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Sentimento da santidade do dever, internalização do castigo e rigidez moral

No documento NIETZSCHE E O DIREITO DOUTORADO EM FILOSOFIA (páginas 125-128)

CAPÍTULO II QUESTÕES DA CIÊNCIA DO

3.11. Sentimento da santidade do dever, internalização do castigo e rigidez moral

3.11. Sentimento da santidade do dever, internalização do castigo e rigidez moral

Vimos que o sentimento de culpa que o homem possui diante do credor absoluto não apresenta possibilidades de expiação, pois os impulsos condenados e contrários à vontade divina insistem em se fazer sentir. O desnivelamento existente entre o devedor e o credor divino gera um sentimento de eterna inadimplência, aumentando o sofrimento no interior do indivíduo e esse débito insatisfeito e sem perspectiva de resgate constitui o próprio aguilhão dos sentimentos de culpa e de inferioridade perante o credor absoluto. O homem deixa de ser um devedor no sentido jurídico, para passar a ser um culpado no sentido moral, tornando-se consciente de sua culpa e do caráter irresgatável de sua dívida; o sofrimento daí gerado passa a ser o teor da vida:

“Em toda parte, a incompreensão voluntária do sofrer tornada teor de vida, a reinterpretação do sofrer como sentimento de culpa, medo e castigo; em toda parte o flagelo, o cilício, o corpo malicento, a contrição; em toda parte o auto-suplício do pecador na roda cruel de uma consciência inquieta, morbidamente lasciva; em toda parte o tormento mudo, o pavor extremo, a agonia do coração martirizado, as convulsões de uma felicidade desconhecida, o grito que pede redenção"326

Aqui o castigo é apresentado em sua forma mais sublimada e a vontade de causar dor e sofrimento em si mesmo é transfigurada em sentimento sublime de dever. Essa sublimação atenua a dor causada pela crueldade voltada contra si.

325 GM/GM, II, 22.

Paradoxalmente, a culpa é tanto mais sublime quanto maior profundidade e intensidade a crueldade interior adquire. É esta intensificação da consciência de culpa que servirá de fundamento para a aparição de figuras mais sutis de rigidez moral e para o surgimento da noção de santidade do dever.

Nietzsche observa que, na noção de santidade do dever, ocorre uma fusão das figuras do credor divino e do eterno devedor no interior do próprio homem, fazendo brotar na consciência moral do indivíduo uma noção de dever que é sentida como sagrada e suprema.

Desse modo, são lançados os fundamentos daquilo que mais tarde se transformará na reverência incondicionada da lei moral, independente de qualquer autoridade, coerção externa, promessa de retribuição ou recompensa.327

O caráter ininterrupto e contínuo dos castigos que, durante milênios, o homem infligiu contra si mesmo, tornou possível o surgimento dessa noção de um dever moral sentido como sagrado, fundado em uma norma imperativa que é livremente outorgada pela consciência e cujo cumprimento é exigido pela própria consciência.

Encontraremos como fruto maduro desse processo o indivíduo soberano:

“O homem "livre", o possuidor de uma duradoura e inquebrantável vontade, tem nesta posse a sua medida de valor: olhando para os outros a partir de si, ele honra os seus iguais, os fortes e confiáveis (os que pode prometer) - ou seja, todo aquele que promete como um soberano, de modo raro, com peso e lentidão, e que é avaro com sua confiança, que distingue quando confia, que dá sua palavra como algo seguro, porque sabe que é forte o bastante para mantê-la contra o que for adverso, mesmo "contra o destino" - : do mesmo modo ele reservará o seu pontapé para os débeis doidivanas que prometem quando não podem fazê-lo, e o seu chicote para o mentiroso que quebra a palavra já no instante em que a pronuncia. O orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade, a consciência dessa rara liberdade, desse poder sobre si mesmo e o destino,

327 Giacoia Jr., 1989, p. 121.

desceu nele até sua mais íntima profundeza e tornou-se instinto, instinto dominante - como chamará ele a esse instinto dominante, supondo que necessite de uma palavra para ele? Mas não há dúvida: este homem soberano o chama de sua consciência" 328

O indivíduo soberano tem a posse de si mesmo em qualquer situação ou circunstância, encontra-se acima da noção de livre-arbítrio, e até mesmo das leis morais e legais, mas não para negá-las: ele as tem sublimada em si. O indivíduo soberano é um tipo de homem superior, mas também é uma exceção que nos aponta para uma pós-história.

Mas voltando no tempo, no seio desta quarta transposição das matrizes obrigacionais, a importância do papel dos antigos sacerdotes, chefes das comunidades primitivas, se evidencia, pois foram eles que direcionaram a transformação do homem sofredor em pecador, dos instintos em pecados, e do sofrimento em castigo divino. É através dos sacerdotes que a má consciência adquire a sua dimensão religiosa.329

Um quadro sinótico, elaborado com a mesma arbitrariedade anteriormente empregada, utilizando as transposições da matriz credor/devedor, acima exposta, em combinação com a lógica modal, pode ser assim apresentado:

Natureza das Relações

Origem das relações

Matriz da Relação Tipo de débito

Interpessoais Escambo ou direito comercial primitivo

Mutuamente Credor-devedor

Necessariamente resgatável Entre Estados Escambo, troca,

espoliação Mutuamente Credor-devedor Possivelmente Resgatável Entre o indivíduo e o Estado Necessidade de proteção ou subjugação Mutuamente Credor-devedor Estado é o Credor maior Necessariamente resgatável 328 GM/GM, II, 2.

329 É bem possível que nesta questão Nietzsche tenha sido influenciado pelo pensamento de Heinrich Heine.HEINE, Heinrich. Contribuição á história da religião e filosofia na Alemanha. São Paulo: Iluminuras, 1999.

Entre o indivíduo e seus antepassados Superstição Mutuamente Credor-devedor. O antepassado é o Credor maior Possivelmente resgatável Entre o indivíduo e Deus

Superstição Deus é o maior e único credor Necessariamente irresgatável Entre o Indivíduo e sua própria consciência Introjeção e introspecção O indivíduo é credor e devedor de si mesmo Necessariamente Possível, ou Variável

O direito, por sua vez, é aqui caracterizado como o instrumento criado pelo homem, a partir de sua vontade de poder, para moldar a si mesmo.

Se o direito se encontra na base dos nossos sentimentos morais, assim, como estes, ele, o direito não deixa de ser um fenômeno antinatural, verdadeiros estados de exceção, como se isso não bastasse, nada mais antinatural do que um ser outro livre, alegre e errante encontrar-se a ferros dentro do Estado, sendo credor e devedor de si mesmo.

Dentro do pensamento Nietzscheano, tal como acima exposto, uma concepção jusnaturalista do direito parece estar fora de cogitação.

No documento NIETZSCHE E O DIREITO DOUTORADO EM FILOSOFIA (páginas 125-128)