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A EDUCAÇÃO BRASILEIRA VOLTOU-SE PARA MODALIDADES DA

Este capítulo alerta para o fato de que a educação brasileira tem caminhado a passos largos para uma forte valorização do desenvolvimento da inteligência, sem ao mesmo tempo definir com clareza caminhos e meios para tal objetivo. São apresentados argumentos a respeito desse progressivo entrelaçamento entre o ato de educar e a ação de provocar modalidades da inteligência. Concomitantemente ao incentivo a um ensino que desenvolva o estudante para o pensar e para o aprender a aprender, nem as diretrizes, nem os parâmetros curriculares discutem diretamente e detalhadamente estratégias ou programas curriculares para desenvolver a inteligência.

O ensino médio vigente no Brasil foi apontado no início dos anos 1990 pelo MEC como um dos mais inovadores, justamente por pretender acompanhar as propostas educacionais de vanguarda no mundo, de forma a contar com o apoio da UNESCO e do Banco Mundial (MEC, s.d.), entre outras organizações mundiais. Sem centrar sobre as polêmicas e as controvérsias relacionadas com o tema, a partir dos anos de 1990 o Ministério da Educação (MEC, s.d.) declarou que o ensino médio, assim como a educação básica deveria basear-se em três postulados fundamentais:

1. A flexibilização do sistema educacional, nos seus diversos níveis.

2. A iniciativa de articular a formação humanista à formação para o trabalho.

3. A definição de uma base curricular nacional baseada em competências e habilidades cognitivas básicas, e não simplesmente em conteúdos.

Em suas bases, estes postulados propõem à educação brasileira, em nível de argumento, uma estrutura capaz de permitir às escolas o poder de planejar e coordenar os seus próprios projetos pedagógicos, conjuntamente a uma proposta curricular

nacional focada no desenvolvimento de competências cognitivas e no preparo dos alunos para o mundo do trabalho.

O argumento do Ministério da Educação pautou-se nos anos de 1990 na necessidade de acompanhar as mudanças no campo do trabalho e do emprego, de forma que as diretrizes nacionais argumentavam que as mudanças advindas deveriam perseguir o objetivo de preparar os estudantes tanto para o trabalho como para formar o agente humano, em suas mais altas aspirações (Soares, 1999a; Soares, 1999b). O lema apontado era de que “o novo ensino médio vai ser a grande resposta para os jovens que querem a profissionalização” (MEC, s.d., p. 1), de modo que “Estudantes que anseiam trabalhar, trabalhadores que precisam estudar para dominar habilidades que lhes permitam assimilar e utilizar produtivamente recursos tecnológicos novos e em acelerada transformação: essa é a atual clientela do ensino médio...” (MEC, 1998, p. 4).

Sustentando essa concepção de escola para o trabalho, foi posta em vigor uma nova noção de formação para o trabalho. Segundo as diretrizes, a formação para o trabalho deveria ter como base o desenvolvimento de competências e habilidades gerais, ao contrário de uma formação baseada no ensino de conteúdos especializados, próprios de cada campo técnico. Em linhas gerais, o ensino médio pensado nos anos de 1990 era separado literalmente do ensino profissionalizante, considerado este último como um tipo de modalidade de especialização.

O argumento utilizado para a separação entre o ensino médio e o ensino profissionalizante sustentou-se nos problemas contemporâneos da empregabilidade e da globalização. Segundo os argumentos do Ministério da Educação nos anos de 1990, não bastava ao trabalhador ser possuidor de um tipo de saber-fazer e um tipo de profissão especializada. Rapidamente a técnica aprendida tornar-se-ia obsoleta e o conteúdo perderia o seu valor, fenômeno esse que, por conseqüência, demarcava uma inoperância

na formação por transmissão de conteúdos voltados a técnicas muito focais e específicas. Em tese, uma formação geral capaz de mobilizar competências e habilidades, assim como desenvolver um pensamento autônomo e flexível, deveria provocar a capacidade dos estudantes de assimilar as transformações e as mudanças constantes do mundo do trabalho.

O que aumenta a possibilidade de empregabilidade no mundo de hoje é a ênfase nas habilidades básicas e gerais. Têm grande importância à capacidade de análise, a capacidade de resolver problemas, a capacidade de tomar decisões e, sobretudo, ter flexibilidade para continuar aprendendo. (Mello, 1998, p. 23)

Essa conceituação foi demarcada pelo caráter controverso e cercada de muitas críticas (Barreto, 2001; Domingues, Toschi & Oliveira, 2000; Ferreti, 2000; Kuenzer, 2000; Oliveira, 2000). Kuenzer (1997), por exemplo, delimitava uma postura radical, afirmando que a concepção de formação ao trabalho que separava ensino médio e ensino profissionalizante era completamente inoperante até mesmo aos interesses dos grandes órgãos capitalistas mundiais e nacionais, definindo-a como uma “sucatização” da educação.

Então qual seria a lógica escondida sob essa aparente incompetência? A da mera redução de custos através de uma pretendida aproximação do mercado, que ‘demandaria’ cursos curtos; do descompromisso crescente do Estado com o financiamento da educação pública para além do fundamental; da racionalização do uso dos recursos existentes nos CEFETs e ETFs, escolas muito caras para preparar para o ensino superior; do repasse de recursos públicos para as empresas privadas, como estímulo para que assumam as funções do Estado relativas à educação dos trabalhadores, inclusive a básica (o que certamente é mais barato); e do fomento à privatização propriamente dita. (Kuenzer, 1997, p. 151)

Apesar da importância das discussões sobre o conceito de formação geral para o trabalho, das relações entre o ensino médio e o ensino profissionalizante, assim como outros aspectos pertinentes, é importante declarar que a ênfase desta pesquisa concerne ao terceiro postulado do Ministério da Educação nos anos de 1990. É sobre esse

postulado que a discussão desta seção se concentra, na medida em que ela abre uma importante polêmica sobre o ensino do pensamento, assim como sobre a inserção de metodologias e propostas curriculares para o desenvolvimento e a avaliação da inteligência.

É notória a presença de um forte apelo ao aprender a aprender e ao aprender a pensar nas diretrizes brasileiras. Essa visão sugere que as escolas deveriam fomentar metodologias capazes de estimular nos alunos a construção de conhecimentos significativos, mobilizando a capacidade de aprender. Ao mesmo tempo, as avaliações eram e ainda são entendidas como importantes instrumentos para um melhor diagnóstico do processo de raciocínio do estudante, no sentido de “estar voltados para avaliar menos o nível de conhecimento ou informação pura e simplesmente, e mais o raciocínio, a capacidade de analisar, inferir, ler e compreender, e assim por diante.” (Mello, s.d., p. 5)

Além de um forte apelo ao aprender a aprender, é notório também uma concepção de estudante, e o incentivo de uma educação que forme indivíduos críticos, flexíveis e pensadores. Uma das estratégias buscadas para desenvolver a capacidade do estudante em fazer relações e obter uma aprendizagem mais significativa foi a interdisciplinaridade e a contextualização. Segundo o argumento do Ministério da Educação, iniciado nos anos de 1990, a interdisciplinaridade e a contextualização deveriam ser regidos pelo fomento de projetos amplos que embarcassem problemáticas de contexto mundial, nacional e regional. Esse argumento preconizava que não bastava ensinar matemática, português, história, em suas particularidades e desarticuladas das questões contemporâneas humanas. Deveria-se ensinar física, por exemplo, articulando- a com as tecnologias atuais, contextualizando-a como disciplina que analisa e responde por uma série de questões pessoais e sociais do cotidiano, e relacionada com outras

áreas do conhecimento. Através da contextualização, o Ministério da Educação esperava retirar o aluno da condição passiva de mero receptor de informações, redimensionando os conteúdos dentro de áreas pessoais e sociais de interesse.

De fato, não é interesse desta pesquisa polemizar sobre a adequação teórica e metodológica dos conceitos de interdisciplinaridade e contextualização. Um aspecto que interessa fortemente às questões desta pesquisa é o fato de que as competências cognitivas são apontadas como a base para o trabalho de interdisciplinaridade e contextualização, assim como os conteúdos são vistos como agentes para o desenvolvimento do aluno, e não como meros fins em si mesmos. Contraditoriamente, os argumentos gerados no Ministério da Educação a partir dos anos de 1990 não são claros em definir como as competências poderiam ser ensinadas e qual é sua efetiva articulação com os conteúdos disciplinares.

Apesar da importância concedida aos processos cognitivos, sua relação com o ensino pode ser vista mais como um conjunto de fragmentos de idéias, argumentos e ações isoladas, do que como propostas sistêmicas, deliberadas e intencionais que levassem a ações educacionais bem posicionadas. Por exemplo, Mello (1998) define a importância do ensino voltado ao desenvolvimento da análise de dados:

Os conteúdos são o apoio das competências. Pretende-se que todos saiam do ensino médio com a capacidade de analisar uma tendência de dados, por exemplo, e de transformar uma tendência quantificativa numa análise qualitativa. Não importa se esse dado é a tendência da temperatura dos graus de dilatação, do metal submetido ao calor, ou a tendência dos votos na próxima eleição. A habilidade cognitiva que está em jogo é similar. (Mello, 1998, p. 29-30)

Fica patente na fala de Mello a compreensão de que há habilidades gerais do pensamento e que essas habilidades podem e devem ser ensinadas, pois elas mobilizam o nível de desenvolvimento do aluno e sua capacidade para aprender.

Complementarmente, pode-se constatar nas diretrizes dos anos de 1990 a preocupação com a formação dos professores e a construção de materiais didáticos que levem em consideração o processo de raciocínio do aluno para a disseminação da nova proposta. No entanto, com a ausência de metodologias explicitadas para o desenvolvimento das competências cognitivas, ao invés de propiciar a democratização e a flexibilização do sistema educacional, o ensino médio determinou uma situação de falta de diretrizes sobre como ensinar a pensar, formar para o trabalho e preparar professores para tal objetivo. Na medida em que a história educacional brasileira centra-se na transmissão de informações, a falta de referenciais metodológicos sólidos sustentou a probabilidade de que a proposta se situa-se no nível do ideal, de forma a não alcançar o campo das práticas escolares concretas.

Há alguns programas no mundo voltados a ensinar a pensar que gozam de um conjunto amplo de evidências quanto aos seus efeitos nos processos de raciocínio e aprendizagem dos estudantes (Shayer & Adey, 1994; Sternberg, 1987; Sternberg & Grigorenko, 2003; Williams, Blythe, White, Li, Gardner & Sternberg, 2002). Entre eles estão o Programa de Enriquecimento Instrumental (PEI), o Filosofia para Crianças, o Aceleração Cognitiva através da Educação de Ciências (CASE), e o Ensino baseado na Inteligência Plena (Sternberg & Grigorenko, 2003).

Adey e Shayer (1994) sustentam que o PEI e o CASE concretizam a teoria de Vygotsky sobre a Zona de Desenvolvimento Proximal, na medida em que ambos baseiam-se na construção de novos padrões de raciocínio no aluno, justamente por meio de uma interação deliberada do professor que atua para provocar zonas potenciais em seus alunos. Os dois programas disponibilizam ao professor um material que põe em processamento habilidades gerais do pensamento. No entanto, o material em si não altera o processo de pensar do aluno, sendo fundamental o papel do professor que incita

junto aos estudantes novas formas de analisar, interpretar, coordenar, relacionar, inferir, entre outras habilidades. O objetivo desses programas concentra-se no desenvolvimento cognitivo e na construção interna de habilidades do pensamento, não como um fim em si mesmo, mas como uma forma de dar autonomia pensante aos estudantes e possibilitar a aquisição futura de uma maestria em campos conceituais especializados.

De uma forma geral, o ensinar a pensar está posto em questão no Brasil, através da visão de um novo tipo de proposta educacional que privilegia o desenvolvimento de competências mentais. Contraditoriamente, o ensinar a pensar está posto em questão fortemente no cenário internacional desde o início dos anos de 1980, por meio de uma série de metodologias de ensino que demonstram sólidas evidências empíricas de alterações significativas na capacidade de aprender e no desenvolvimento cognitivo dos estudantes (Sternberg, 1987). Ao fomentar a flexibilidade do pensamento, a inteligência e a capacidade para lidar com situações novas, as diretrizes centram-se no campo da Educação Cognitiva, por caminhos indiretos. E, indiretamente, a educação brasileira se coloca como uma proposta fortemente relacionada com as práticas do Ensino do Pensamento, apesar da ausência de metodologias e práticas claras nessa direção (Primi, Santos, Vendramini, Taxa, Muller, Lukjanenko & Sampaio, 2001).

Sem adentrar nas diversas e diferentes polêmicas sobre os rumos da educação brasileira, iniciada nos anos de 1990, este capítulo discutiu como um postulado do Ministério da Educação desta época estabeleceu uma forte conexão da educação brasileira com a avaliação e a intervenção cognitiva. Ao mesmo tempo em que define a existência dessa relação, a definição pode ser entendida como insipiente e fragmentada, na medida em que não colabora para uma maior clareza sobre a viabilidade e a plausibilidade de uma educação que pretende desenvolver a capacidade do estudante de aprender a aprender, e de possuir competências para a cidadania (MEC, 2001), assim

como não declara com clareza quais são as reais implicações de um ensino que se supõe voltado para modalidades da inteligência.