• Nenhum resultado encontrado

Origens da Primeira Extemporânea

CAPÍTULO I A PRIMEIRA EXTEMPORÂNEA E

1.1. Origens da Primeira Extemporânea

A Primeira consideração extemporânea não é propriamente uma crítica e tampouco uma crítica espontânea às questões de direito moderno. O referido ensaio, considerado insignificante por boa parte dos estudiosos de Nietzsche,39 é mais do que uma polêmica é um ataque contra David Strauss e possui origem singular.

38 Deleuze, op.cit., p. 31. Nesse mesmo sentido, MELLO, Nietzsche e a justiça. 39 PLETSCH, Carl. Young Nietzsche. Nova Iorque: The Free Press, 1991, p. 166.

Em 1868 David Strauss teria criticado Richard Wagner por este ter insistido durante anos e persuadido o Rei Ludwig II a demitir Franz Lachner (1803-1890), compositor rival e diretor da orquestra da corte de Munique. Wagner sentiu-se ofendido com a crítica de Strauss.40 Quando o livro de Strauss foi publicado em 1872, Wagner encontrou uma oportunidade para vingar-se e, em novembro de 1872, durante uma caminhada em Strasbourg, pediu a Nietzsche que escrevesse um ensaio no qual Strauss não fosse poupado.41

Na Primeira consideração extemporânea Nietzsche abraça a opinião de Richard e Cósima Wagner, que consideraram a obra de Strauss “decepcionantemente superficial”42 e reduz as abordagens de Strauss à “conversas do senso comum sobre política”, próprias de jornais.43

Pletsch questiona se Wagner utilizou a pena de Nietzsche, ou este se deixou utilizar por Wagner.44 O questionamento de Pletsch possui fundamento. Em carta escrita em 18 de abril de 1873, destinada a Wagner, Nietzsche escreve:

“[...] É verdade que me torno cada dia mais melancólico ao verificar como sou completamente incapaz de contribuir para o seu divertimento e distração [...] Possivelmente, poderei ainda ser capaz de o fazer quando tiver concluído o trabalho que tenho agora em mãos, nomeadamente uma polêmica contra o distinto escritor David Strauss. Acabei exatamente de ler o seu A velha e a nova fé e admirei-me tanto pela estupidez e abundância de lugares comuns do escritor, como do pensador [...]”

Pela carta fica claro que Nietzsche tinha a intenção de agradar Wagner. Por outro lado é bem possível que Nietzsche tenha achado que esta era uma boa oportunidade para adentrar de vez no cenário cultural alemão. Sua obra anterior A origem da tragédia havia causado grandes celeumas, mas restritas ao círculo acadêmico da filologia clássica.

40 JANZ, Curt Paul, Friedrich Nietzsche. Madrid: Alianza Editorial, S.A., 1985, Vol. II, p. 210.

41 Em sua obra intitulada Nietzsche & Wagner, uma lição sobre subjugação, Köhler aborda o relacionamento reverencial que Nietzsche possuía por Wagner, até sua final ruptura. KÖHLER, Joachim. Nietzsche & Wagner

– A Lesson in Subjugation.New Haven: Yale University Press, 1998, 93 a 97. 42 Janz, 1987, Vol. II, p. 210.

43 DS/Co. Ext. I, 8 e 9.

Assim, a pedido de Wagner, para agradá-lo, ou para adentrar no cenário cultural alemão, “ou simplesmente para tomar consciência da própria força”45 na Primeira

Extemporânea Nietzsche ataca não somente a obra, mas a própria pessoa de David Strauss e o faz de várias maneiras. Nietzsche chama Strauss de velho, de “filisteu da cultura” por causa de sua cômoda defesa pelo gosto popular em artes entre os alemães,46 critica o estilo simplório da redação,47 efetua correções conceituais como por exemplo a concepção errônea, mas corrente na época, de que o darwinismo implicaria uma grande lei evolutiva e progressista e critica a sua proposta de um novo evangelho.

No âmbito do direito, Nietzsche escreve de forma superficial e jocosa:

“[...] Quando ouvimos Strauss falar sobre os problemas da vida – seja o problema do casamento, ou da guerra, ou da pena capital – nós ficamos horrorizados com sua total falta de qualquer experiência ou de qualquer visão própria sobre a natureza do homem [...]” 48

Na parte final da Primeira consideração extemporânea, Nietzsche aponta cerca de setenta erros de linguagem cometidos por Strauss que morreu pouco tempo após a publicação do ataque nietzscheano. Foi comentado na ocasião que a crítica de Nietzsche teria abreviado a vida de David Strauss. Em carta do dia 11 de fevereiro de 1874, endereçada ao seu amigo Carl von Gersdorff, Nietzsche escreveu:

“[...] Ontem David Strauss foi enterrado em Ludwigsburg. Espero muito que eu não tenha agravado o fim de sua vida e que ele tenha morrido sem saber de mim [...]” 49

Não foi o caso. Strauss não só leu o ensaio como morreu sem entender o motivo de um ataque pessoal tão feroz e aparentemente gratuito, mesmo porque, oriundo de um jovem desconhecido.50

45 MAI/HDH, VI, 317.

46 Nietzsche chama Strauss de “filisteu da cultura” [Bildungsphilister] durante toda a obra. Segundo Nietzsche, a partir de então, a expressão e o conceito “filisteu da cultura” passaram a integrar a língua e o pensamento alemães. EH/EH, As extemporâneas, 2.

47 DS/Co. Ext. I, 10. 48 DS/Co. Ext. I, 8.

49 Apud, Kaufmann, 1974, p. 135. 50 Pletsch, 1991, p. 166/167.

Posteriormente, ao interpretar sua vida na autobiografia intitulada Ecce homo, Nietzsche narra que a Primeira consideração extemporânea foi um ataque bem sucedido, seja pelo alvo escolhido, o primeiro livre-pensador alemão, seja método escolhido, o ataque, seja pelos seus efeitos. Nas palavras de Nietzsche:

“[...] No fundo, eu havia posto em prática uma máxima de Stendhal: ele aconselhava a fazer a entrada na sociedade com um duelo. E como eu havia escolhido o meu adversário! O primeiro livre-pensador alemão!...De fato, uma forma inteiramente nova de livre-pensar encontrava expressão por vez primeira: até hoje nada me é mais alheio e distante do que toda a espécie européia e americana de “libres penseurs”. Com eles, incorrigíveis mentecaptos e bufões das “idéias modernas”, encontro-me mesmo em mais profunda divergência do que com seus adversários [...]”.51

Na mesma obra, Nietzsche reconheceu que foi um atentado com “êxito extraordinário”, que o “barulho que provocou foi esplêndido em todos os sentidos”52 e que a partir de então seu nome passou a ser reconhecido e respeitado no Reich. Se Nietzsche realmente queria adentrar mais profundamente no cenário cultural da Alemanha da segunda metade do século XIX, de fato conseguiu.

Como se não bastassem os comentários feitos em Ecce Homo, em outra obra do final de sua terceira fase, intitulada Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche voltou a atacar Strauss :

“[...] o homem que se transformou no autor de um evangelho de cervejaria [Bierbank-Evangeliuns] e de uma “nova crença”... Não à toa fez ele seu elogio à “amada loura” em versos. – Fiel até a morte.” 53

Não é a série de argumentos ad hominem encontrados ao longo de quinze anos da obra filosófica de Nietzsche, isto é, de 1873 a 1888, que mais nos chamou a atenção, mas sim o fato de que os mesmos temas relacionados ao direito e abordados por Strauss em A

velha e a nova fé estão presentes em praticamente toda a trajetória do pensamento

51 EH/EH, As extemporâneas, 1. 52 EH/EH, As extemporâneas, 1 e 2. 53 GD/CI, O que falta aos alemães, 2.

nietzscheano, o que nos sugere uma influência de longo termo ou mesmo uma interlocução velada.

Portanto, a crítica aos temas expostos na obra de Strauss não se reduz à Consideração

extemporânea I, mas nela encontramos a primeira manifestação expressa e pública, ainda que muito superficial, de Nietzsche sobre temas do direito enquanto ciência.

Esses temas encontram-se presentes nas duas últimas partes de A velha e a nova fé. Strauss abordou questões diretamente ligadas ao direito e à filosofia do direito e dentre elas destacamos: a) a natureza humana; b) a história da criminologia; c) o perfil do criminoso; d) a economia das penas; e) a pena de morte e a sua aplicação a Miguel Servet por Calvino;54 f) o patriotismo; g) a origem do Estado; h) a origem e os fundamentos da moral.55 O que nos chama demais a atenção, conforme já exposto, é que esses mesmos temas estarão presentes no decorrer de toda a obra nietzscheana.