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A S AÚDE DO T RABALHADOR E O M ATERIALISMO H ISTÓRICO

No documento UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (páginas 36-41)

O estudo da relação entre saúde e trabalho, com base no referencial explicativo da Teoria da Determinação Social do Processo Saúde-Doença, apresenta- se como um fundamento do campo da Saúde do Trabalhador.

Conforme já apresentado previamente, a Saúde do Trabalhador é originária da América Latina, ainda nos anos 70 do Século XX, em decorrência de movimentos da classe operária que se contrapunham ao modelo de exploração capitalista vigente, tendo a saúde como objeto de reivindicação e o amadurecimento dos conhecimentos da Medicina Social como ponto de sustentação. Nesse contexto, os trabalhadores passaram a defender a sua integridade física, a regulamentação das jornadas de trabalho, salários dignos, direito à remuneração adicional pelo trabalho insalubre, entre outros, gerando, como esperado, respostas do constituído poder capitalista (LAURELL, 1985).

O referido movimento contou com a participação expressiva dos intelectuais dedicados à academia assim como de outros grupos sociais, que realizaram estudos específicos de temáticas relacionadas às classes operárias. Como já registrado, teve destaque a construção teórica apresentada no México, por um grupo de epidemiólogos do Mestrado em Medicina Social da Universidad Autónoma

Metropolitana de Xochimilco (UAM-X), em especial da Dra. Asa Cristina Laurell, que

desenvolveram estudos sobre os efeitos do capitalismo na área da saúde, tendo como centro da indagação teórica o caráter social do processo saúde doença e a sua determinação, a sua causalidade (LAURELL, 1985).

Os novos estudos na área vieram atualizar a Medicina Ocupacional Latino-americana perante a internacional, gerando novos conhecimentos a respeito do processo-saúde-doença dos trabalhadores, respaldados nas ciências sociais e, sobretudo, deixando de contemplar apenas o enfoque do mapeamento dos riscos

profissionais. Teve como tônica considerar o caráter social da doença em substituição ao paradigma dominante que define a saúde como fenômeno biológico individual, no modelo médico-biologicista (LAURELL; 1983, 1985).

Afinal, como vivem e morrem os trabalhadores? Como transcorre o seu modo de andar a vida (CANGUILHEM, 1995)? Quais as formas de viver e de morrer? Quais as repercussões do trabalho desenvolvido pelo homem, no contexto histórico e social, neste processo?

A Saúde do Trabalhador é um campo prioritário para estudos, pela necessidade de agregar os conhecimentos fragmentados existentes sobre o mundo do trabalho e os problemas de saúde da população. Tem o objetivo de compreender a causalidade das doenças ou agravos à saúde, estudar as relações existentes entre a saúde e a atividade laboral, gerar novos conhecimentos e prover informações específicas para resolução imediata ou mediata dos problemas da área, bem como formular políticas para a sua defesa e promoção (LAURELL; 1985, 1993).

São três os pontos de partida para a pesquisa da Saúde dos Trabalhadores:

a Medicina Ocupacional que se ocupa das doenças originadas no trabalho;

a Epidemiologia, inscrita na Medicina Social Latino-americana e dedicada ao estudo da relação entre o trabalho e a saúde-doenca; o enfoque da condição operária, na abordagem das Ciências Sociais (LAURELL,1985).

A Medicina do Trabalho e a Epidemiologia Ocupacional tradicional elegeram como principal problema o estudo dos fatores de risco presentes nos ambientes de trabalho, fatores estes que provocam danos específicos à saúde dos trabalhadores, por meio de mecanismos bem definidos. Nessa perspectiva, empreende- se o método que tenta estabelecer a relação entre o fator de risco e a instalação da doença ou agravo à saúde, sem considerar a historicidade e outras determinantes que participam deste processo; busca, também, eliminar ou diminuir tanto quanto possível os denominados fatores de risco. Essa concepção alicerça-se na corrente da multicausalidade ou na da monocausalidade da doença, condição em que a doença se apresenta clinicamente definida em razão da especificidade existente no trabalho (LAURELL, 1993).

Contudo, todo o arsenal de conhecimentos desenvolvido até então pela Saúde Ocupacional, pautado na demonstração da existência do risco ocupacional, não se mostrava suficiente para a sua eliminação, considerando-se a necessidade de situar este risco laboral no contexto econômico e político (LAURELL; NORIEGA, 1989). Por sua vez, a corrente da Medicina Social adotou o materialismo histórico para compreender a relação existente entre trabalho, saúde e doença nos grupos sociais, sendo o processo de trabalho um de seus determinantes. Esta proposta fundamentou-se no reconhecimento da historicidade do caráter social da saúde-doença e na compreensão do trabalho como um complexo processo social e técnico, que traz o desgaste do trabalhador como conseqüência. Tem como objetivo conhecer as reais dimensões dos problemas que ameaçam a saúde dos trabalhadores e centra esforços em conhecer quais as alterações necessárias aos processos de trabalho para impedir, ao máximo, o desgaste decorrente da atividade laboral (LAURELL; 1985, 1993).

Na corrente do materialismo histórico o processo de produção capitalista diz respeito às relações de produção existentes no processo de trabalho e à maneira como os indivíduos se relacionam no processo de trabalho, que tem caráter histórico (HARNECKER, 1983; MARX, 1983; LAURELL; NORIEGA, 1989).

É composto por dois pólos que podem ser desdobrados, conceitualmente, em processo de trabalho e em processo de valorização, sendo as necessidades do último o determinante principal da maneira como o processo de trabalho apresenta-se e desenvolve-se (LAURELL, 1993).

O processo de trabalho refere-se à transformação da natureza realizada para o homem, visando a obtenção de um objeto útil; nesse contato, o homem transforma o meio e transforma-se a si mesmo, concretizando-se sob formas históricas particulares. Os elementos essenciais do processo de trabalho são: a atividade adequada a um fim determinado, ou seja, o próprio trabalho, o objeto a ser transformado e os instrumentos necessários para esta transformação. Os bens necessários à vida social são produzidos em meio à relação entre os homens ou grupos de homens, requerendo-se esta inter-relação na produção e no consumo (HARNECKER, 1983; MARX, 1983; LAURELL; NORIEGA, 1989).

O processo de trabalho traz repercussões para o corpo e a mente do trabalhador. A análise destes fatores permite a compreensão das relações existentes na dinâmica da realização do trabalho e dos seus desdobramentos (LAURELL, 1993).

Considerando-se que a população é formada por grupos sociais que se diferenciam essencialmente pela posição que ocupam nos meios de produção, o determinante da classe social é a forma como cada qual participa da apropriação e da transformação dos elementos naturais, gerando condições distintas de saúde como conseqüência. Daí a diferenciação de perfis patológicos, de acordo com a articulação entre as forças produtivas e as relações sociais de produção (LAURELL,1983; FACCHINI, 1994b).

Destaca-se que o processo de trabalho realiza-se no campo do conflito entre capital e trabalho e tem a capacidade de gerar estratégias de valorização e resistência (LAURELL, 1993).

Considerando-se que a sociedade capitalista é pautada na lógica do lucro, que se converte no principal motor da produção, o processo de valorização, que é a produção da mais-valia, só pode realizar-se sob condições regulares, por meio do processo de trabalho que significa a produção de bens (LAURELL; NORIEGA, 1989; LAURELL, 1993).

O trabalho é o meio do processo de valorização, de produção da mais-valia. Sendo assim, o processo de trabalho possui o caráter de valorização, de acumulação de capital e o caráter técnico, que se refere aos elementos gerais (objeto, instrumentos e a tecnologia ou a atividade em si ou organização do trabalho) necessários à produção (LAURELL, 1993).

Entende-se por organização do trabalho a maneira como ele é estruturado para a sua realização, desde o seu planejamento até a fase da avaliação. A organização do trabalho caracteriza-se pela divisão das funções e sua mobilidade entre os membros da equipe, bem como a utilização dos meios e materiais do trabalho. Tem como pré-requisito a clareza do que deve ser feito, quem deve realizar cada tarefa, qual o tempo necessário para a sua concretização (PARAGUAY, 2005).

Para o estudo da relação entre saúde e trabalho, e, conseqüentemente, do processo saúde-doença dos trabalhadores é ponto fundamental a análise da categoria processo de produção. Na sociedade capitalista, o processo de produção organiza toda a vida social e essa perspectiva permite o estudo do modo como os grupos sociais trabalham e se desgastam, assim como a análise da forma como eles enfrentam as situações de exploração e lhes resistem, como procedem para recuperar a capacidade laboral para permanecer no processo produtivo

e para adaptar-se a ele. Este complexo da combinação entre os processos de desgaste e de reprodução é denominado de nexo biopsíquico humano (LAURELL; NORIEGA, 1989).

Os conceitos CARGA DE TRABALHO e PROCESSO DE DESGASTE foram

construídos objetivando estabelecer teoricamente as mediações entre o processo de trabalho e o processo saúde-doença das coletividades, o seu desgaste psicobiológico. Cargas de trabalho são definidas como os elementos do processo de trabalho que interagem dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador, desencadeando alterações nos processos biopsíquicos, processos estes que se manifestam como desgastes físicos e psíquicos potenciais ou efetivamente apresentados. Devem, portanto, ser analisados no contexto dos processos de trabalho (LAURELL, 1993; FACCHINI, 1994b).

A análise dessas cargas possibilita a diferenciação dos elementos do processo de trabalho, tanto do objeto e da tecnologia de trabalho, como da sua organização e divisão, que têm a potencialidade de interferir na dinâmica física e psíquica do corpo do trabalhador (LAURELL; NORIEGA, 1989; LAURELL, 1993; FACCHINI, 1994b).

De acordo com as suas características especificas, as cargas de trabalho são classificadas em dois grupos distintos:

as de MATERIALIDADE EXTERNA ao corpo (podem ser identificadas

independentes do corpo do trabalhador), que são as cargas físicas, químicas, biológicas e mecânicas;

as de MATERIALIDADE INTERNA, que são as fisiológicas e psíquicas,

por se estabelecerem por meio do corpo humano (só podem ser pensadas ou identificadas através do corpo do trabalhador) (LAURELL; NORIEGA, 1989; LAURELL, 1993; FACCHINI, 1994b).

As cargas de trabalho apresentam-se como potenciais categorias

analíticas intermediárias para análise do processo de trabalho, por permitirem esclarecer as relações que ocorrem entre a exposição a determinado tipo de atividade laboral e a ocorrência de doenças ou outros agravos à sua saúde (FACCHINI, 1994a).

A substituição do conceito de risco por carga de trabalho deve-se ao fato de que a denominação risco ou fator de risco objetiva identificar possíveis agentes diversos capazes de causar um efeito sobre a saúde, inclusive estimando indicadores probabilísticos de sua ocorrência. Por sua vez, a carga de trabalho é um atributo de um

determinado processo de trabalho, cuja presença ou não no ambiente pode aumentar a probabilidade da ocorrência de deterioração psicobiológica de um grupo de trabalhadores expostos em relação aos não expostos a tal propriedade (FACCHINI, 1994a).

Enquanto a Medicina do Trabalho utiliza a categoria risco para caracterizar os elementos contidos nos ambientes laborais, analisados de maneira isolada e que podem causar danos ao corpo do trabalhador, a categoria carga de trabalho proposta pela Medicina Social, na qual estão compreendidos os riscos particulares da atividade laboral, busca ressaltar os elementos contidos no processo de trabalho, que é dinâmico e interage com o corpo do trabalhador, gerando os processos de adaptação que resultam em desgaste corporal e/ou psíquico.

[...] o conceito de carga possibilita uma análise do processo de trabalho que extrai e sintetiza elementos que determinam de modo importante o nexo biopsíquico da coletividade operária e confere a esta um modo histórico específico de ‘andar a vida’ (LAURELL; NORIEGA, 1989, p. 110).

As cargas de trabalho podem ser caracterizadas, segundo Laurell e Noriega (1989) e Facchini (1994b) como:

No documento UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (páginas 36-41)