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A emancipação do tempo

3 O TEMPO E OS TERRITÓRIOS: O RITORNELO

3.2 A emancipação do tempo

Mas agora, num exercício extremo, as diversas faculdades dão-se mutuamente os harmônicos mais afastados uns dos outros, de maneira a formar acordos/ acordes essencialmente dissonantes. A emancipação da dissonância, o acordo/acorde discordante é a grande descoberta da Crítica da faculdade judicativa, a última reversão kantiana. A separação que ela reúne era o primeiro tema de Kant na

Crítica da razão pura. Mas no fim ele descobre a discordância que faz

acordo/acorde. Um exercício desregrado de todas as faculdades que vai definir a filosofia futura, assim como para Rimbaud o desregramento de todos os sentidos devia definir a poesia do futuro. Uma música nova como discordância, e como acordo/acorde discordante, a fonte do tempo1.

A expressão “emancipação da dissonância”, utilizada pelo compositor Arnold Schoenberg no começo do século XX para se referir à “quebra” da tonalidade das músicas dodecafônicas, é utilizada por Deleuze nesta única passagem, nesse texto, intitulado Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana. É curioso, ou talvez,

uma pena, que Deleuze não tenha investido nessa expressão e no tema da dissonância em outros trabalhos, sobretudo nos seus escritos subsequentes a Leibniz e o barroco. Pontuamos aqui este último, pois suspeitamos que tenha sido a partir de sua escrita,

1 DELEUZE, G. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. Ed 34. “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana”, p. 44.

concomitante aos encontros de Deleuze com musicólogos e compositores, mais precisamente Pascale Criton (que à época pesquisava o cromatismo), que a dissonância tenha despertado no filósofo maior interesse e curiosidade. O tema da dissonância aparece pouquíssimas vezes em outras obras de Deleuze e com uma recolocação menos pontual e precisa do que nesse pequeno capítulo de Crítica e clínica, publicado nos últimos anos de sua vida, em 1993. Pois, mais curioso ainda é que, para o filósofo, a emancipação da dissonância lhe serve para compreender um novo estatuto do conceito de Tempo trazido em sua leitura da última crítica de Kant, a Crítica da faculdade do juízo.

Nota-se que, neste momento de Crítica e clínica, Deleuze retoma aquele tema do “exercício disjunto das faculdades”, discutido em Diferença e Repetição sob a perspectiva da noção de limite. Porém, agora, o acordo discordante das faculdades é retomado sob uma perspectiva musical. Para além do acordo, o “accord”, na língua francesa, designa também o acorde musical: o conjunto, ou bloco, de três ou mais notas soando simultaneamente e que, assim, engendra uma cor, uma tonalidade ou um timbre, uma sensação, ou denuncia uma função ou caminho harmônico dentro do sistema tonal. Os acordes podem se expressar como hecceidades, aquelas individuações sem sujeito. De todo modo, o elemento discordante no acordo/acorde corresponderia aqui às dissonâncias que colocam em cheque a estabilidade do acorde configurada por suas dependências, suas funções e objetivos sistêmicos, seu passado e seu porvir, etc. “É como se em Kant já se ouvisse Beethoven e em breve a variação contínua de Wagner”2.

2 “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana”, p. 40. Vale ressaltar para os leitores não músicos que a dissonância esteve presente na música muito antes da proposta dodecafônica da chamada “2ª Escola de Viena”, e bem antes de Beethoven. A dissonância foi explorada como “pequenos temas”, pontes, dobras, “estranhamentos” contrastantes, em inúmeras composições do período barroco, e certamente amplamente tocada na música “das ruas”. De todo modo, nos interessa a escuta de Deleuze para isso que ele chama de emancipação da dissonância, espécie de liberação total de uma certa ordem legisladora de como as coisas “devem” soar e como tal liberdade e des-hierarquização das formas pode dar consistência, manter de pé as matérias de expressão.

Henrique Lima traz uma interessante análise sobre esse momento de Crítica e clínica. Ele pontua que o acordo discordante entre as faculdades, que Deleuze enxerga com

a terceira crítica de Kant, é o da exploração da tensão. Assim,

Esta perspectiva poderia, certamente, consistir numa chave de compreensão do que se passa na “terceira crítica”, no nível da estruturação relacional entre os elementos envolvidos na composição – as faculdades –, isto é, na estruturação do modo segundo o qual cada elemento envolvido no conjunto se comporta. Isso fica tanto mais claro na leitura de Deleuze, quanto mais ele afirma a terceira crítica como um livro que apresenta o exercício divergente das faculdades, isto é, o exercício em que cada faculdade evolui livremente (em contraposição aos dois livros anteriores, que apresentavam o jogo entre as faculdades como organizado segundo um princípio de convergência em que as diferentes faculdades eram necessariamente submetidas a uma delas). Este novo modo de disposição da relação entre as faculdades, em que cada uma delas evolui livremente não submetidas a outras faculdades, sendo, portanto, não orientadas a um fim, implica em uma variação teórica sobre a categoria do sensível.3

Deleuze entende que a primeira crítica de Kant, a Crítica da razão pura, coloca o entendimento como faculdade fundamental ou legisladora. Na segunda, na Crítica da razão prática, tem-se um domínio da razão sobre as demais faculdades. E, finalmente, na

Crítica do juízo, as faculdades soam livres, desordenadas. Formam entre elas acordes

discordantes. “É uma estética do Belo e do Sublime, onde o sensível vale por si mesmo e se desdobra num pathos para além de toda lógica, que apreenderá o tempo no seu jorro, indo até a origem de seu fio e de sua vertigem”4

.

A primeira fórmula poética que Deleuze convoca para pensarmos a filosofia kantiana é um grito de Shakespeare, em Hamlet: “o tempo está fora dos gonzos”5

. Esta expressão formula a primeira emancipação do tempo no curso das três críticas de Kant: o tempo como forma a priori. Portanto, ele não é algo produzido ou dado pelo movimento;

3 LIMA, Henrique R.S. Da música, de Mil platôs, p. 17.

4 DELEUZE. “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana” in DELEUZE.

Crítica e clínica, p. 43.

5 Shakespeare, Hamlet, I, 5 (“The time is out of joint”) apud DELEUZE. “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana” , p. 36.

ele é a própria condição do movimento. O tempo deixa de ser ciclos, voltas, períodos, sustentados por um movimento motriz, e passa a ser linha, “inexorável e incessante”. Pois,

Tudo o que se move e muda está no tempo, mas o tempo ele mesmo não muda, não se move e tampouco é eterno. Ele é a forma de tudo o que muda e se move, mas é uma forma imutável e que não muda. Não uma forma eterna, mas justamente a forma daquilo que não é eterno, a forma imutável da mudança e do movimento6.

Com esta primeira emancipação do tempo, o tempo emancipado do movimento, podemos entrever uma nova concepção ou reformulação da própria ideia de movimento. Se o movimento é condicionado pelo tempo, por um tempo que não tem sua natureza alterada jamais, ele deixa de ser sentido estritamente como movimento extensivo, fenomênico, correlato aos retornos cíclicos celestes. O movimento é, de certa forma, também liberado das periodicidades e circularidades como sendo legisladoras e condicionantes de sua natureza ou de sua existência.

Há uma segunda emancipação do tempo, consequente disso que acabamos de analisar. Deleuze nos mostra uma elaboração de Kant sobre o cogito cartesiano e nos diz o seguinte:

O “eu penso”, é um ato de determinação instantânea, que implica uma existência indeterminada (eu sou) e que a determina como uma substância pensante (eu sou uma coisa que pensa). Mas como a determinação poderia incidir sobre o indeterminado se não se diz de que maneira ele é “determinável”?7

A resposta kantiana, de acordo com a leitura de Deleuze, é a de que o indeterminado é determinável pelo tempo, sob a forma do tempo. Esta é a segunda emancipação do tempo: só ele determina o indeterminado. “Eu sou”, Deleuze analisa, é um eu passivo,

6 DELEUZE. “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana”, in DELEUZE.

Crítica e clínica , p. 38.

7 ibidem. Apesar de informalmente ser mais recorrente a tradução da fórmula Je pense, donc je suis como “Penso, logo existo”, adotamos aqui a tradução “Penso, logo sou”.

determinado pelo tempo, isto é, aquele indeterminado que experimenta as afetações de um tempo sobre si mesmo. Mas ele é afetado, e logo, determinado porque:

Eu (Je) é um ato (eu penso) que determina ativamente minha existência (eu sou), mas só pode determiná-la no tempo, como a existência de um eu (moi) passivo, receptivo e cambiante que representa para si tão somente a atividade de seu

próprio pensamento. O Eu e o Eu estão, pois, separados pela linha do tempo que

os reporta um ao outro sob a condição de uma diferença fundamental. (...) É como um duplo afastamento do Eu e do Eu no tempo, que os reporta um ao outro, cose- os um ao outro. É o fio do tempo.8

A forma pura do tempo divide o sujeito em eu empírico e eu transcendental. É por esta cesura do tempo que o ato de pensar é impulsionado. “Eu, é um outro”9

. Eis a segunda fórmula poética extraída por Deleuze, a célebre exclamação de Rimbaud em uma carta de 1871, e que resume a segunda emancipação do tempo em Kant.

É um paradoxo pois a ação/atividade do eu, que afeta o tempo, nos faz experimentar a nossa passividade dentro dele. Ao afetar o tempo, o experimentamos como nossa condição, experimentamos a nossa alteração; é o tempo que nos afeta. E nos determina como um eu passivo. Portanto, o tempo nos cinde: estamos no interior do tempo, somos determinados por ele, mas o afetamos (“já que meu espírito em relação ao tempo se encontra representado como distinto de mim”10

).

Como já dito, o que nos interessa aqui é menos uma formulação do sujeito do que do tempo, muito embora possamos entendê-los como conceitos aliados. Com a fórmula de Rimbaud, na sua elaboração da relevância do conceito de tempo na filosofia inaugurada por Kant, Deleuze conclui: “o tempo, portanto, poderá ser definido como o Afeto de si por si, ou pelo menos como a possibilidade formal, de ser afetado por si mesmo”11

.

8 DELEUZE. “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana”, p. 39

9 Rimbaud, carta a Izambart, maio de 1871, carta a Demeny, 15 de maio de 1871 apud DELEUZE. “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana” (in Crítica e clínica), p. 38.

10 p. 40 11 p. 40

A terceira fórmula poética, que concerne à segunda crítica de Kant, a Crítica da razão prática, é extraída de Kafka: "Que suplício ser governado por leis que não se

conhece! Pois o caráter das leis tem necessidade assim do segredo sobre seu conteúdo..."12 . Esta terceira fórmula, apesar de esboçar uma consequência das emancipações já apresentadas, não diz respeito precisamente ao tempo e não nos estenderemos sobre ela.

É sobre a terceira crítica, onde Kant discute o conceito de juízo estético, que Deleuze convoca a emancipação da dissonância. "Chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos (...) um longo, imenso e raciocinado desregramento de todos os sentidos"13

. Eis a quarta fórmula poética, de novo, a voz de Rimbaud. Na leitura que Deleuze faz de Kant, o acordo/acorde discordante das faculdades é decisivo na reformulação do estatuto do tempo. Primeiro, a importância conferida a tal conceito, que, como vimos, foi inaugurada com a compreensão do tempo (e do espaço) como forma pura da qual dependem os movimentos e o conhecimento. O tempo engendrador. Agora, com a estética do Belo e do Sublime, o tempo não aparece mais como uma categoria a priori apenas: “um exercício desregrado de todas as faculdades que vai definir a filosofia futura, assim como para Rimbaud o desregramento de todos os sentidos devia definir a poesia do futuro. Uma música nova como discordância (...), a fonte do tempo”14

.

Assim, Deleuze traz a dissonância para se pensar o tempo como produção da sensibilidade. Uma dissonância que, em música, não se satisfaz na escolha dos sons dissonantes que compõe os acordes, ou a série, ou os clusters, mas, antes, uma dissonância dos tempos. De novo, o ritmo, este elemento que assina a expressão das matérias.

12 Kafka. Protecteurs (in La Muraille de Chine, Gallimard) apud DELEUZE. “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana” (in Crítica e clínica), p. 41

13 Rimbaud. idem, apud DELEUZE. “Sobre quatro fórmulas poéticas que poderiam resumir a filosofia kantiana” (in Crítica e clínica), p. 42.

Por mais que tenha sido convocada, aqui nesta dissertação, a importância do movimento no pensamento – o movimento entendido como a criação e como a atualização da diferença – recorremos constantemente à ideia de um “elemento condicionante” desse movimento. Aquele elemento/causa que possibilita o movimento, que produz modos de vida, que torna sensível o insensível, ou que é a fonte do tempo. Oscilamos entre a Diferença (ser do sensível) e a Duração, distinguindo conceitualmente uma e outra, mas também, em alguns momentos, fizemos delas conceitos correlatos, quando duração e diferença tornam-se um mesmo princípio, determinante da multiplicidade. De todo modo, percebe-se nessas alternâncias, a permanência da primazia do sensível, ou melhor, da intensidade. A força que vai de encontro à inflexibilidade das imagens dogmáticas do

pensamento, dos ritmos militares. E ambos os conceitos, diferença e duração, pressupõem as intensidades, o caos, o intempestivo, as modulações, as coexistências heterogenéticas, os acontecimentos. Posto isto, o que gostaria de pontuar agora é que no percurso de Deleuze, na sua relação possível com a música, enquanto filósofo, o conceito de Ritornelo, elaborado juntamente com seu parceiro Guattari, apresenta uma reformulação de todas essas alternâncias, distinções conceituais e simultaneidades discutidas até então. “Uma música nova”... Como se o Ritornelo passasse a ser uma nova fórmula da repetição, do eterno retorno, do espaço-tempo, do tempo perdido.