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A E PIDEMIOLOGIA C LÁSSICA E A E PIDEMIOLOGIA S OCIAL

No documento UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (páginas 30-36)

A complexidade anatômica e funcional do homem, desde as suas apresentações primitivas, possibilitou o seu desenvolvimento na interação com a natureza, a sua adaptação às condições ambientais mais variadas e, na interação com os outros humanos do grupo, propiciou a realização progressiva de novas potencialidades e participação na transformação do meio. A natureza criadora e social do homem permitiu a sua sobrevivência, a expansão e a evolução da espécie e, conseqüentemente, a construção da história humana (RIGOTTO, 1994).

Esta é a perspectiva da filosofia marxista, a qual designou trabalho como a ação do homem sobre a natureza, quer de maneira individual quer coletiva, de forma transformadora e intencional, evoluindo suas potencialidades e modificando-se, com criatividade, liberdade e consciência, para essas realizações (MARX, 1983).

O trabalho está, portanto, determinado pela forma com que ocorrem a produção, a distribuição, as trocas de bens e o consumo dos meios de vida pelas diferentes coletividades, apresentando-se a produção como o ponto fundamental desta relação entre produção e consumo, denominado processo de reprodução social, que é característico da sociedade capitalista (MARX, 1982 apud FACCHINI, 1994a).

A relação entre produção e consumo faz com que o trabalho ocupe lugar central na vida do homem, significando meio de sobrevivência, determinando o acesso aos bens e ao consumo, para si e para o provimento de seus dependentes, da sua família, indicando a posição social que ele ocupa na sociedade, enfim, dando significado à sua vida.

De fato, o trabalho é o grande mediador entre os indivíduos e a natureza e de ambas entre si entre si, para o alcance de seus objetivos. A discussão sobre um modelo que vá ao encontro da saúde no trabalho confronta com um problema humano e social, além de técnico e político (BREILH,1999).

O modo de trabalhar e viver traz, contudo, repercussões para a vida dos trabalhadores, das classes produtivas, representantes de expressivos contingentes populacionais.

A geração de conhecimento pelas relações que se estabelecem entre o trabalho realizado pelos indivíduos e pelos grupos sociais e o reflexo dessa atividade no seu modo de viver e morrer, no seu próprio corpo, na sua consciência, na sua

dimensão psicobiológica, encontra-se no centro da atenção de muitos pesquisadores, especialmente dos epidemiólogos.

A Epidemiologia apresenta-se como a disciplina que tem interesse na análise do processo saúde-doença das populações, no estudo do seu modo de andar a vida (CANGUILHEM, 1995). Os estudiosos da área concentram a atenção em explicar as causas dos desgastes sofridos pelos trabalhadores em decorrência da atividade produtiva, visando estabelecer estratégias que possibilitem minorar ao máximo os agravos.

A busca do conhecimento do grupo de causas das doenças e desgastes variados que acometem os trabalhadores, denominado de inferência causal, data dos mais remotos tempos da história da humanidade, uma vez que amplia a possibilidade do enfrentamento dos referidos problemas de saúde de maneira exitosa, por meio de ações, instrumentos, recursos, métodos e técnicas (FACCHINI, 1994a).

Contudo, importante marco foi o debate a respeito da relação entre a perda da saúde e as condições sociais adversas, que emergiram ainda no Séc. XIX, em meio aos avanços da Revolução Industrial e ao crescimento desordenado das cidades, com o surgimento dos movimentos sociais e revolucionários em busca de soluções para a melhora das condições de vida da população. Nesse período tem destaque a produção científica de John Snow, considerado o pai da Epidemiologia em razão de ter estabelecido as suas bases metodológicas, tendo publicado, em 1854, o título Sobre a

maneira de transmissão da cólera. Snow desenvolveu estudos sobre a transmissão da

cólera evidenciando a determinação social da doença, visto que esta apresentava maior mortalidade entre trabalhadores e desempregados (FONSECA; BERTOLOZZI, 1997).

De fato, a Revolução Industrial marcou a redefinição das práticas médicas e da Epidemiologia, pois o foco da atenção à saúde deixou de ser essencialmente individual e passou a ser considerada no âmbito coletivo da sociedade (BERTOLOZZI; FRACOLLI, 2001).

O referido movimento, acompanhado dos fatores econômicos, políticos e sociais envolvidos, trouxe para a discussão os aspectos relativos à força de trabalho e ao desgaste sofrido pelos trabalhadores, decorrente da atividade desenvolvida, com conseqüências profundas nas condições de saúde e de vida dessa população (FACCHINI, 1994a; ALMEIDA FILHO, 2003).

As condições de trabalho longo, perigoso, penoso e os ambientes agressivos em que este se desenvolvia passaram a produzir agravos à saúde dos trabalhadores, com acidentes graves, mutilantes e fatais, terminando por comprometer a capacidade produtiva dos operários (MENDES; WAISSMANN, 2005).

Nessa conjuntura, emergiram grupos de trabalhadores organizados em grande movimentação popular contra as precárias condições de trabalho e de vida. A Medicina do Trabalho, portanto, teve o objetivo definido de intervir no processo de desgaste do trabalhador, com vistas à sobrevivência e reprodução do processo produtivo, embasado na visão biologicista e individual da atenção à saúde. Esta perspectiva mantém-se até os dias de hoje, tendo evoluído após a Segunda Guerra Mundial para a denominada Saúde Ocupacional, em que a multidisciplinaridade ganhou espaço (GELBCKE, 2002).

Na França, um desses grupos passou a interpretar a Medicina como uma prática política, denominando-a Medicina Social, cuja prática foi voltada para a questão da saúde das coletividades (FACCHINI, 1994a; ALMEIDA FILHO, 2003).

A Medicina Social é a concepção segundo a qual “a saúde é uma questão eminentemente social e política, aliada a uma preocupação sociológica e a um profundo engajamento nos processos de transformação da situação de saúde” (ALMEIDA FLHO, 2003, p. 5).

A crise econômica desencadeada no mundo, em 1929, precipitou um conflito na Medicina vigente. Notoriamente, a sua atuação mostrava-se inoperante no alcance social e não apresentava respostas aos processos culturais, econômicos e políticos, questionando a competência técnica da prática da mesma na época. O caráter social e cultural das doenças e da Medicina, e sua articulação com a estrutura da sociedade, necessitava ser resgatada (ALMEIDA FILHO, 2003).

A Epidemiologia apresentou-se como vertente alternativa do conhecimento, menos ameaçadora politicamente do que a linha assumida pela Medicina Social, sendo atraída para o positivismo das ciências naturais embutido no modelo da Biologia. Entretanto, os epidemiólogos buscaram retornar à sua origem médico-social, privilegiando o caráter coletivo, público, preventivo, social, contrapondo- se ao modelo flexneriano vigente, pautado no modelo da Medicina Cientifica tradicional (ALMEIDA FILHO, 2003).

A Epidemiologia desenvolveu-se trazendo à tona a preocupação não somente com as doenças infectocontagiosas que atingem a população, mas também com aquelas de outras origens e que, igualmente, a afetam, culminando na sistematização do paradigma da História Natural das Doenças, fundamento da Medicina Preventiva proposto pelo pesquisador americano John Ryle, em 1936 (ALMEIDA FILHO, 2003).

Já na década de 50 do Século XX, avanços expressivos deram-se entre os estudiosos que desenvolviam conhecimentos da Epidemiologia e deles se valiam, na concepção da Teoria da Multicausalidade das doenças, em contraposição à visão monocausal (ALMEIDA FILHO, 2003).

A Teoria da Multicausalidade, sob o enfoque de que “o processo saúde-doença é a síntese de múltiplas determinações” (FACCHINI, 1994a, p. 39-40), apresenta a abordagem: do MODELO DA MULTICAUSALIDADE, ou seja, modelo da

simples análise das múltiplas causas das doenças, a do MODELO ECOLÓGICO e a do MODELO DA DETERMINAÇÃO SOCIAL DA DOENÇA.

A Modelo da Multicausalidade apresentou-se como o alicerce da Epidemiologia Clássica hegemônica atual, que busca definir e relacionar fatores ligados às causas das doenças; fundamenta-se no método positivista; neste a sociedade é interpretada como um conjunto de elementos basicamente homogêneos, em que um sistema ecológico equilibrado é considerado normal e a doença emerge na vigência de desequilíbrio (FONSECA; BERTOLOZZI, 1997).

Também é adotado neste modelo o conceito de risco como a probabilidade de determinado grupo populacional desenvolver uma determinada doença ou agravo à saúde, em dado período de tempo. Os indicadores de risco têm o propósito prático de descobrir as ligações que oferecem possibilidade para a prevenção dos agravos à saúde, mesmo reconhecendo que nem sempre é possível estabelecer relação efetiva dos fatores causais com os efeitos apresentados (ALMEIDA FILHO; ROUQUAYROL, 1994; FACCHINI, 1994a; FONSECA; BERTOLOZZI, 1997).

O Modelo Ecológico constitui-se no aprimoramento do Modelo Multicausal para o estudo das intervenções em saúde, realizadas a partir do desenvolvimento da História Natural da Doença, que foi divulgado por Leavell e Clark. Seu objetivo era descrever a realidade, ainda que de maneira aproximada, na perspectiva de visualizar as doenças, buscando também dar a conhecer diferentes

métodos de prevenção e controle (ALMEIDA FILHO; ROUQUAYROL, 1994; FACCHINI, 1994a; FONSECA; BERTOLOZZI, 1997).

O Modelo da Determinação Social do Processo Saúde–Doença teve sua gênese nos movimentos sociais dos anos 60 do Séc. XX, ocorridos nos países industrializados, especialmente Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos e Itália. A Medicina Social ganhou força, com enfoque das ciências sociais na saúde, as quais passaram a dar sustentação à análise da organização do setor e do processo saúde- doença das comunidades (GELBCKE, 2002).

Contrária à explicação meramente biológica deste processo, a Teoria da Determinação Social, alicerce da Epidemiologia Social, fundamenta-se na concepção de que os determinantes da saúde e da doença são parte dos processos de integração do homem na sua forma de trabalhar e na sua forma de viver (BERTOLOZZI; FRACOLLI, 2001).

Na América Latina, a Epidemiologia Social surgiu em um momento de profunda crise econômica da década de 70 do século XX, período marcado pela repressão política e ideológica, pretendendo explicar cientificamente as verdadeiras causas das condições de vida e saúde da população. Tinha como objetivo orientar novas práticas de intervenção em saúde, dedicadas a responder às necessidades e aos interesses das classes sociais menos favorecidas. Apresentou-se, também, como contraposição à Medicina curativa e hospitalocêntrica praticada, com altos custos e baixa eficácia, prática esta que ainda persiste até os nossos dias (FACCHINI, 1994a; FONSECA; BERTOLOZZI, 1997).

Apresentaram destacada produção científica que moldou o conhecimento no campo da Epidemiologia Social, constituindo no novo conhecimento epidemiológico, os programas do Centro de Estudios y Asesoría en Salud — CEAS, no Equador, e da División de Ciências Biológicas y de la Salud, Universidad Autónoma

Metropolitana, Unidad Xochimilco — UAM-X, no México e de alguns centros de pós-

graduação no Brasil (MELO FILHO, 1996). Nesse contexto nasceram os primeiros estudos.

Em síntese, enquanto a Teoria da Multicausalidade concebe uma aproximação com visão idealista do mundo, a Teoria da Determinação Social do Processo Saúde-Doença aproxima-se da visão realista do mesmo. Enquanto a Teoria da Multicausalidade considera que a causa vai reproduzir a mesma conseqüência

sempre, segundo o paradigma positivista, a Teoria da Determinação Social do Processo Saúde-Doença pressupõe uma relação dialética entre dois fenômenos, considerando que eles não se repetem da mesma maneira quando produzidos em condições diferentes e estão sujeitos ao dinamismo dos fatos relacionados ao processo saúde-doença (FONSECA; BERTOLOZZI, 1997).

Dessa forma, o conhecimento epidemiológico é utilizado para explicar o caráter social e histórico do processo saúde-doença da coletividade e a sua relação com o sistema produtivo capitalista. Considera que o perfil patológico e o desgaste sofrido pelo grupo social decorrem das diferentes formas de integração do trabalho no processo produtivo, do padrão de consumo dos bens produzidos, dos diferentes gradientes de saúde e de doença, bem como da diversidade das formas de adaptação do trabalhador à sua realidade e das diferentes maneiras de viver (LAURELL; 1983, 1985; LAURELL; NORIEGA, 1989).

Portanto, a Epidemiologia Social estuda as determinações que ocorrem na vida social e recorre, para isso, ao estudo sistemático: dos processos estruturais da sociedade. Cada grupo social tem condições de vida particulares; perfis específicos de reprodução social, com as correspondentes potencialidades de saúde e sobrevivência, com os riscos de adoecer e morrer típicos (BREILH, 1991; FONSECA; BERTOLOZZI, 1997).

Por todas essas razões, trata-se de importante ferramenta de trabalho para os profissionais de saúde, para o desenvolvimento do conhecimento na área, possibilitando que a realidade da saúde do trabalhador seja revelada e que seja possível o enfrentamento exitoso das problemáticas (FACCHINI, 1994a).

A referida disciplina, em relação aos ATs, tem a propriedade de descrevê-los segundo as variáveis clássicas relacionadas à pessoa, ao tempo e ao lugar, de estimar os riscos da ocorrência dos eventos e mesmo de morrer em decorrência deles, de avaliar a evolução dos indicadores, principalmente quando da vigência de intervenções na realidade e de avaliar os impactos dos acidentes na vida dos envolvidos no que se refere à saúde física e mental (BINDER; ALMEIDA, 2005).

Para tanto, faz-se necessário o esforço conjunto de trabalhadores, técnicos e pesquisadores, bem como das instituições, na busca da construção de indicadores e categorias de análise da determinação da saúde-doença dos trabalhadores e sua relação com o trabalho e, conseqüentemente, de estratégias que

possam possibilitar ao máximo a diminuição dos agravos à saúde (FACCHINI, 1994a; BINDER; ALMEIDA, 2005).

O conhecimento epidemiológico mostra-se como caminho exitoso a ser percorrido na construção do conhecimento a respeito de grupos humanos e, portanto, de grupos definidos de trabalhadores.

No documento UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (páginas 30-36)