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4 O LUGAR DEVIDO DA PSICOMETRIA

4.2 A IMAGEM PÚBLICA DA PSICOMETRIA

Quanto à sua imagem pública, a psicometria não goza de boa reputação (Carroll, 1997). Segundo Carroll (1997), ao longo da história certas interpretações do campo da psicometria têm conseguido concentrar a atenção do público leigo, fornecendo uma imagem muito negativa quanto aos estudos psicométricos, e obscurecendo a real natureza desse campo do conhecimento. Algumas interpretações geradoras de repercussão negativa são as seguintes:

1. A genética é o componente mais importante para a definição da inteligência humana. Baixos escores em testes de QI implicam em uma baixa condição intelectual por meio de fatores genéticos.

2. Diferenças de escores em testes de QI entre indivíduos brancos e negros são explicadas por meio de causas genéticas. Os indivíduos negros, pois, são inferiores aos indivíduos brancos, em termos intelectuais.

3. O fator g dá conta de explicar sozinho a natureza da inteligência humana.

Carroll (1997) discorda dessas interpretações, defende que esses pontos não representam bem as evidências fundamentais desse campo do conhecimento, e demonstra que a maior parte dos resultados de pesquisas oriundas da psicometria possuem uma sólida base conceitual e metodológica. Segundo seu argumento, os três aspectos comentados, como outros pontos polêmicos, representam interpretações errôneas de alguns autores da psicometria sobre dados complexos e complicados de serem interpretados e analisados. Carroll (1997) chama a atenção para o fato de que nenhum desses pontos são evidências fortes da psicometria, mas apenas interpretações e pontos de vista de má qualidade sobre dados de pesquisas.

Ao criticar essas interpretações, Carroll (1997) define alguns pontos cruciais para responder pelas evidências e interpretações da área. Alguns dos pontos abordados são os seguintes:

1. A psicometria é uma área respeitável e rigorosa do conhecimento científico. Seu rigor provém de tecnologias finas e acuradas para a construção e a análise de variáveis psicológicas. Por meio da construção de instrumentos específicos de mensuração, a psicometria é capaz de obter escores sobre diversas funções da mente humana, identificando um largo conjunto de habilidades cognitivas, através das diferenças individuais.

2. Os modelos da inteligência elaborados pela psicometria definem um vasto conjunto de habilidades cognitivas, identificando desde a presença de habilidades extremamente especializadas, até a presença de uma habilidade cognitiva geral, denominada de fator g. Nesse sentido, a inteligência é definida como um amplo conjunto de fatores, tanto especializados, como gerais, respondendo ambos pela performance intelectual das pessoas.

3. Há um vasto conjunto de evidências sobre a importância da habilidade cognitiva geral, ou fator g, em relação ao rendimento intelectual. O fator g é responsável pela maior parte da variância nos escores de testes de rendimento escolar, de crescimento mental, e de habilidades cognitivas, o que significa dizer que o fator g, entre um largo conjunto de habilidades, é o fator que mais influencia a performance intelectual. Apesar da reconhecida importância das várias habilidades cognitivas específicas para uma melhor definição da arquitetura intelectual humana, a habilidade cognitiva geral é responsável pela maior parte da performance, tanto cognitiva, como escolar. Em linhas gerais, possuir um alto escore na habilidade cognitiva geral é um preditor mais forte em

relação à competência escolar e cognitiva, do que possuir um alto escore em habilidades cognitivas especializadas.

4. Os escores de testes que mensuram a habilidade cognitiva geral não podem ser tomados como medidas diretas da hereditariedade. Pelo contrário, escores em testes como o do QI (Stanford-Binet) indicam o progresso intelectual do indivíduo, em um dado ponto no tempo. Esse progresso intelectual é construído através de causas tanto genéticas como ambientais, e deve ser visto como um produto cognitivo individual inserido nas possibilidades de desenvolvimento mental moduladas pelo contexto sociohistórico das sociedades contemporâneas.

5. Há várias causas ou origens para o desenvolvimento cognitivo, além do fator biológico e genético. Do ponto de vista social e educacional, a influência dos pais, o ambiente familiar, a escolarização, as diversas tecnologias provenientes da cultura, as interações sociais, entre outros aspectos, compõem um largo conjunto de fatores capazes de influenciar fortemente o fator geral de inteligência. Nesse sentido, baixos escores em testes que mensuram a habilidade cognitiva geral indicam tanto aspectos biológicos e genéticos, como condicionantes socioculturais, em termos de falta de oportunidades e carências de ambientes ricos e provocadores do desenvolvimento. 6. Medidas do fator g, ou habilidade cognitiva geral, indicam algo relacionado com a taxa de aprendizagem, ou seja, com a quantidade de tempo necessário para que uma pessoa possa aprender e dominar uma determinada tarefa, ou completar com sucesso um determinado curso de aprendizagem. Medidas de habilidade geral não indicam, necessariamente, a habilidade absoluta de uma pessoa em aprender. Levando essa evidência a sério, deve-se dizer que uma pessoa que obtém baixos escores em testes fortemente carregados no fator g não pode ser vista como sendo incapaz de aprender conteúdos mais abstratos e complexos. Ao contrário, baixos escores implicam em uma

taxa de aprendizagem mais baixa. Pessoas com baixos escores em testes do tipo do QI em geral aprendem mais lentamente e possivelmente com mais dificuldade, mas são capazes de aprender, conforme demonstram as evidências da psicometria. A prática de rotular as pessoas como incapazes de aprender conteúdos complexos foi muito praticada no campo educacional, mas as evidências da própria psicometria são contrárias a essa interpretação e análise dos dados.

7. A psicometria é capaz de gerar um conhecimento mais apurado em relação ao que vem fazendo sobre o significado dos escores dos testes psicológicos em relação à vida cotidiana. Por meio de estudos mais amplos e meta-análises de dados já disponíveis a psicometria tem condição de identificar como os diferentes escores dos testes relacionam-se com probabilidades de sucesso em diferentes tipos de aprendizagem no campo educacional e em diferentes tipos de performance na vida real.

8. A psicometria é um campo de conhecimento rico e promissor, capaz de gerar importantes questões dentro do seu próprio campo de conhecimento, assim como de oferecer importantes contribuições a outras áreas de conhecimento. Dentro das questões conceituais e empíricas relevantes, a psicometria estuda a natureza da inteligência, procura identificar da forma mais ampla os seus componentes, construindo instrumentos de mensuração capazes de identificar a arquitetura intelectual, em sua inteireza. Quanto a essa empreitada, a psicometria tem um longo caminho, e amplos desafios.

Entre os pontos destacados por Carroll (1997), alguns interessam mais fortemente, devido ao fato de que estabelecem fortes relações entre a psicometria e o campo educacional. No que diz respeito ao papel da aprendizagem e do ambiente no desenvolvimento da inteligência, as evidências da psicometria demonstram que tanto o ambiente como o fator biológico são importantes. Uma evidência forte da psicometria a

esse respeito, entre várias discutidas por Carroll (1997), encontra-se no fato de que a performance intelectual das pessoas no teste de QI vem crescendo ao longo das décadas, indicando um papel central do ambiente educacional nesse crescimento. De fato, há uma forte relação entre o desenvolvimento econômico e urbano de uma região e o crescimento médio desta população em escores no teste do QI (Carroll, 1997).

Carroll (1997) pondera que há evidências bastante sólidas apontando que o fator biológico tem um peso de 50% no desenvolvimento do Fator Geral (g) da inteligência da média de toda a população. No entanto, o autor argumenta que isso não significa dizer que qualquer pessoa é influenciada pela genética em 50% do seu desenvolvimento intelectual geral. Pelo contrário, o fator biológico pode influenciar uma pessoa em apenas 10% do curso de seu desenvolvimento, enquanto pode influenciar outra pessoa em 90% do curso de seu desenvolvimento cognitivo.

O argumento de Carroll (1997) centra-se na explicação de que é um erro grave interpretar dados de médias populacionais e atribuir esses dados para pessoas específicas. Ao mesmo tempo, ele analisa que uma pessoa que tenha sido mobilizada em apenas 10% do curso de seu desenvolvimento pelo fator biológico, possivelmente tenha tido tão pouca influência genética e endógena justamente por ter sido maciçamente provocada pelos fatores socioculturais e pela educação formal e informal de sua época. Segundo ele, seria muito plausível dizer que as pessoas que tenham um peso fortemente genético em seu desenvolvimento possivelmente tenham vivenciado ambientes pobres em estímulos, enquanto que as pessoas onde o fator biológico explica pouco do seu desenvolvimento intelectual possivelmente tenham vivido ambientes muito ricos, no sentido de terem sido extremamente provocadores e capazes de alterar repetidas vezes o curso do seu crescimento intelectual.

Do ponto de vista da importância dos componentes cognitivos da arquitetura mental e sua relação com a aprendizagem dos estudantes, o Fator Geral (g) tem um peso considerável na predição do desempenho escolar, na medida em que ele explica cerca de 50% do desempenho escolar dos estudantes. Por sua vez, os fatores mais especializados e específicos normalmente não explicam mais que 10%. Essas evidências são bastante fortes, na medida em que são situadas em centenas de dados obtidos repetidamente ao longo de quase um século de estudo.

Apesar da importância preditora do fator geral (g) para a educação, o mapeamento da arquitetura da inteligência pressupõe a identificação de fatores em vários níveis, desde muito específicos, até bastante abrangentes. Os modelos da inteligência mais bem embasados consideram vários níveis de habilidades, de forma que nem o Fator Geral (g) sozinho explica o que é a inteligência humana, e muito menos os fatores mais específicos. É justamente através da identificação da relação entre esses componentes que se estabeleceu ao longo de décadas uma maior clareza sobre a arquitetura intelectual humana, de forma que as teorias que valorizam a presença de diversas estruturas intelectuais, como as Inteligências Múltiplas de Gardner, assim como as teorias que argumentam sobre estruturas mais gerais, como a teoria de Piaget e Vygotsky possuem espaço nos modelos psicométricos. O modelo integrador de Carroll (1993) sustenta a veracidade dessas duas grandes vertentes, através de uma estrutura multi-nível.

Outro ponto discutido por Carroll (1997), e importante dentro da argumentação aqui defendida, é a sua formulação de uma identidade para psicometria do século XXI. Segundo seu argumento, com o surgimento de novos testes e novas medidas sobre aspectos diferentes da inteligência será possível à psicometria desbravar novas áreas e manter-se como um campo de vanguarda. Estudos sobre o desempenho das pessoas na

vida cotidiana, no trabalho e em campos específicos enriquecerão a perspectiva da psicometria e tenderão a ampliar o seu espectro de ação. Seguindo essa tendência, novos modelos sobre a inteligência deverão ser criados e novos mapeamentos da arquitetura mental poderão ser postulados.

Como todo e qualquer campo do conhecimento, a psicometria apresenta diferentes versões e interpretações sobre suas evidências. Da mesma maneira, diferentes pesos ideológicos são gerados e divulgados, de forma a influenciar as representações do público leigo. Carroll (1997) aponta para um caminho onde as perspectivas da ligação da psicometria com a educação são bastante férteis, tanto no campo da identificação dos componentes dos processos intelectuais, como no campo da avaliação de intervenções que alteram e modificam a performance intelectual. Há uma forte tendência da psicometria atual e futura para compreender como os processos intelectuais podem ser alterados e recanalizados por ambientes ricos e focados na modificabilidade humana.

Em síntese, este capítulo analisou o foco da psicometria, seu objeto de pesquisa, assim como sua imagem pública e suas potencialidades em relação ao campo da educação. Utilizando os argumentos presentes em um artigo de Carroll (1997), foram ponderados alguns mal entendidos entre a psicometria e a educação, e elencadas novas relações entre ambos os campos, que se pautam pelas evidências mais importantes e sólidas do campo da psicometria.

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ARQUITETURAS DA INTELIGÊNCIA

Neste capítulo são tratados os diferentes modelos e as diferentes estratégias metodológicas encontradas na psicometria para a definição das estruturas da inteligência humana. Conjuntamente, este capítulo possui uma referência às diferenças entre a escola britânica e a americana e suas diferentes produções. São descritos, o Modelo dos Dois Fatores de Spearman, o Modelo das Habilidades Mentais Primárias (PMA –

Primary Mental Abilities), o Modelo da Estrutura do Intelecto de Guilford (SOI – Structure Of Intelect), o Modelo dos Grupos de Fatores de Burt e Vernon, o Modelo Gf-

Gc de Cattell-Horn, o Modelo HiLi (Hierarquical Lisrel) de Gustafsson e Undheim, e o Modelo dos Três Estratos de Carroll.

Em um artigo de 1984, Gustafsson havia chamado a atenção para o fato de que a psicometria apresentava na época um largo conjunto de modelos concorrentes sobre os componentes da inteligência. Segundo ele, os modelos concorrentes demonstravam uma tensão conceitual e metodológica no campo, localizada em duas grandes questões. A primeira questão envolvia a problemática do Fator Geral da inteligência, enquanto a segunda embarcava a distribuição e a disposição das habilidades cognitivas identificadas. Nessa linha, os modelos podiam ser separados em estruturas que:

1. Identificavam a presença de um Fator Geral (g), ou negavam a sua presença.

2. Identificavam uma hierarquia entre os fatores, ou estipulavam uma relação de igualdade entre os mesmos.

Os modelos que identificavam um Fator Geral (g) postulavam a presença de um fator capaz de explicar parte da variância da performance das pessoas em todos os testes. O Fator Geral (g), nesse sentido, era entendido como uma habilidade geral, mobilizadora de todas as outras habilidades e ativada por qualquer atividade pensante humana. Em contraposição, os modelos que negavam o Fator Geral (g) postulavam

somente a existência de uma série de fatores cognitivos específicos para processos mentais particulares, discordando da possibilidade de uma habilidade geral ser mobilizada e ativada em qualquer tarefa intelectual humana.

Por sua vez, os modelos hierárquicos definiam uma condição de hierarquia entre as habilidades. Segundo esses modelos, as habilidades agregavam-se em níveis mais abrangentes ou mais específicos e especializados, de forma que determinados fatores respondiam por processos bastante amplos, assim como outros representavam mecanismos bastante especializados e contextuais. Dentro dessa visão, fatores como a Velocidade Perceptiva (P), a Visualização (VZ) e a Flexibilidade de Fechamento (CF) eram entendidos como elementos que integravam um fator mais amplo, denominado de Habilidade Visual Abrangente (Gv). Ao mesmo tempo em que todos esses fatores se articulariam a um fator mais amplo, de hierarquia mais geral, ambos também possuíam as suas especificidades. A Velocidade Perceptiva (P), por exemplo, se caracterizaria pela capacidade das pessoas em formar um rápido escaneamento espacial dos objetos da realidade. Por sua vez, a Visualização (VZ) implicaria na capacidade de imaginar, manipular e transformar objetos em diversos planos espaciais. Em contrapartida, a Flexibilidade de Fechamento (CF) envolveria a capacidade para encontrar determinados padrões em figuras complexas. Todos são processos espaciais particulares e especializados, diferentemente da Habilidade Visual Abrangente (Gv) que responderia por processos espaciais mais amplos e abrangentes, presentes em todas as tarefas de natureza espacial.

Ao contrário dos modelos hierárquicos, os modelos igualitários somente identificavam habilidades especializadas primárias do tipo da Velocidade Perceptiva (P) ou da Visualização (VZ). Habilidades abrangentes não eram identificadas. A grosso modo, os modelos “igualitários” obtinham suas evidências através de rotações

ortogonais2, o que os impossibilitava de encontrar fatores de alta-ordem e estabelecer níveis hierárquicos entre as habilidades.

Discutindo os modelos igualitários e hierárquicos, que apontavam ou não para um Fator Geral (g), Gustafsson (1984) alertou para a necessidade de uma mudança radical no campo, reconhecendo a crítica de Sternberg (1981) de que o maior sucesso das técnicas analíticas fatoriais da psicometria era também o seu maior fracasso. O argumento de Sternberg afirmava que o amplo conjunto de diferentes técnicas de extração e rotação de fatores permitia a identificação e a comprovação de modelos muito diferentes e divergentes sobre a natureza da inteligência. Se a riqueza proporcionada por um vasto número de técnicas fatoriais proporcionava um avanço significativo para a construção de evidências sobre as habilidades cognitivas, ela também gerava inúmeros modelos incompatíveis, dificultando um consenso na área e obscurecendo uma visão mais ampla e abrangente sobre a natureza da inteligência.

O alerta de Gustafsson (1984) explicava o momento histórico da psicometria. Sem dúvida, boa parte das diferenças entre os modelos da psicometria era proveniente do excesso de possibilidades e da falta de um consenso e uma diretriz metodológica sobre as técnicas analíticas fatoriais. Até o final da década de 1970 houve uma predominância dos modelos que negavam a presença de um Fator Geral (g) e enfatizavam modelos “igualitários” focados na identificação de vários fatores primários, de natureza bem específica. Essa ênfase deveu-se à influência norte-americana e sua tradição em buscar o maior número de fatores específicos, através da rotação ortogonal.

Conforme salientam Undheim e Gustafsson (1987), ao final dos anos de 1970 pelo menos 50 fatores primários já haviam sido identificados, gerando um número excessivo de fatores independentes e sem relação uns com os outros, devido ao postulado igualitário de independência. Ao final dessa época, a psicometria possuía um

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largo conjunto de fatores, mas que pouco ofereciam para uma explicação mais ampla e estruturada sobre a inteligência. Essa tendência foi invertida nos anos de 1980, por meio da forte influência de um modelo hierárquico americano que negava a presença do Fator Geral (g), o modelo Gf-Gc de Cattell-Horn. Apesar da presença nessa mesma época de um outro modelo hierárquico que apontava para a presença do Fator Geral (g), o HILI de Gustafsson e Horn, o modelo Gf-Gc de Cattell-Horn foi mais influente e determinou a tendência da época.

A tendência dos anos de 1980 manteve-se até o trabalho de Carroll em 1993. Realizando uma meta-análise sobre todos os estudos psicométricos importantes do século XX, Carroll (1993) definiu regras e procedimentos sólidos sobre o problema da escolha dos métodos de extração e rotação de fatores, fornecendo ao campo da psicometria um modelo padrão ideal para as técnicas de análise fatorial exploratória. Ao estabelecer um estudo profundo sobre o campo e definir regras comuns, Carroll obteve evidências fortes e elaborou um modelo sintetizador do campo. Ao mesmo tempo, ele definiu a tendência atual da psicometria, através da concepção de modelos hierárquicos que admitem a presença de um Fator Geral (g) (Carroll, 2003).