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AMBIGUIDADE E INTEGRAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DE GRUPOS

4 AMBIGÜIDADE NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DE GRUPOS NA SOCIEDADE

4.2. AMBIGUIDADE E INTEGRAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DE GRUPOS

A partir destas considerações de Simmel acerca da unificação de elementos divergentes, pode-se pensar ambigüidade como uma forma de dar coesão para a organização do grupo, sua identidade e projeto coletivo minimizando os sentidos que se antagonizam. A unificação da proposta é possível ao articular e unificar objetivos que apontam para direções muitas vezes diferentes, mas que não se configuram de maneira excludente, e sim complementares. Portanto, a busca de unidade no conflito pode ser potencializadora de ambigüidades quando a dinâmica de unificação lida com sentidos que se apresentam para seus sujeitos como antagônicos e potencialmente causadores de rupturas.

A ambigüidade pode ser compreendida como expressão de conflitos latentes entre concepções e fundamentações que embasam os vínculos nesta multiplicidade. E é a partir desta configuração múltipla que a ambigüidade se torna um ponto de referência expressiva no qual é possível, a partir de um determinado contexto, analisar as diferenças presentes na multiplicidade de sentidos discursivos dos membros de um grupo, mas que não são explicitadas e negociadas, mantendo os conflitos constantes e sempre latentes.

Simmel200 considera que “el entendimiento humano no es más que aquello que pone los

contenidos dados en relaciones tales, que cada uno sólo tiene su posición y cualidades por otro”. Assim, aqueles sentidos latentes poderão, ao serem explicitados, serem colocados em relação a outros sentidos, e então diferenciados para serem integrados ou não no projeto comum do grupo. Os sentidos não se referenciam apenas a si mesmos e aos outros, mas se demanda que tenha como base um sentido comum. Algo que dá referencia a esta interpretação do mundo e que possibilita esta integração. Quando o grupo trabalha com sentidos relativos, é preciso diferenciar os sentidos que se autodeterminam, e as referências nas quais se formam sua unificação. Assim, alguns pressupostos estão explicitamente ou implicitamente presentes nestas interações e interpretações, precisando ser diferenciados entre si para que compreenda a multiplicidade e pluralidade dos sentidos que se inter-relacionam no discurso dos membros do grupo.

Os membros que participam dos projetos construídos na perspectiva da Economia Solidária freqüentemente estabelecem vínculos sociais fundados com base em “certos impulsos ou em função de certos propósitos”201 que podem vir de outras redes relacionais ou modelos de organização. Isto significa que, ao analisar a ambigüidade, é preciso considerar qual é o fundamento que organiza estes sentidos para os indivíduos que interagem e constroem estes diferentes sentidos em diferentes vínculos sociais, e como os sentidos que estão fundados na proposta da Economia Solidária são incorporados ao virem de outras formas de sociação e modelos de organização do trabalho.

200 SIMMEL, G. Schopenhauer y Nietzsche. Versión Castellana traduzida por José R. Pérez-Bances. Francisco Beltrán: Librería Española Y Extranjera; Liberalos Libros, 1990. p.18.

201 SIMMEL, G. Sociabilidade: um exemplo da sociologia pura ou formal. In: MORAIS FILHO, Evaristo (Org.). George

Segundo Simmel202 “a sociedade é a ação recíproca entre os indivíduos, então a descrição

das formas dessas ações recíprocas constituiria a tarefa da ciência social no sentido mais próprio e rigoroso de “sociedade””. A descrição destas relações implica em descrever os modos como se transformam ações isoladas em interações e modo de viver entre si. A ambigüidade, que foi estudada como fenômeno isolado e individual na linguagem e na filosofia, passou a ser analisada como fenômeno social, ao ser compreendida de forma contextualizada, como uma ação entre os indivíduos. Embora os interesses sejam os mesmos, a forma de sociação pode ser diferente, e os diferentes conteúdos podem ser interrogados acerca de seu sentido na forma de sociação que se integrou em uma unidade. Esta “unidade precisa ser tratada como se ela fosse um sujeito com vida, leis e características internas próprias”.203 Algumas formas diferenciadas se caracterizam

como socialidades primárias, com os membros da família, por laços de parentesco, de amizade ou de vizinhança, e em socialidades secundárias com parceiros, outras organizações, instituições, enfim, entre o Mercado e o Estado.204

Segundo Soares e Silva205 a sociedade complexa permite “a construção de subjetividades no espaço urbano, no qual múltiplos papéis são demandados, constituindo-se, assim, um sujeito multifacetado, imerso em múltiplos e diferentes contextos de sociabilidade, demarcando espaços e formas distintas de vivência das relações e dos sentimentos”.

Na Economia Solidária seus participantes freqüentemente se apóiam em modelos e metáforas, como comparar a cooperativa “como uma família”, “como uma empresa”, “como um grupo da igreja”, para se referir e buscar definir esta experiência múltipla e ambígua. A metáfora da família traz sentidos de irmandade entre os membros, com relações afetivas e emocionais muito presentes, assim como a empresa remete à organização heterogestionária e ao processo produtivo vivenciado anteriormente, e a igreja traz sentidos como o da crença e da fé em conseguir algo melhor.

Os grupos formados a partir da proposta da Economia Solidária trazem diferentes elementos que interagem entre si, em conflito ou em complementaridade. A intensidade destas interações revela o potencial agregador dos projetos e também seus desafios para unificar os diferentes laços que se formam no grupo. Para Simmel, um conceito importante para pensar a relação indivíduo-sociedade, é o conceito de interação:

A sociedade existe onde quer que vários indivíduos entrem em interação. Esta ação recíproca se produz sempre por determinados instintos (Trieben) ou para determinados fins. Instintos eróticos, religiosos ou simplesmente sociais; fins de defesa ou de ataque, de jogo ou de ganho, de ajuda ou de instrução, estes e infinitos outros fazem com que o homem se encontre num estado de convivência com outros homens, com ações a favor deles, em conjunto com eles, contra eles, em correlação de circunstâncias com eles. Numa palavra, que exerça sobre eles e por sua vez as receba deles. Essas interações significam que os indivíduos, nos quais se encontram aqueles instintos e fins, foram por eles levados

202 SIMMEL, G. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 33. 203 SIMMEL, G. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 40.

204 SIMMEL, G. Conflito e estrutura do grupo. In: MORAIS FILHO, Evaristo de (Org.). George Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 150-164.

205 SOARES, Leôncio; SILVA, Isabel de Oliveira e (Orgs.). Sujeitos da educação e processos de sociabilidade: os sentidos da experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

a unir-se, convertendo-se em uma unidade, numa “sociedade”. Pois unidade em sentido empírico nada mais é do que interação de elementos.206

Os fundamentos teóricos de Simmel207 norteiam a compreensão acerca do fenômeno da sociabilidade que ocorrem a partir das interações entre os indivíduos. Quando estas interações se distanciam do conteúdo para se apoiarem na forma têm-se os elementos para compreender o fenômeno da sociabilidade, pois são as interações entre os indivíduos que fundamentam a sociedade.

A interação acontece tanto em complementaridade ou conflito, mas para isto, implica em reconhecimento de suas diferenças e semelhanças. Não reconhecer o outro em suas diferenças significa a negação do outro como sujeito e portanto, a negação da relação e da interação em si mesma. Simmel diz que as interações sociais entre os sujeitos se dão pelas trocas recíprocas mantidas entre eles nas relações. Esta interação, esta ação recíproca entre os membros vai construir uma unidade, que Simmel208 chamará de sociação:

A sociação só começa a existir quando a coexistência isolada dos indivíduos adota formas determinadas de cooperação e de colaboração, que caem sob o conceito geral da interação. A sociação é, assim, a forma, realizada de diversas maneiras, na qual os indivíduos constituem uma unidade dentro da qual se realizam seus interesses. E é na base desses interesses - tangíveis ou ideais, momentâneos ou duradouros, conscientes ou inconscientes, impulsionados casualmente ou induzidos teleologicamente - que os indivíduos constituem tais unidades.

Os projetos da Economia Solidária buscam constituir esta unidade na qual os indivíduos possam realizar seus interesses, objetivos e expectativas. Este processo de unificação, entre sentidos complementares ou conflitantes, se fortalece a medida que seus integrantes encontram novos modos de negociar diferenças que fortalecem o projeto. Simmel209 reconhece que as

formas sociais podem se cristalizar em determinados momentos da sociedade, quando estas combinações diversas e esta mobilidade entre as formas de interação entre os indivíduos se tornam menos heterogênea. Entretanto, Simmel acredita que os indivíduos têm autonomia para agir sobre essas formas, fazendo novas combinações e transformando-as.

Para Fontes e Stelzig210 existem novas possibilidades de sociabilidade dada a complexidade da sociedade moderna, e a unificação destes grupos dependem do compartilhamento que estão constantemente sendo negociados:

Há,de um lado, dada a crescente complexidade social, uma diversidade de orientação de valores bastante intensa; de outro, e de certa forma resultante da assertiva anterior, uma possibilidade maior de se elegerem filiações institucionais e padrões de sociabilidade mais adequados aos gostos individuais. O que significa dizer que estes espaços de sociabilidade são altamente heterogêneos, proporcionando desta forma a conexão de redes em

206 SIMMEL, G. O Problema da sociologia. In: MORAIS FILHO, Evaristo de (Org.). George Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 59-60.

207 SIMMEL, G. O Problema da sociologia. In: MORAIS FILHO, Evaristo de (Org.). George Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 59-60.

208 SIMMEL, G. O Problema da sociologia. In: MORAIS FILHO, Evaristo de (Org.). George Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 59-60. p. 60.

209 SIMMEL, G. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

210 FONTES, B.; STELZIG, S. Sobre trajetórias de sociabilidade: a idéia de relé social como mecanismo criador de novas redes sociais. Revista Política & Sociedade, v. 3, p.1-12, 2008. Disponível em: <http://revista-

combinações diversas. Os padrões de sociabilidade, desta forma, são fortemente móveis e instáveis.211

Assim, embora os modelos organizacionais hegemônicos na sociedade capitalista estejam delimitados por normas e regras internas heterogestionárias, é possível constituir novos sentidos e modos de interação. Segundo Simmel212 não são as normas e regras que mantém a estabilidade destas formas de organização social, mas os sentidos compartilhados pelos seus integrantes que garantem a coesão interna dos grupos. Modelos organizacionais que não garantem o compartilhamento destes sentidos comuns tendem a serem substituídos por outros modelos organizacionais. E portanto, a interação entre os indivíduos, para a negociação de diferentes sentidos, requer um espaço onde estão asseguradas as ações espontâneas que darão continuidade para os vínculos sociais que compartilham um sentido comum e que garantem essa coesão interna do grupo. Para Simmel213 os sentimentos espontâneos recíprocos que aproximam e afastam os indivíduos são os fatores fundamentais para manutenção da coesão social, acima de outros fatores, como a regulamentação normativa ou legal. .

Segundo Fontes e Stelzig214 “ultrapassando as fronteiras de sociabilidades primárias, o

indivíduo na modernidade tende a ver estabelecidos os laços sociais preponderantemente a partir de contatos de natureza associativa, quer dizer, instrumentalizados em objetivos mais estreitos que aqueles fundados na amizade ou no parentesco”. Ou seja, as relações de trabalho ficam mais delimitadas a objetivos definidos, e quanto mais se diferenciarem das sociabilidades primárias, mais ela irão se configurar de forma instrumentalizada, com pouca interação espontânea. A busca por um novo modelo de organização do trabalho parece manifestar uma busca de unificação entre as relações sociais apoiadas em vínculos espontâneos às relações associativas mais pragmáticas e legalmente delimitadas. Assim, as relações de trabalho e de vínculo afetivo podem ser aproximadas, superando a perda de vínculos espontâneos nas sociedades complexas. As dicotomias entre interações instrumentalizadas e interações espontâneas são relatadas nas experiências em grupos autogestionários, uma produção individual e grupal espontânea em torno da experiência de formação de um projeto de trabalho em Economia Solidária.

Segundo Simmel215 este processo de construção grupal determina as fronteiras entre as experiências vividas em um grupo e as experiências vividas em outros grupos. E neste processo a ambigüidade pode ser um fenômeno que, ao não enrijecer as funções e objetivos da cooperativa, possibilitam novas configurações, mas também deixam mais abertas as possibilidades de

211 FONTES, B.; STELZIG, S. Sobre trajetórias de sociabilidade: a idéia de relé social como mecanismo criador de novas redes sociais. Revista Política & Sociedade, v. 3, p.1-12, 2008. Disponível em: <http://revista-

redes.rediris.es/webredes/novedades/breno_sabina.pdf >. Acesso em: 01 fev. 2010.

212 SIMMEL, G. Conflito e estrutura do grupo. In: MORAIS FILHO, Evaristo de (Org.). George Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 150-164.

213 SIMMEL, G. Como as formas sociais se mantêm. In: MORAIS FILHO, Evaristo (Org.). George Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. 46-58.

214 FONTES, B.; STELZIG, S. Sobre trajetórias de sociabilidade: a idéia de relé social como mecanismo criador de novas redes sociais. Revista Política & Sociedade, v. 3, p.1-12, 2008. p. 5. Disponível em: <http://revista-

redes.rediris.es/webredes/novedades/breno_sabina.pdf >. Acesso em: 01 fev. 2010.

215 SIMMEL, G. Como as formas sociais se mantêm. In: MORAIS FILHO, Evaristo de (Org.). George Simmel: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 46-58. (Grandes cientistas sociais, 34).

relações, sobrepondo vínculos afetivos e profissionais de forma ambígua no cotidiano de trabalho. Assim, o grupo poderá se manter instável internamente pela fragilidade de estar sem uma definição “estável” acerca das diferenciações relacionais, passando por vários modelos, várias “definições” sem constituir uma própria e permanente. A interação entre os sujeitos ocorre entre estas fronteiras e podem tanto estar contribuindo para a construção da fronteira do que significa a cooperativa para os indivíduos e para o grupo, quanto podem estar se mesclando cada vez mais com outras formas sociais, de acordo com o momento vivido pela cooperativa.216

4.3 A AMBIGUIDADE E O CONFLITO COMO PROCESSO DE INTEGRAÇÃO DAS DIFERENÇAS