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Quarta transposição e má consciência

No documento NIETZSCHE E O DIREITO DOUTORADO EM FILOSOFIA (páginas 122-125)

CAPÍTULO II QUESTÕES DA CIÊNCIA DO

3.10. Quarta transposição e má consciência

A quarta e última transposição que Nietzsche apresenta da matriz obrigacional credor/devedor perfaz uma alteração qualitativa desse binômio, juntamente com uma interpenetração da obligatio com o fenômeno da má consciência, já exposto anteriormente.319

Segundo Nietzsche, a má consciência surge quando as bestas louras se lançam sobre o rebanho, encerrando e sujeitando a todos no âmbito da paz, através de uma rígida estrutura social. No seu início a má consciência é o "instinto de liberdade tornado latente à força...reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo...". 320

A hostilidade, a crueldade, o prazer no assalto, na rapinagem, na perseguição e na destruição ficam impedidas de se manifestar externa e livremente, voltando-se para o interior do homem. O efeito principal dessa interiorização é que os antigos instintos do animal- homem, até então livre e errante, passam a ser dirigidos contra ele próprio.321

Voltada para dentro do homem, a vontade de fazer o mal e de causar a dor se apropria dos conceitos e das matrizes decorrentes das relações de direito privado, inclusive da

318 GM/GM, II, 20.

319 “Má consciência” é o equivalente a “consciência pesada”, e talvez este termo seja mesmo a opção de tradução mais adequada e correta, pois é desse fenômeno, que Nietzsche procura dar conta, contudo, o uso dessa tradução mais literal segue uma certa padronização acadêmica.

320 GM/GM, II, 17.

obligatio. As noções de credor, devedor, dívida, castigo e dever são moralizadas e afastadas de seus respectivos conteúdos jurídicos.

A inserção do homem na camisa de força social não extingue os instintos cruéis, que insistem em se fazer sentir no interior do indivíduo. Este, por sua vez, sente-se culpado por senti-los, eis que indesejáveis e condenáveis no âmbito da paz social. Nota-se que a origem desta culpa encontra-se no próprio homem.

Atento ao crescente processo de divinização dos ancestrais, Nietzsche identifica, de outro lado, uma alteração qualitativa na interpretação da figura do credor que, além de possuir uma natureza oposta à do homem, torna-se absoluto e eterno: este credor é Deus. O homem estabelece com Deus uma relação que possui por base as figuras jurídicas das relações obrigacionais:

"[...] Ele (o homem) apreende em "Deus" as últimas antíteses que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis instintos animais, ele reinterpreta esses instintos como culpa em relação a Deus (como inimizade, insurreição, rebelião contra o "Senhor", o "Pai", o progenitor e princípio do mundo), ele se retesa na contradição "Deus" e "Diabo", todo o Não que se diz a si, à natureza, naturalidade, realidade do seu ser, ele o projeta fora de si como um Sim, como algo existente, corpóreo, real, como Deus, como santidade de Deus, como Deus juiz, como Deus verdugo, como Além, como eternidade, como tormento sem fim, como Inferno, como incomensurabilidade do castigo e da culpa"322

Nesta relação com Deus, impregnada de má consciência e temor, o homem sente-se devedor, justamente por sentir em si os condenáveis instintos agressivos. O homem também passa a identificar seus inextirpáveis instintos de crueldade como o mal em si. Considerando que os referidos instintos não deixam de existir, e o desnivelamento existente entre o credor absoluto e o devedor, esta culpa só tende a crescer. Nesta relação o débito é a própria culpa. A vida em paz, por sua vez, deixa de ser reinterpretada como o mais caro e precioso bem legado pelos ancestrais e começa a ser interpretada como um castigo. Diante da figura desse

322 GM/GM, II, 22.

credor eterno e perfeito, até mesmo os ancestrais passam a ser tidos como culpados e devedores, na medida em que são legadores dessa inconveniente carga instintiva.

"[...] Já terão adivinhado o que realmente se passou com tudo isso, e sob tudo isso: essa vontade de se torturar, essa crueldade reprimida do bicho- homem interiorizado, acuado dentro de si mesmo, aprisionado no "Estado" para fins de domesticação, que inventou a má consciência para se fazer mal, depois que a saída mais natural para esse querer-fazer-mal fora bloqueada - esse homem da má consciência se apoderou da suposição religiosa para levar seu martírio à mais horrenda culminância. Uma dívida para com Deus: este pensamento tornou-se para ele um instrumento de suplício" 323

A consciência da culpa adquire a dimensão de dívida permanente e irresgatável, pois é originada pela própria existência do homem. A consciência de uma inferioridade permanente, advinda do sentimento de uma obrigação insatisfeita, transforma-se no aguilhão do morsus conscientiae. De outro lado, é a consciência e o reconhecimento permanentes dessa inferioridade e desse desnível entre credor e devedor que constituem a única forma de culto e de veneração do credor.324

Nietzsche observa que a crescente espiritualização desse processo no interior do homem, acaba afastando o conteúdo jurídico da obrigação, do dever e da obligatio. A figura jurídica da obligatio é transfigurada em dever ou culpa moral. A dívida moral, por sua vez, gera uma necessidade de expiação e o tributo do devedor é justamente a intensificação de sua consciência sobre a sua culpa irresgatável:

"Há uma espécie de loucura da vontade nessa crueldade psíquica, que é simplesmente sem igual: a vontade do homem de sentir-se culpado e desprezível, até ser impossível a expiação, sua vontade de crer-se castigado, sem que o castigo possa jamais equivaler à culpa, sua vontade de infectar e envenenar todo o fundo das coisas com o problema do castigo e da culpa, para de uma vez por todas cortar para si a saída desse labirinto de "idéias

323 GM/GM, II, 22.

fixas", sua vontade de erigir um ideal - o do "santo Deus" - e em vista dele ter a certeza tangível de sua total indignidade"325

Por detrás de todo esse processo, Nietzsche evidencia o papel determinante da crueldade voltada contra o homem, cuja intensificação fará surgir novas formas de rigidez

No documento NIETZSCHE E O DIREITO DOUTORADO EM FILOSOFIA (páginas 122-125)