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A educação problematizadora de Paulo Freire

3.2 Educação Ambiental: um campo em construção

3.2.1 A educação problematizadora de Paulo Freire

VELASCO (1999) analisa a EA a partir da sua compreensão sobre o que seja meio ambiente e educação, e define o campo como uma pedagogia problematizadora. Considera o meio ambiente como espaço-tempo histórico ocupado pelos entes onde transcorre a vida dos seres humanos. Esse espaço-tempo é o produto da presença e das relações existentes entre os entes, que são considerados tanto objetos físicos (animais, pedras) quanto objetos não físicos da cultura (uma teoria científica, um fenômeno de uma dada cultura). Baseado no conceito de trabalho, VELASCO (1999) afirma que sem o homem não haveria meio ambiente. O trabalho como definiu Marx é “um processo entre o homem e a natureza no qual o homem realiza, regula e controla mediante sua própria ação seu intercâmbio de matérias com a natureza (...) para se apropriar sob uma força útil para sua própria vida a matéria da natureza” (MARX apud VELASCO, 1999, 10). Dado que o trabalho é uma das atividades que diferenciam os seres humanos dos demais seres vivos, o meio ambiente é ao mesmo tempo a condição e o resultado histórico da interação dos humanos e da natureza que os cercam.

A educação é entendida como sinônimo de conscientização, caracterizando esta última como um desvelamento crítico da realidade e a ação transformadora sobre ela, onde

ninguém educa ninguém como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo (FREIRE, 1970, Cap II). Assim educar-se é conscientizar-se em diálogo com os outros no contexto de uma ação transformadora libertadora sobre a realidade eco-social rumo a uma comunidade humana sem opressores nem oprimidos (VELASCO, 1999, p. 10).

A EA é a ação dialogada de conscientização com o intuito de tornar o meio ambiente o espaço-tempo utópico almejado pelo processo de libertação. Educar para uma ação transformadora para superar os mecanismos que dicotomizam opressores e oprimidos e a devastação da natureza. Isto faz da EA uma tarefa comunitário-histórica e individual sem fim, na qual o conhecimento alimenta o agir anti-dominador e anti-devastador e este por sua vez traz mais elementos ao conhecimento crítico da opressão e da devastação.

VELASCO (1999), afirma que a EA deve acontecer de forma problematizadora e interdisciplinar, abordando um caráter sistêmico, que integre as ciências naturais, assim como as ciências humanas. Nesse processo é importante que se estabeleça o caráter histórico da ação dos seres humanos e da interação das relações entre os sujeitos e destes com o mundo.

Acredita que uma pedagogia problematizadora auxilie no fortalecimento de uma EA capaz de funcionar no cotidiano escolar. Sendo assim, o autor inicia uma análise do que seja uma pedagogia problematizadora, realizando sua reflexão a partir de Freire (1970), que caracteriza a educação bancária como um instrumento que preserva as classes subalternas

como simples objetos a serviço das classes dominantes. O sujeito do processo educacional são os educadores, enquanto os educando são meros objetos em quem o conhecimento é depositado. Contra essa educação bancária, Freire propõe a educação problematizadora, como um instrumento do processo de libertação. A proposta é de que se exerça um diálogo conscientizador entre educador e educando, reunindo “o desvelamento crítico da realidade vivida por ambos e a prática transformadora em relação a esta” (FREIRE apud VELASCO, 1999, 13). Apesar de muito contribuir com a educação, a importante obra de Paulo Freire só conseguiu se transformar em proposta pedagógica concreta no que diz respeito à educação de jovens e adultos.

VELASCO (1999) se apóia em Saviani (1983), que de acordo com o que diz Freire sobre a importância da experiência vivida pelos sujeitos no processo educacional, critica a desvinculação existente entre a realidade vivida por alunos e professores e os conteúdos programáticos da escola. Desse modo Saviani cria uma proposta alternativa pedagógica em que a prática social do educador e do educando dá razão ao processo ensino-aprendizagem. A problematização aparece como uma etapa para explorar as questões que precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e dos conhecimentos que precisam ser trabalhados para tal fim. Assim acontece a incorporação dos instrumentos culturais transformados em elementos ativos de transformação social.

Saviani (1983) não conseguiu demonstrar como sua proposta pedagógica funciona no dia a dia das diversas disciplinas escolares. Isso faz com que muitos agentes da educação não vendo como poderiam funcionar as formas alternativas e problematizadoras de educar de Freire e Saviani, desanimem e se adaptem à educação bancária. Diante dessa reflexão, VELASCO (1999) questiona: Como instrumentalizar uma pedagogia problematizadora capaz de alicerçar a EA, capaz de funcionar no dia a dia das diversas disciplinas que configuram o quadro curricular da educação formal?Para tal inserção, o autor discorre sobre a pedagogia problematizadora, com idéias para trabalhar a EA em cada disciplina e ainda sobre a atuação de uma escola cidadã.

O autor tenta definir a pedagogia problematizadora como aquela que: dispõem os instrumentos da cultura erudita a serviço da conscientização; articula as ações pedagógicas a partir das questões ligadas à vida diária e a luta dos oprimidos; integra a cultura “erudita” e a chamada cultura “popular” estabelecendo vínculos de mútuo enriquecimento; propicia a construção dialógica do conhecimento vivo numa dinâmica onde os sujeitos da educação são educandos-educadores, porque são investigadores críticos; aposta na capacidade de luta dos e com os oprimidos para melhorar a vida e para, em última instância, superar o capitalismo;

defende a tomada democrática das decisões e visa à superação da disciplina verticalmente imposta pela auto-disciplina consensualmente estabelecida e avaliada.

A partir dessa pedagogia, são sugeridas algumas idéias gerais para trabalhar a EA em cada disciplina, sendo elas:

1) vincular os conteúdos trabalhados à questões da realidade sócio-econômico- ecológica brasileira atual (...)

2) reservar espaços para discussão dessas questões sem medo de se afastar do tratamento técnico específico dos conteúdos, pois sem isso, estes caem no vazio; 3) fundamentar o tratamento técnico dos conteúdos e a discussão das questões socioeconômicas a eles ligadas na pesquisa experimental, de campo e bibliográfica; 4) incentivar o trabalho coletivo e não, a concorrência individualista entre os alunos e o diálogo professor-alunos como instrumento da re-construção dos conhecimentos e posicionamentos;

5) incentivar as posturas de reivindicação e de proposta dos alunos no âmbito da escola, o bairro da escola, o bairro da residência dos alunos, a cidade e o país como um todo, exercitando a cobrança em relação aos gestionários e governantes dos diversos escalões;

6) promover diálogo e a discussão em sala de aula e fora desta com as pessoas diretamente envolvidas nas questões em debate;

7) promover ações (mesmo que modestas) visando à solução (total ou parcial) dos problemas debatidos. (VELASCO, 1999, p. 16)

A escola que pratica a EA é definida pelo autor como escola cidadã que “assume para si dentro e fora da sala de aula, o debate e a busca de soluções para os problemas sócio- econômicos-ecológicos da comunidade na qual está inserida” (VELASCO, 1999,16). Assim, se o bairro em que a escola se insere não tem esgoto ou possui desemprego, essas questões devem ser exploradas nas atividades escolares, como problemas que devem ser debatidos com intuito de serem resolvidos, pelo menos parcialmente. “Somente essa escola cidadã comprometida com o bairro é capaz de integrar-se literalmente a ele e de integrar com as famílias numa ação sócio-político-ecológica de conteúdo profundamente educativo para ambas as partes” (VELASCO, 1999, 16).

Assumindo as questões do bairro, a escola cidadã acolhe os desafios sócio-ecológicos postos em nível da região, do país, do continente e do planeta com um todo, na direção de uma sociedade ecomunitarista, onde não exista a dicotomia opressor-oprimido e esteja presente um vínculo com a natureza de caráter preservativo-regenerador.

Outros autores que se baseiam nas idéias de Freire e nos princípios da pedagogia problematizadora para definir a EA são BERTOLUCCI et al (2005). Acreditam que o campo da EA possui várias adjetivações, e aqui são descritas duas delas, a EA crítica e a EA transformadora. A primeira vai ao encontro do pensamento crítico da educação, tendo suas raízes nos ideais democráticos e emancipatórios, que foram constitutivos da educação

popular, tendo Paulo Freire com uma referência desse pensamento. Nessa tendência acredita- se numa compreensão das relações sociedade-natureza, na intervenção sobre problemas e conflitos ambientais, na mudança de valores e atitudes e na formação de um sujeito ecológico.

BERTOLUCCI et al (2005) citam o trabalho de Mauro Guimarães (2004) afirmando que o objetivo da EA crítica é promover ambientes educativos que possam interferir sobre a realidade e seus problemas socioambientais e nesse processo educativo, num exercício ativo de cidadania dos educandos e educadores, contribuindo na transformação da grave crise ambiental.

Os autores se apóiam ainda no trabalho de Carvalho (2004), que atribui à prática educativa a formação do sujeito humano enquanto ser individual e coletivo, historicamente situada. Essa tendência aposta num indivíduo que seja capaz de transformar a realidade em que está inserido.

A EA transformadora iniciou-se no Brasil nos anos de 1980 devido à empatia dos educadores junto aos militantes dos movimentos sociais e ambientalistas que apoiavam a transformação da sociedade, questionando os padrões industriais e de consumo estabelecidas no capitalismo. Várias são as influências dessa tendência, tais como pedagogia libertária e emancipatória de Paulo Freire, a pedagogia histórico-social crítica, a organização dos movimentos populares na construção de alternativas societárias viáveis, entre outras.

A finalidade da EA transformadora é formar os indivíduos para que atuem criticamente na superação das relações sociais vigentes, compactuando com uma ética ecológica, rompendo com os padrões dominadores da contemporaneidade. Isso rompe com a idéia reducionista que separa o ecológico do social e que não contribui para uma educação integradora e complexa do mundo.

Essa tendência baseia-se numa educação permanente, cotidiana e coletiva pela qual se age e reflete, transformando a realidade e a vida. Está focada na pedagogia problematizadora do concreto vivido, que ao mostrar os diferentes interesses e modos de relação com a natureza dos diferentes grupos sociais, pode suscitar a busca por caminhos mais democráticos e justos para todos. A crítica e autocrítica, assim como ações políticas podem estabelecer movimentos de transformações sociais possibilitando novas formas de relacionar-se com a natureza. De acordo com BERTOLUCCI et al (2005), educar para transformar significa romper com as práticas sociais contrárias ao bem estar público, estando articulada às mudanças éticas que se fazem pertinentes.

Um outro estudo sobre a EA que se apóia na pedagogia problematizadora de Freire foi realizado por LOUREIRO (2004), que investiga sua definição a partir da própria educação,

buscando nela alguns princípios como a valorização e contextualização dos sujeitos envolvidos no processo educativo, a participação e a transformação social.

O autor busca ampliar o entendimento da EA, destacando o caráter educativo dessa área, pois se sabe que sua história esteve muito mais inclinada aos setores técnicos da temática ambiental, reduzindo a ênfase dada aos conteúdos e metodologias pedagógicas.

No plano das tendências ambientalistas hegemônicas, a educação ficou restrita à resolução de problemas ambientais com finalidades pragmáticas, sem estabelecer críticas às questões sociais atuais. Não se leva em conta os aspectos problematizadores, permanentes e coletivos da educação, considerando aceitáveis os conhecimentos técnicos e comportamentos definidos, como algo imposto em todos os grupos sociais, independente das especificidades sociais. Esse pragmatismo na EA gerou um desequilíbrio entre o educacional e o ambiental. Um dos principais resultados disso é que os programas e ações da área terminam sendo reprodutores de dicotomias e reducionismos.

A EA defendida pelo autor aponta para uma nova compreensão do processo educacional, em que a intenção desta não está apenas na geração de novos comportamentos, mas em entender as especificidades dos grupos sociais, seus meios de vida, condutas e sua situação na sociedade, a fim de criar processos coletivos, baseados no diálogo, na ação e problematização do mundo.

É necessário reconhecer que para que os sujeitos do processo educativo sejam definidos, devem passar pela identificação dos grupos sociais, verificando se estão submetidos a uma vulnerabilidade ambiental, em função da desigualdade econômica da sociedade. Dessa maneira descarta-se a idéia de pensar um grupo social sem considerar o contexto que permitiria entender as diferentes relações sociais na natureza. A educação é um dos meios de atuação pela qual o homem se realiza como ser da sociedade. É aquela em que se criam meios de superação da dominação e exclusão, em relação aos grupos socais e aos seres vivos em geral. Ao incorporar a perspectiva dos sujeitos sociais, essa EA permitiria estabelecer uma prática pedagógica contextualizada e crítica, trazendo a tona os problemas sociais, as causas do baixo padrão de qualidade de vida e da “utilização do patrimônio natural como uma mercadoria e uma externalidade em relação a nós” (LOUREIRO, 2004).

A EA que LOUREIRO (2004) defende é aquela que segundo Paulo Freire consegue ler o mundo, o conhece e transforma-o, envolvendo para tal, metodologias participativas e dialógicas, assimiladas e construídas coletivamente. A educação seria então:

a ação simultaneamente reflexiva e dialógica, mediatizada pelo mundo, que possui na transformação permanente das condições de vida (objetivas e simbólicas), o meio para a conscientização, o aprender a saber e agir de educadores/educandos (...) Educar é transformar pela teoria em confronto com a prática e vice-versa (práxis), com consciência adquirida na relação entre o eu e o outro, nós (em sociedade) e o mundo. É desvelar a realidade e trabalhar com os sujeitos concretos, situados espacial e historicamente (LOUREIRO, 2004, 17).

Outro elemento importante no fazer da EA é a participação. Participar é respeitar o outro, assegurar igualdade na decisão, compartilhar poder, propiciar acesso justo aos bens socialmente produzidos. Para LOUREIRO (2004), participação é “o exercício da autonomia com responsabilidade, com a convicção de que a nossa individualidade se completa na relação com o outro no mundo, em que a liberdade individual passa pela liberdade coletiva”. Tal afirmativa tem duas implicações na EA:

Ao partirmos do pressuposto de que participar é a autopromoção dos sujeitos e o meio para a concretização da cidadania em suas múltiplas dimensões, queremos dizer que esta é a negação direta das práticas assistencialistas e paternalistas. Nos projetos deste tipo se envolve a “comunidade” apenas no momento da execução das atividades, como se a verdade e o correto pudessem ser definidos anteriormente por técnicos, ou “pessoas iluminadas”, que sabem o que deve ser executado pelos que se encontram no “mundo da ignorância (LOUREIRO, 2004, p. 17).

Outro conceito destacado por LOUREIRO é o de transformação social, uma finalidade da educação cidadã, onde a vida no planeta e a história de nossa espécie se situam num movimento dialético, articulando a dimensão ética e reflexiva do agir.

A educação possui diversas dimensões que estão conectadas, como, por exemplo, perceber, sentir, interpretar, conhecer, agir, estando essas dimensões em constante transformação. “Mudar e mudar-se simultaneamente é a unidade complexa da nossa espécie, no constante tornar-se/formar-se na história, finalidade e condição inerentes à nossa natureza enquanto ser biológico e vivendo em sociedade” (LOUREIRO, 2004). O autor diz ser esta EA, aquela relevante para os sujeitos que pretendem ter nela um instrumento de transformação da sociedade.

Outro trabalho sobre as concepções de EA embasadas nas idéias de Paulo Freire foi realizado por GUIMARÃES; ROCHA (2005). Segundo essas autoras, a EA deve ser concebida levando em consideração, por exemplo, a importância do diálogo no processo ensino-aprendizagem, a relação igual entre educador e educando, a valorização do conhecimento do educando. Na análise dessas autoras, na década de 1960, o caráter educativo dos projetos ambientalistas reduzia as questões ambientais ao problema ecológico, sem

incorporar as dimensões sociais, culturais, políticas e éticas que também condicionam o ambiente. Essa educação apresentava-se sem um aprofundamento teórico dos métodos pedagógicos e das relações entre o individual e coletivo. Na década de 1980 emerge a EA transformadora, que aborda a idéia de integração, já que dilui o reducionismo das questões ecológicas, trabalhando “os indivíduos em suas subjetividades e práticas nas estruturas sócio- naturais existentes” (LIMA, 2004, apud GUIMARÃES; ROCHA, 2005, p. 1). A EA transformadora recebe influência da teoria de Paulo Freire que destaca a visão dialética da educação.

Segundo essa teoria, o homem é sujeito da educação e, ele chegará a ser sujeito através da reflexão sobre seu ambiente concreto: quanto mais ele reflete sobre a realidade, sobre a sua própria situação concreta, mais se torna progressiva e gradualmente consciente, comprometido a intervir na realidade para mudá-la. Desse modo evidencia-se a tendência interacionista do homem-mundo, sujeito-objeto. (GUIMARÃES; ROCHA, 2005, p. 1)