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4. APRESENTAÇÃO DO CAMPO DE PESQUISA E DO PROGRAMA

5.1. A educação enquanto ferramenta para uma transformação

Conforme visto no terceiro capítulo, o desenvolvimento da educação no Brasil partiu de uma lógica desigual e excludente, que se perpetuou pelas décadas até o presente, sendo exercida como uma ferramenta ambígua, de interesses às classes dominantes, numa finalidade exploratória, e também às oprimidas, numa viés de busca de melhorias a sua condição socioeconômica. E cabem diferentes vertentes e papéis à educação. Pereira e Herkenhoff (2011, p.61) abordam a função da educação em três perspectivas: a redenção, em que a educação é encarada como instrumento para a coesão social; a reprodução, em que a educação é vista como mecanismo do Estado para a manutenção do sistema capitalista, reproduzindo os interesses da classe dominante; e da transformação, em que a educação pode ser encarada tanto como um instrumento mantenedor da hegemonia do sistema capitalista, quanto ferramenta da classe trabalhadora. Esta última interessa abordar aqui como uma alternativa à superação do dualismo educacional.

Para as autoras, a educação enquanto transformadora não é, em si, capaz de conduzir a uma mudança estrutural da sociedade. Ela deve ser encarada como um instrumento dessa transformação, “que deve ser tomado pela classe trabalhadora como fundamental na construção da contra-hegemonia, devido a seu papel significativo para uma leitura mais crítica das relações sociais” (PEREIRA; HERKENHOFF, 2011, p.54). Na concepção de Boaventura de Sousa Santos (2016b), a educação é a construção de consciências críticas e ativas, capazes de representar o mundo como seu e que se sintam suficientemente fortes para se transformar. Educar para uma transformação social implica em criar instrumentos e ferramentas aos educandos e vê-los como sujeitos ativos, em que o conhecimento ensinado seja significativo à comunidade. Mas a educação formal e conservadora que se estendeu nos processos de colonização é excludente e não acessível, assim como o conhecimento passado às comunidades.

Em se tratando de educação pública, são observados limites, “face às imposições do capitalismo, que propõe uma educação, que é essencialmente dominadora, pois, faz parte de um sistema de dominação de homens” (PEREIRA; HERKENHOFF, 2011, p.61). Complementa-se o pensamento das autoras com a

descrição de Santos (2016b) acerca da educação vigente: patriarcal, colonizadora, sexista, racista e capitalista. Neste sentido, é preciso lutar para descolonizar o âmbito educacional em prol de uma educação popular, voltada aos interesses da comunidade, pois é se reconhecendo na coletividade que o sujeito se conscientiza de sua condição de agente transformador.

Pereira e Herkenhoff (2011) mencionam diversas frentes de luta da classe trabalhadora que evidenciam a perspectiva da educação enquanto ferramenta de transformação:

(...) pelo ensino público de qualidade, gerido exclusivamente pelos recursos

do Estado, evitando assim, a mercadorização do ensino; pela universalização do ensino para que alcance os segmentos empobrecidos, que, historicamente, têm sido excluídos deste espaço; pela gestão

democrática da escola, buscando efetivar espaços conquistados por esta classe; pelo uso de técnicas que vão ao encontro do projeto político- pedagógico desta classe, contribuindo com a leitura crítica da realidade; pela luta por melhorias de salários e de condições de trabalho; pela construção de espaços que busquem a formação política da classe (...) (PEREIRA; HERKENHOFF, 2011, p.60, grifo da pesquisadora).

Observa-se no estudo das autoras que o ensino público, mesmo que dependente financeiramente do Estado, pode ser uma frente de luta da classe trabalhadora, desde que tenha objetivos, gestão e projeto político-pedagógico voltados aos seus interesses. É justamente o ensino público que se enrijeceu ou foi oprimido, seja pelos regimes ditatoriais, que usaram da educação pública ao interesse de manutenção do poder, seja pelo advento da lógica neoliberal nos governos, que trataram a educação enquanto mercadoria aos interesses financeiros globais.

Conforme Santos (2005), nos países que passaram da ditadura à democracia, como o Brasil, a crise institucional nas universidades se deu por passar do controle político da autonomia científica e pedagógica, dependente financeiramente do Estado, para o sucateamento, busca por outras dependências financeiras e submissão da produção de conhecimento à lógica do mercado. Tal crise se explica pela falta de prioridade por parte dos governos neoliberais ao investimento nas universidades, cabendo a estas atentar para alternativas que não as afetassem pela lógica do modelo econômico vigente. Esta crise, como já

retratado, também atingiu a educação profissionalizante pública, como o sucateamento aos Cefets na década de 1990.

Para Santos (2016b), as universidades historicamente atenderam aos interesses das elites, cujo apoio foi perdido com o advento do neoliberalismo e da demanda por conhecimento voltado ao mercado de trabalho, em detrimento do pensamento crítico. Não tendo buscado o apoio das classes populares, atualmente sofrem com a crise institucional, agravada pela falta de apoio social que sustente as instituições com o pensamento livre e crítico.

Na última década, no entanto, o Brasil fez um movimento contracíclico em relação a outros países na América Latina envoltos na onda neoliberal, através da expansão das universidades, a qual se inclui aqui a Rede Federal. Na visão de Santos (2016b), a expansão nem sempre foi conduzida da melhor forma, ainda mais diante da crise institucional universitária, uma vez que tais instituições não foram criadas com o investimento e o prestígio necessários. Tal contraciclo aconteceu mediante as políticas afirmativas, de promoção de igualdade de oportunidades, mas a partir de uma base de exclusão de acesso e de conteúdo às classes não pertencentes à elite branca, uma vez que não têm contemplado nos conteúdos curriculares as histórias e os temas de estudo representativos de seus povos.

Como alternativa à crise institucional do ensino superior, Santos (2016b) propõe a perspectiva de educação emancipatória da Educação Popular inserida nas universidades, para que se voltem à população trabalhadora excluída da educação formal. Trata-se de repensar os currículos e propostas educativas, considerando o conhecimento demandado por seus estudantes e às comunidades a que pertencem, para além do conhecimento científico erudito. Bastos e Gonçalvez (2015) refletem que repensar currículos que promovam a emancipação, a diversidade e as experiências dos sujeitos significa situá-los responsavelmente no mundo globalizado, com base na ciência e no conhecimento a serviço da sociedade, contemplando diferentes grupos sociais excluídos historicamente.

A ideia da Educação Popular como ferramenta de luta tem raízes com os estudos de Paulo Freire e sua Pedagogia do Oprimido (1987). Para o educador, a Pedagogia do Oprimido é aquele que precisa ser forjada com os povos oprimidos e não para eles. Deve fazer da opressão e de suas causas objetos de reflexão, que

resultarão no engajamento necessário na luta pela libertação, sendo esta autêntica, e não por convencimento de alguém. Primeiramente, os oprimidos precisam desvelar o mundo da opressão. Precisam ainda se reconhecer ativos, criativos, responsáveis e não-autômatos, da condição de serem humanos, e se engajar na práxis por sua transformação. Depois, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia de sujeitos em processo de permanente libertação. A esta pedagogia implica o diálogo e uma relação educador-educando horizontal, não hierárquica (FREIRE, 1987).

O exercício de uma educação deve fazê-la crítica e criticizadora para a emersão da participação popular no desenvolvimento econômico, como suporte da democracia. Para tanto, é necessária a conscientização enquanto conhecimento crítico da realidade, de forma que os homens assumam papel de sujeitos e, portanto, tenham participação ativa em sua realidade, transformando-a (FREIRE, 1979).

Á educação popular são necessários o vínculo estreito com as comunidades e com os movimentos sociais, além do entendimento de que o conhecimento deve ser construído com o coletivo. Logo, concorda-se com Santos (2005) que há a necessidade de que as modalidades educacionais sejam anticolonialistas, antirracistas, antipatriarcais, antissexistas e anticapitalistas. Precisam também dialogar com o conhecimento popular, se aproximar dos segmentos populares e investir em ações e projetos extensionistas voltados à resolução dos problemas da exclusão e da discriminação sociais, dando voz aos grupos marginalizados (SANTOS, 2005; SANTOS, 2016b). Trata-se de democratizar não só o acesso, mas os espaços educacionais, tornando-os mais vinculados à sociedade e menos às demandas mercadológicas, contribuindo assim para uma sociedade verdadeiramente democrática e participativa.

A ideia da democratização externa confunde-se com a responsabilização

social da universidade, pois o que está em causa é a criação de um vínculo político orgânico entre a universidade e a sociedade que ponha fim ao isolamento da universidade que nos últimos anos se tornou anátema, considerado manifestação de elitismo, de corporativismo, de encerramento

na torre de marfim, etc. (...). A necessidade de uma nova institucionalidade de democracia externa é fundamental para tornar transparentes, mensuráveis, reguláveis e compatíveis as pressões sociais sobre as funções da universidade. E sobretudo para as debater no espaço público da universidade e torná-las objecto de decisões democráticas. Esta é uma das

vias de democracia participativa para o novo patamar de legitimidade da universidade pública (SANTOS, 2005, p.191-192, grifo da pesquisadora).

Tal ideia aqui interessa à pesquisa como uma alternativa coerente com os objetivos e o público da Rede Federal, ainda mais para que tal política se fortaleça em suas ações com o apoio da comunidade e para que o público ao qual a política ainda não é acessível passe a usufruir dela, cumprindo de fato com os objetivos da democratização do acesso e da permanência. Afinal, a proposta da Rede Federal em muito converge com a noção de educação popular, mesmo sendo uma política pública financeiramente dependente do Estado, mas, como as próprias diretrizes proclamam, voltadas a atender às demandas da sociedade:

Os Institutos Federais ressaltam a valorização da educação e das instituições públicas, aspectos das atuais políticas assumidos como fundamentais para a construção de uma nação soberana e democrática, o

que pressupõe o combate às desigualdades estruturais de toda ordem.

Nesse sentido, os Institutos Federais devem ser considerados bem público

e, como tal, pensados em função da sociedade como um todo na perspectiva de sua transformação. Os Institutos Federais respondem à

necessidade da institucionalização definitiva da educação profissional e tecnológica como política pública. Os institutos são federais, não apenas como expressão da presença em todo o território nacional, mas, acima de tudo, como entes mantidos pelo orçamento público central. Porém, ainda

que o financiamento e a manutenção a partir de fonte orçamentária pública representem condição indispensável, a política pública estabelece-se no compromisso de pensar o todo como aspecto que funda a igualdade na diversidade (social, econômica, geográfica e cultural) e ainda estar articulada a outras políticas (de trabalho e renda, de desenvolvimento setorial, ambiental, social e mesmo educacional, dentre outras). Enquanto

política pública, os Institutos Federais assumem o papel de agentes colaboradores na estruturação das políticas públicas para a região que polarizam, estabelecendo uma interação mais direta junto ao poder público e às comunidades locais (MEC, 2010b, p.19, grifo da pesquisadora).

Assim sendo, observa-se que, apesar das congruências entre as premissas da Educação Popular, aqui expostas, e a proposta dos Institutos Federais aliadas à sociedade, principalmente ao atendimento da população menos favorecida, a expansão desta política encontrou dificuldades em relação à permanência e êxito dos estudantes. Tais dificuldades são compreendidas, considerando a formação da Rede Federal, criada e executada dentro da lógica do capital: de sistema educacional excludente, conduzindo a formação profissional voltada às demandas do mercado de trabalho, ainda dentro da lógica do dualismo educacional, e se deparando com diversas facetas da evasão e da retenção que

impedem o acesso contínuo à política. Cabe refletir quanto à superação da reprodução das desigualdades sociais e educacionais que implicam numa mudança de paradigma social contrário à lógica exploratória e excludente de mercado. Caso contrário, os empecilhos à democratização do ensino permanecerão, e a política continuará dependente dos diferentes interesses dos governos que se estabelecerão.

Entende-se, aqui, a democratização do ensino, assim como descreve Melo (2011), as ações para ampliar o número de vagas, bem como aumentar o acesso dos estudantes de classes sociais menos favorecidas, bem como de indígenas e da população negra, e de garantir a sua inclusão e permanência em bons cursos de instituições de ensino com boa qualidade. A autora considera também, como parte das ações de democratização do ensino, a disponibilidade das vagas em regiões antes sem acesso à oportunidade dos cursos (a interiorização), as ações voltadas aos estudantes para que permaneçam até o final do curso e as ações afirmativas, mecanismos de inclusão de classes historicamente excluídas, a exemplo das cotas.

A promoção de ações afirmativas pode estar presente tanto na ampliação das formas de ingresso ao ensino público de qualidade, quanto nas ações para permanência e êxito acadêmicos. As ações afirmativas podem ser definidas como “mecanismos para se promover a igualdade de oportunidades (igualdade material) e a justiça social, a fim de minimizar as desigualdades econômicas e sociais”. Podem ser estabelecidas em diversos setores, como educação, saúde, mercado de trabalho, etc, a fim de auxiliar a “desenvolver uma sociedade plural, diversificada, consciente, tolerante às diferenças e democrática”, sendo importantes instrumentos para se promover os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988 (STROISCH; BORGES, 2013, p.13).

Democratizar o ensino não é suficiente apenas em ampliar as formas de ingresso às diferentes classes sociais desfavorecidas, mas em garantir que os estudantes de tais classes possam acessar esta política desde o início até a conclusão do curso. A democratização do ensino também se trata de zelar pela permanência dos estudantes na educação pública. Para que seja possível, mais à frente, falar de permanência e êxito no campus Itapipoca, é necessário conhecer

quem são os estudantes que conseguiram ingressar nesta política e que parcela da população itapipoquense assistida eles representam.