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A ECONOMIA SOLIDÁRIA: ALGUNS CONCEITOS E SUAS MULTIPLICIDADES DE

4 AMBIGÜIDADE NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE GRUPOS NA SOCIEDADE

5.4 A ECONOMIA SOLIDÁRIA: ALGUNS CONCEITOS E SUAS MULTIPLICIDADES DE

Os conceitos que integram a proposta da Economia Solidária e, conseqüentemente, dos projetos formados nesta perspectiva, se fundamentam em conceitos complexos como o de: emancipação, autogestão, autonomia, solidariedade, utopia, entre outros.

Alguns conceitos importantes são freqüentemente debatidos entre os teóricos acerca do seu significado para a Economia Solidária e trazem polêmicas tanto para o debate acadêmico quanto para a prática da cooperativa estudada, que será analisada a partir da perspectiva da ambigüidade decorrente das multiplicidades de sentidos que envolvem cada conceito.

Um destes exemplos de multiplicidade de sentidos se encontra na denominação do projeto “economia solidária” pois existe uma diversidade de definição e usos do termo solidariedade em diferentes contextos e práticas sociais. Pode-se encontrar o termo solidariedade sendo utilizado associado ao atendimento de vítimas, à dependência entre indivíduos e grupos, aos laços que unem profissionais e adeptos religiosos, entre aqueles que buscam manter seu grupo com mais poder, com relação aos excluídos e aos perseguidos ou discriminados.

379 ARAÚJO, Herton Ellery; SILVA, Frederico A. Barbosa da. Economia solidária: um novo paradigma de política pública?

Mercado de trabalho, n. 28, p. 29-37, set. 2005. p. 04. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/pub/bcmt/mt_28f.pdf>.

Demo380 chama a atenção para o risco de que a ambigüidade em torno do termo

solidariedade torne-a um efeito de poder, submetendo a proposta de transformação à reprodução da desigualdade e da exploração.

A solidariedade possui uma multiplicidade de sentidos nos mais diversos contextos sociais, que segundo Assmann e Sung381 permitem aos grupos praticarem uma conveniente pluralidade de princípios organizativos da sociabilidade humana. Entretanto, para estes autores, é importante diferenciar a solidariedade transitória da solidariedade estrutural. Na primeira as questões de ideologia, visão de mundo e concepção de projeto não são importantes pois a ação se concentra no atendimento imediato a vítimas e é interrompida logo em seguida. A solidariedade estrutural busca soluções ético-políticas e fazem frente a questões políticas, sociais, culturais, religiosas e econômicas que obstacularizam o cumprimento de direitos sociais e humanos.

No site382 do Programa de Economia Solidária o termo é assim definido:

o caráter de solidariedade nos empreendimentos é expresso em diferentes dimensões: na justa distribuição dos resultados alcançados; nas oportunidades que levam ao desenvolvimento de capacidades e da melhoria das condições de vida dos participantes; no compromisso com um meio ambiente saudável; nas relações que se estabelecem com a comunidade local; na participação ativa nos processos de desenvolvimento sustentável de base territorial, regional e nacional; nas relações com os outros movimentos sociais e populares de caráter emancipatório; na preocupação com o bem estar dos trabalhadores e consumidores; e no respeito aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras.

De acordo com esta definição pode-se concluir que a solidariedade na Economia Solidária se refere à definição de França Filho,383 uma solidariedade que resulta de uma escolha, de uma

iniciativa coletiva para definí-la como referencia comum nas práticas dos grupos, e portanto, uma forma de solidariedade que faz

alusão à iniciativa cidadã, em oposição, simultaneamente, às formas abstratas de solidariedade praticadas historicamente pelo Estado, de um lado e às formas tradicionais de solidariedade marcadas pelo caráter comunitário de outro. Nesse sentido, segundo nossa hipótese, estamos diante de um fenômeno efetivamente inédito, pois essas experiências não parecem orientar-se segundo o registro de uma sociabilidade típica da Gemeinsshaft (comunidade), nem pelo princípio comunitário (Tönnies) – ou seja, uma socialidade comunitária (Weber) -, nem tampouco por uma solidariedade mecânica características de sociedades tradicionais (Durkheim). De fato, se um tipo de dinâmica comunitária marca essas experiências, sua expressão não parece identificar-se com o registro de um comunitarismo herdado, na medida em que ela emana de um comunitarismo muito mais escolhido como referência coletiva a um bem comum do que imposto pelo costume.384

380 DEMO, Pedro. Solidariedade como efeito de poder. São Paulo: Cortez, 2002.

381 ASSMANN, Hugo; SUNG, Jung Mo. Competência e sensibilidade solidária: educar para esperança. Petrópolis: Vozes, 2000.

382 BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Secretaria Nacional de Economia Solidária. O que é economia solidária. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/ecosolidaria_oque.asp>. Acesso em: 02 jan. 2010. p. 04.

383 FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de. terceiro setor, economia social, economia solidária e economia popular: traçando fronteiras conceituais. Bahia: Análise & Dados, v. 12, n. 01, jul. 2002. p. 13. Disponível em:

<http://wiki.dcc.ufba.br/pub/PSL/EconomiaSolidaria/EconomiaSolidria-FronteirasConceituais.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2009.

384 FRANÇA FILHO, Genauto Carvalho de. terceiro setor, economia social, economia solidária e economia popular: traçando fronteiras conceituais. Bahia: Análise & Dados, v. 12, n. 01, jul. 2002. p. 14. Disponível em:

<http://wiki.dcc.ufba.br/pub/PSL/EconomiaSolidaria/EconomiaSolidria-FronteirasConceituais.pdf>. Acesso em: 02 jul. 2009.

A proposta da Economia Solidária busca a emancipação do trabalhador das práticas de exploração e dominação do sistema nada solidário do capitalismo. Segundo Santos385 as

cooperativas são uma destas alternativas que “não apontam apenas para a remuneração igualitária dos trabalhadores-donos das empresas cooperativas, mas também para criação de formas de sociabilidade solidárias baseadas no trabalho colaborativo e na participação democrática na tomada de decisões sobre as empresas”.

Para Paul Singer386 a solidariedade é

um sentimento de identificação com um outro, que pode chegar a ponto de fundir subjetivamente “num só” pessoas e agrupamentos interligados por ela. É um sentimento que motiva comportamentos solidários, ou seja, ações de ajuda e apoio recíprocas. A solidariedade-sentimento origina a solidariedade-ação e é esta última que tem significado político, social e econômico.

O conceito de autogestão parece assim defendido no Projeto da Economia Solidária da Senaes que explicita que o princípio “tem por desafio principal a criação de formas diretas de poder popular em vários níveis: no campo industrial e profissional, ao desenvolver formas de democracia interna nos locais de trabalho associadas a novas formas do processo democrático na economia, na educação, na política social e na cultura”.387

Segundo Singer388 na autogestão

estabelecem-se hierarquias de coordenadores, encarregados ou gestores, cujo funcionamento é o oposto do de seus congêneres capitalistas. As ordens e instruções devem fluir de baixo para cima e as demandas e informações de cima para baixo. Os níveis mais altos, na autogestão, são delegados pelos mais baixos e responsáveis perante os mesmos.

Desta forma, a autogestão implica em um processo de coletivização dos meios de produção, com um conhecimento horizontal acerca do planejamento e execução das atividades, definidas por seus integrantes a fim de reafirmar sua autodeterminação. As estratégias de tomada de decisão podem incluir rodízio das tarefas e alternância na coordenação das atividades, eleição de comissões e conselhos deliberativos que possibilitem o encaminhamento das decisões feitas no coletivo e escolha de representantes eleitos.

Entretanto, para Domingues389 “reproduzem-se na cooperativa as relações de assimetria e desigualdades inerentes à estrutura social brasileira, havendo a produção do discurso da “competência”, de mando e da obediência de acordo com saberes e hierarquias organizacionais, o que coloca obstáculos à construção da autonomia dentro da cooperativa.

385 SANTOS, Boaventura de Sousa. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 29.

386 SINGER, Paul. Desenvolvendo confiança e solidariedade: as instituições necessárias. In: CICLO DE SEMINÁRIOS: BRASIL EM DESENVOLVIMENTO, 2003, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: UFRJ, 2003. Disponível em:

<http://www.ie.ufrj.br/desenvolvimento/pdfs/desenvolvendo_confianca_e_solidariedade_as_instituicoes_necessarias.pdf> . Acesso em: 02 jun. de 2009.

387 NASCIMENTO, Claudio. A autogestão e o “novo cooperativismo”. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE AUTOGESTÃO, 2003, Joinville, Santa Catarina. Anais... Brasília: MTE, 2003. p. 6. Disponível em:

<http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/prog_autogestaocooperativismo.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2009. 388 SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo: Perseu Abramo, 2002. p. 18.

389 DOMINGUES JUNIOR, Paulo Lourenço. Estado, políticas públicas e cooperativismo. Revista Libertas, Juiz de Fora, v. 1, n. 1, p.118 -131, dez. 2006. p. 25. Disponível em: <http://www.ufjf.br/revistalibertas/files/2010/01/artigo06_1.pdf> . Acesso em: 01 dez. 2009.

Segundo Albuquerque390 a autogestão é um conceito ambíguo que deve ser pensado

vinculado à “reapropriação da sua força produtiva geral, não só a promoção do desenvolvimento do indivíduo como sujeito social, mas também ressignificar as práticas sociais relacionadas à organização do trabalho associando-as à idéia-força de mudança radical e de transformação da sociedade brasileira”.

Azambuja,391 entretanto, critica o caráter formativo e educativo da Economia Solidária, defendendo que o significado

dessas iniciativas não seria propriamente o de que elas representariam "meios" capazes de operar uma transformação comportamental e moral nos trabalhadores, fazendo-os reproduzir princípios, valores e uma ordem moral que se pretende alternativa à capitalista; mas, no nosso entender, o significado de tais iniciativas seria muito mais o de oferecer aos trabalhadores as condições de serem produtores dos valores e princípios pelos quais justificaram e conduziram seu trabalho. Talvez este seja o sentido propriamente dito da palavra autogestão, isto é, a de gerir seu trabalho conforme os seus próprios valores, sejam eles quais sejam.

Na discussão acerca da forma de condução da tomada de decisões nas cooperativas, Eid e Chiariello 392 descrevem as formas de divisão dos ganhos pelos trabalhadores, um ponto crítico na estruturação dos projetos cooperativistas. Entre estas modalidades temos a distribuição igualitária entre os integrantes,393 remuneração por dias trabalhados,394 remuneração por horas trabalhadas,395 remuneração por hora e por produtividade.396

Em vista da diversidade na forma de condução da gestão e na forma de distribuição dos ganhos, os grupos têm como tarefa decidir coletivamente acerca das escolhas que precisam ser consensuadas para que o projeto seja implementado. A autonomia individual é restrita pelas condições socioeconômicas impostas àqueles que vêem restringidas suas formas de inserção na sociedade. Para Simmel397 “os problemas mais profundos da vida moderna têm sua fonte na pretensão do indivíduo de afirmar sua autonomia e a especificidade de sua existência diante dos excessos de poder da sociedade, da herança histórica, da cultura e da técnica provenientes do

390 ALBUQUERQUE, Paulo. Autogestão. In: CATTANI, Antonio David (Org.). A outra economia. Porto Alegre: Veraz Editores, 2003. p. 20-25.

391 AZAMBUJA, Lucas Rodrigues. Os valores da economia solidária. Sociologias, n. 21, jun. 2009 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222009000100012&lng=en&nrm=iso> . Acesso em: 14 ago. 2009.

392 EID, Farid; CHIARIELLO, Caio Luis. Organização do trabalho e processo decisório em cooperativas populares e tradicionais: estudo de casos em duas cooperativas paranaenses. Revista de Economia, v. 35, n. 2, p. 61-81, maio/ago. 2009. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/economia/article/viewFile/16702/11101>. Acesso em: 02 set. 2009.

393 O QUE é economia solidária? São Paulo: Unisol, [20--]. Disponível em:

<http://www.unisolbrasil.org.br/conteudos/saiba-mais/economia-solidaria.wt>. Acesso em: 02 set. 2009.

394 TAUILE, José Ricardo; RODRIGUES, Huberlan. Economia solidária e autogestão: a criação e re-criação de trabalho e renda. São Paulo: Unitrabalho: [20--]. p. 9. Disponível em:

<http://www.unitrabalho.org.br/paginas/noticias/artigos/pdf/economiasolidaria.pdf>. Acesso em: 02 set. 2009.

395 PIRES, Aline Suelen. O trabalho em uma cooperativa incubada: percepções sobre a economia solidária e as relações de gênero. In: ENCONTRO DA ABET, 11., 2009, Campinas. Anais... Campinas: Unicamp, 2009. Disponível em: <http://starline.dnsalias.com:8080/abet/arquivos/15_6_2009_17_8_41.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2010.

396 Apud EID, Farid; CHIARIELLO, Caio Luis. Organização do trabalho e processo decisório em cooperativas populares e tradicionais: estudo de casos em duas cooperativas paranaenses. Revista de Economia, v. 35, n. 2, p. 61-81, maio/ago. 2009. Disponível em: <http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/economia/article/viewFile/16702/11101>. Acesso em: 02 set. 2009.

exterior”. O projeto da cooperativa aparece como uma forma de exercer esta autonomia, uma autonomia nos processos grupais.

A autonomia de cada cooperativa está circunscrita à atuação de seus membros nos processos decisórios, entretanto, segundo Harder398 “se sob o ponto de vista da relação entre as cooperativas e seus associados à esfera de autonomia encontra-se ampliada (considerando-se as características específicas dessas sociedades), sob o ponto de vista legal há um claro constrangimento”. O regulamento jurídico que recai sobre as cooperativas desconsidera, segundo Harder, o caráter democrático das cooperativas, com relações baseadas em igualdade na participação econômica, e no redimensionamento que implica na separação entre público e privado399. Por ser uma autonomia que exige a participação coletiva, ela se configura relacionada

aos interesses coletivos e ao princípio de igualdade, e não ao interesse individual e ao princípio de liberdade.

A proposta da concretização de projetos baseados na Economia Solidária na forma de cooperativas juridicamente criadas, esbarra na dificuldade em delimitar uma diferenciação entre estes projetos sociais e as cooperativas capitalistas. Segundo o relatório publicado no site da Senaes por Tauile, Rodrigues et al400 “a questão do marco legal dos empreendimentos autogestionários é debatida com muita atenção (e até apreensão) nos fóruns existentes, seja na esfera governamental e pública seja na sociedade civil. E, nesses debates, até o dia de hoje, não encontramos respostas sistemáticas e concretas acerca de instrumentos e ações objetivas pelos órgãos competentes e adequados, como sabemos existir para as sociedades de capital.”.

Para Rios401 “o rótulo jurídico confunde pois, mais do que identifica, o que é cooperativismo. Sobretudo se se quiser distinguir o cooperativismo conservador do renovador. O cooperativismo dos grandes daquele dos pequenos. O cooperativismo dos latifundiários daquele dos sem-terra. O cooperativismo capitalista, do de perfil socialista”.

Portanto, é preciso compreender que apenas a conceituação formal das cooperativas esvazia a experiência cooperativa. Segundo Enriquez402 “centrar-se nas características formais da

organização (adesão livre, procedimento democrático de eleição) impede freqüentemente a percepção dos processos reais (afetivos e sociais) que as afetam. A forma cooperativa torna-se, então, uma concha vazia”.

Segundo Lisboa403

398 HARDER, Eduardo. A definição da autonomia privada nas sociedades cooperativas: função social e princípio da democracia. 2005. Dissertação (Mestrado em Direito)- Departamento de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005. p.119.

399 Questão a ser debatida no capítulo seguinte.

400 TAUILE, José Ricardo et al. Referências conceituais para ações integradas: uma tipologia da autogestão:

cooperativas e empreeendimentos de produção industrial autogestionários provenientes de massas falidas ou em estado pré-falimentar. Brasília: MTE, 2005. p. 133. Disponível em: <http://www.mte.gov.br/ecosolidaria/pub_tipologias2.pdf>. Acesso em: 02 fev. 2010.

401 RIOS, G. S. L. O que é cooperativismo? 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 60. 402 ENRIQUEZ, E. Vida psíquica e organização. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 13.

403 LISBOA, Armando de Melo. Economia solidária e autogestão: imprecisões e limites. Revista de Administração de

Empresas, v. 45, n. 3, p. 109–115, jul./set. 2005. Disponível em:

para efetivamente se configurar uma outra economia não é suficiente apenas a organização autogestionária. A economia solidária não diz respeito somente à processos organizativos intra-econômicos, nem aponta somente para o Estado ou para processos políticos, em que pese estes serem fundamentais para a socioeconomia solidária. Esta é outra característica bem conhecida da economia solidária enquanto um movimento social: tratam-se de atividades que simultaneamente articulam tanto a luta política quanto a geração de renda, repondo a economia política negada pelos neoclássicos na revolução marginalista.

5.5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A ECONOMIA SOLIDÁRIA COMO PROPOSTA DE DESENVOLVIMENTO E POLÍTICA PÚBLICA

O ideal que impulsiona a Economia Solidária parece estar relacionado à utopia da modernidade que busca o ideal de uma sociedade mundial, baseada em valores igualitários e autogestionários, integrando diferentes propostas presentes na modernidade: o ideal individualizante, que os homens tenham valor por si mesmos; o ideal da autonomia econômica onde todos possam sobreviver do próprio trabalho; o ideal da autonomia política, no qual todos possam exercer uma autodeterminação efetiva; o ideal cultural no qual todos possam pensar por si mesmos.404

A Economia Solidária parece ser uma proposta que se integra ao projeto da modernidade, que busca concretizar valores e preceitos em uma sociedade onde dominam os “imperativos de uma modernidade funcional globalizada”, porém para Rouanet405 a diferença está em garantir um

espaço para a utopia e a crítica, processos que parecem estar se estruturando na Economia Solidária. Se fosse usar a metáfora da incubação, ela estaria neste processo de articulação de seus membros, de suas parcerias, de sua unidade enquanto projeto político, de fundação de novas iniciativas e reflexões teóricas, considerando não somente os fatos, a perspectiva empírica, mas o horizonte de possibilidade da Economia Solidária enquanto uma nova proposta de ação social com base em um paradigma democrático, buscando a justiça social e o resgate de um projeto coletivo. Para refletir acerca do lugar da Economia Solidária é preciso compreender como se definiu historicamente o lugar das políticas públicas, especialmente das políticas sociais, na ação do Estado, especialmente na sua concepção de desenvolvimento para o Brasil e as ambigüidades debatidas neste contexto.

Na sociedade capitalista esta diferenciação está presente nas lutas de poder de interesses de grupos economicamente distintos. Entretanto, o sistema jurídico-político, ao pensar políticas de governo reflete não a igualdade, mas a diferença de tratamento dado a diferentes grupos, estruturando políticas econômicas de base que atendem a grupos hegemônicos e políticas “marginais” a grupos economicamente vulneráveis. Estas políticas refletem idéias de desenvolvimento, assim como a concepção de sociedade.

404 ROUANET, Sérgio Paulo. As duas modernidades. In: SCHULER, Fernando; SILVA, Juremir Machado da (Orgs.).

Metamorfoses da cultura. Porto Alegre: Sulina, 2006. p.110.

405 ROUANET, Sérgio Paulo. As duas modernidades. In: SCHULER, Fernando; SILVA, Juremir Machado da (Orgs.).

A Economia Solidária enfrenta uma multiplicidade de sentidos e práticas no contexto das políticas públicas, como a luta de poder inerente ao processo de fortalecimento de uma sociedade com maior distribuição de renda em um contexto capitalista. As ambigüidades acerca da “questão social” e a concepção de desenvolvimento que estão como pano de fundo das políticas públicas, impactam, em última instância, na proposta da Economia Solidária, com diferentes iniciativas e práticas advindas do Estado.

Um dos exemplos destas ambigüidades é a avaliação das iniciativas em termos da dicotomia reforma e revolução que Gorz406 acredita ser uma dicotomia a ser repensada, para começarmos a pensar em “reformas revolucionárias”, conceito que em si mesmo carrega uma ambigüidade, mas que pode apoiar um outro ponto de vista acerca das políticas públicas que iniciam interligadas ao sistema capitalista, mas que no entanto, valorizam e desenvolvem uma proposta de organização social e econômica transformadora das práticas capitalistas de dominação e exploração.

Dicotomizações e segregações são indicativas de relações de luta de poder desiguais, de coerções e dominação. Pensar a ambigüidade é pensar este espaço indiferenciado onde as relações de poder estão mais dissipadas e pode-se assim perceber como a ambigüidade nas políticas sociais se revela por meio da indiferenciação entre aqueles que antes eram opostos. Os discursos que se indiferenciam nestes espaços políticos formam um contexto social potencializador das dinâmicas entre diferentes sentidos, levando a pensar o processo de mudança como um adensamento dos sentidos onde ficam ainda mais evidentes seus movimentos de reprodução e transformação das relações sociais e políticas. Estas relações de poder, ora dissipadas ora concentradas, acontecem internamente no grupo, nas parcerias e na luta por espaço político com ao atores hegemônicos.

Barbiero407 acredita que “o desprendimento de uma matriz teórica “americanizante” e uma aproximação da análise de nossa situação pela ambigüidade pode nos fornecer instrumentos de um outro olhar para o Brasil, certamente, mais próximo da realidade”. Para o autor, as formas dicotômicas e dualistas que predominaram no pensamento social de alguns autores latino- americanos se devem a uma sujeição a modelos paradigmáticos de linhas de pensamento desenvolvidas em sociedades cujos padrões de racionalidade e modelos organizacionais foram