas, cheio de melancolia, cheio de cansaço de vida, um tom plenamente contrafeito frente a ela.[...]378

Retomando a questão exposta anteriormente em A gaia ciência, Nietzsche enfatiza que o próprio Sócrates disse a Críton, antes de morrer, que devia um galo a Asclépio “curador”. Viver significaria estar doente há muito tempo?379

A diferença é que em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche aborda a questão do valor da vida através de uma perspectiva jurídica, de uma perspectiva epistemológica, de uma perspectiva lógica, de uma perspectiva psicológica, e, por fim, de uma perspectiva fisiológica.

Privilegiando a perspectiva jurídica, Nietzsche aborda a questão sob o ponto de vista próprio do direito processual:

“[...]É preciso estender a mão e apalpar esta surpreendente finesse: o valor da vida não pode ser apreciado. Não pode ser apreciado por nós, viventes, porque um vivo é parte interessada, objeto do litígio e não juiz; e nem um morto, por uma outra razão [...]” 380

Para dirimir a primeira parte dessa questão, tão valorizada pela filosofia ocidental, Nietzsche realiza uma transferência de conceitos aplicando o instituto processual da suspeição da parte ou do juiz. Judicialmente um indivíduo não pode ser parte e julgador ao mesmo tempo, também não pode julgar uma questão sobre a qual possui algum interesse direto no resultado ou no julgamento final. Além disso, na posição de vivente, o indivíduo confundi-se mesmo com o objeto a ser julgado.

É interessante notar que a questão sobre o valor da vida, a qual Nietzsche localiza em “todos os tempos” e entre “os grandes sábios” a iniciar por Sócrates, também pode ser encontrada na polêmica levantada pelo jurista Dühring, em sua obra de 1865 e intitulada Der

378 GD/CI, O problema Sócrates, 1. 379 FW/GC, IV, 340.

Wert des Lebens. Dessa maneira, a polêmica com Dühring assume um caráter ainda mais provocativo, pois Nietzsche o ataca em seu próprio campo de batalha, o terreno jurídico, e com as próprias armas que ele, Dühring, deveria manejar com maior maestria do que Nietzsche, o direito.

A questão do valor da vida é retomada sob uma perspectiva epistemológica, na mesma obra, mas em outro capítulo. Desta vez, Nietzsche chama a atenção para a existência de um limite epistemológico:

“[...] Se precisaria ter uma posição fora da vida, e, por outro lado, conhecê- la tão bem quanto um, quanto muitos, quanto todos que a viveram, para se ter antes de tudo o direito de tocar o problema do valor da vida: razões suficientes para se compreender que esse problema é inacessível para nós.[...]” 381

Como se não bastasse o fato do indivíduo não poder fazer as vezes de juiz, nesta questão do valor da vida, de outro lado, o vivente não possuí um ponto para além desta vida para poder julgá-la. Trata-se, portanto, de um impedimento epistemológico.

Do ponto de vista da lógica, Nietzsche também encontra outro sério impedimento: ainda que uma vida, mesmo a nossa própria vida, tenha sido ruim e cheia de sofrimentos, isto não nos permite efetuar uma conclusão apressada, ou seja, incorrer na falácia do acidente, pois aqui não se aplica um raciocínio indutivo e apressado. Para sanar esta questão seria necessária a aplicação de um raciocínio dedutivo, o que acarreta em outro impedimento epistemológico, pois é impossível conhecer como foi e é a vida de todos os seres humanos, vivos ou mortos.

Dessa maneira, a questão sobre o valor da vida só pode ser abordada pelo viés psicológico e interpretada como sintoma revelador de uma condição fisiológica que lhe é subjacente:

“[...]No entanto, uma condenação da vida por parte do vivente permanece sendo em última instância apenas o sintoma de um tipo determinado de vida: sem que se com isso se pergunte se uma tal condenação tem ou não razão de ser.[...]”382

A perspectiva fisiológica é empregada para posicionar Sócrates e Platão como

“[...] tipos decadentes [...] como sintomas de declínio, como instrumentos da decomposição grega, como falsos gregos, como anti gregos [...]”383

Trata-se de uma retomada de uma antiga questão, proposta inicialmente em O

Nascimento da Tragédia, em 1872, mas que em 1888, em Crepúsculo dos Ídolos, contará com o auxílio da antropologia criminal: Sócrates como exemplo de decadência da cultura helênica e que caracteriza mais uma dança de conceitos dentro do pensamento nietzscheano.

No documento NIETZSCHE E O DIREITO DOUTORADO EM FILOSOFIA (páginas 157-161)