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Dois, vários ou um só método?

2 ALGUNS PONTOS DE ANÁLISE PARA

2.3 Dois, vários ou um só método?

Desterritorialização e dramatização no pensamento nômade

As criações são constituições de espaços-tempos.

Anne Sauvagnargues, bem como outros comentadores franceses de Deleuze, procura sempre lembrar da importância do método na filosofia deste pensador. O fato de todos serem franceses e se preocuparem com o método é comicamente suspeito. De toda forma, Sauvagnargues elabora em seu livro Deleuze et l’art uma análise sobre o que ela denominará de método externalista na filosofia deleuziana, trazendo com ele toda noção de cartografia do pensamento.

Deleuze se interessou muito pela questão dos métodos nas produções do pensamento. Vejo que seus estudos sobre pensadores específicos partem de uma investigação sobre os métodos utilizados por eles na tentativa de compreender ou esboçar juntamente lógicas de pensamento, que como tais escapam de um “sistema racional em equilíbrio”29

. Podemos inferir, portanto, que há uma escuta de Deleuze para os métodos inclusive nos artistas (como vemos em Francis Bacon, no texto sobre Beckett, em Boulez, em Proust etc.), isto é, o método como sendo a construção singular de uma máquina movente para produção de lógicas e orquestração de forças, de devires. Desta maneira, Deleuze não só dedicou alguns estudos à noção de método propriamente dita como

28 Diferença e Repetição, p.333.

também permitiu que ela perpassasse por praticamente todas as suas pesquisas. Como se identificar o método (a máquina de guerra) fosse uma via de acesso para se entender ou experimentar a singularidade de um pensamento, aquele devir-menor, meio através do qual podemos escapar de uma estabilidade produzida pelo sedentarismo e enclausuramento de sistemas arborescentes não maquínicos, ou já “dados” por usos canônicos. Não é à toa o interesse de Deleuze pelas produções e operações artísticas e a maneira como ele se encontra com inúmeras e inúmeros autores/artistas para pensar com eles, para desenvolver os seus próprios métodos, suas lógicas e seus livros, e criar conceitos. Como já dito, Deleuze incorporou ao seu vocabulário vários conceitos, noções e ideias já esboçados por outros ou oriundos de disciplinas outras que não a filosofia. Assim, o que se percebe nestes furtos de Deleuze é, justamente, a própria noção de repetição esboçada por ele: a verdadeira repetição enquanto criação, isto é, constituição de (novos) espaços-tempos. O pensamento como criação e a filosofia como este ato do pensamento. Pois, nitidamente, o uso que Deleuze faz de tais noções, os planos para elas traçados, as relações produzidas, mostram que ele não simplesmente reproduz ou imita o que leu, mas antes, dramatiza um ruído ou outro que até então era imperceptível. Experimentar e criar com a volta destes conceitos outros encontros, outras lógicas de relação e forças. É polêmico, pois para muitos estudiosos de filósofos estudados por Deleuze ele “inventa” um outro Nietzsche, ou outro Espinosa, um outro Kant. No entanto, sabemos, sempre haverá discordâncias e concordâncias entre os especialistas. O que nos chama atenção em Deleuze, na verdade, são seus métodos, as suas recaídas, a produção de encontros disjuntivos e a escuta das linhas fugidias.

Compreendo inicialmente que Deleuze trabalha então com dois métodos: o método externalista, de convocar outras áreas e disciplinas, lugares estranhos, para o plano

aquele de ir até o limite da sensibilidade, o limite da imaginação, o limite do pensamento. E há um outro método, o método de dramatização, que procura “encarnar” as ideias, fazer da filosofia um teatro; método que também enaltece o caráter dinâmico ou “animado” das criações que os pensadores trazem.

Visando descobrir o conjunto da obra deleuziana em sua relação com a arte, Sauvagnargues propõe, no livro Deleuze et l’art, uma espécie de cartografia do pensamento deleuziano. Como todo método coerente ao estilo de Deleuze, a cartografia não é estática nem teleológica; ela se propõe a ser dinâmica e cinemática. E é este dinamismo que vai determinar a aparição dos conceitos, suas plasticidades, suas chegadas e suas partidas30

. Nessa cartografia conseguimos perceber o que o próprio Deleuze, com Guattari, chama de platôs. Cada platô com seu plano traçado, com seus atores, com seus artistas (seja Proust, Nietzsche, Beckett, etc.), com seus personagens conceituais, suas tendências, seus sintomas, as linhas de força, de fuga, as hecceidades (o Ciúme I, o Ciúme II, “as cinco horas da tarde” de Lorca, um acorde, o vento, etc.). Portanto, cada platô expressa uma vida subterrânea e reclama pelo seu contexto, por povoamentos de conceitos, signos, agenciamentos, patologias, moventes por linhas, ritmos, velocidades e lentidões. Portanto, em Mil platôs, Deleuze e Guattari se servirão do conceito de desterritorialização, efetivando o devir cartográfico, por assim dizer, operado por velocidades e lentidões (longitude), afectos e intensidades (latitudes). Este “voltar-se para fora” é notável em Deleuze, sobretudo, na sua predileção pela arte, por ir até a arte, não para assisti-la, ou descrevê-la, mas entrar nela, pensar com ela, desterritorializar-se filosoficamente para voltar para a filosofia, numa experimentação contínua e dinâmica, que procura escapar de

30 SAUVAGNARGUES, A. Deleuze et l’art, primeiro capítulo. Ela diz: “O impacto de um método externalista permite traçar itinerários na obra levando em conta velocidades e lentidões de circulação das noções, antes de propor uma leitura cursiva (...). É preciso então passar do estático abstrato do sistema, que negligencia a cronologia e contextualização, a uma dinâmica de problemas que mapeie suas variações sucessivas” (p.12).

um sistema em equilíbrio abstrato, erigido sobre conceitos fixos isolados, conceitos maiores. As ferramentas são criadas ali, com Proust, com Kafka, com Artaud, com Ozu, Godard, com Messiaen e Boulez, mas também com Nietzsche, com Bergson...

Assim, chamamos atenção ao caráter “externalista” do método deleuziano. Muito embora, a própria ideia de plano tão recorrente nas obras com Guattari interpela uma internalidade: a sua involução, a imanência31

. Portanto, Deleuze fala muito, em Nietzsche, de um “fora” ao qual o pensamento deve-se dirigir, muito embora trata-se de “um Fora que não tem nada a ver com o mundo exterior, e que é infinitamente mais fora que a exterioridade do mundo”32

. Talvez por isso a adjetivação “externalista” possa não ser a mais fiel aqui.

Por mais que a procura de Deleuze em se desterritorializar com as artes tenha se tornado um método cada vez mais intenso e efetivo, como acontece com a inserção da música, Sauvagnargues observa que ele nunca abandona a literatura, que seu interesse por esta arte é permanente mesmo havendo a progressão de uma semiótica sobre um plano não verbal. Segundo a autora, é mesmo “na literatura, através da literatura, a propósito da literatura que ele (Deleuze) encontra o problema das artes não discursivas (...). Deleuze inventa razões de teorizar sobre a literatura e propõe métodos apreensíveis para ajustar filosofia e literatura sem as confundir, nem subordiná-las”33

. Falei no começo deste capítulo sobre a identificação de literato atribuída por alguns a Deleuze, no entanto o que Sauvagnargues procura salientar é justamente que o encontro com a literatura não implica uma confusão entre as duas áreas, assim como o encontro com o cinema, com a pintura, com a geografia, etc. Tratam-se de encontros e produção de relações não metonímicas,

31 DOMINGOS, João Gabriel. Diferença e sensibilidade em Gilles Deleuze, p. 75-76 (citação na nota 14 deste capítulo).

32 “Un dehors qui n’a rien avoir avec le monde exterieur et qui est infiniment plus "dehors" que l’extériorité du monde”. Gilles Deleuze - Cinéma et Pensée, cours 68 du 06/11/1984 – 2 http://www2.univ- paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=366

encontros que como tais provocam aquilo que Deleuze e Guattari chamarão de sínteses disjuntivas, pelas quais nos esforçamos em resguardar, com os furtos, todas as catástrofes, as diferenças e as singularidades, ao invés de neutralizá-las e equilibrá-las em sistemas simetrizantes.

Eis duas particularidades do método inventivo que Deleuze propõe a si mesmo para promover o encontro real entre literatura e filosofia:

- A retomada de suas próprias obras, com reedições, reescritas, repetições de problemas/interrogações. Deleuze reelabora continuamente as problemáticas, com a repetição, buscando novos fôlegos e novas situações para elas. Isto faz parte de seu método e de sua escrita de maneira geral34

.

- A escrita a quatro mãos. Colocar-se com Félix Guattari. A síntese disjuntiva, conceito que aparece no primeiro texto da dupla sobre o pintor e escritor Klossowski, não trata de um retorno a um, mas diferenciação disjuntiva, cheia de bifurcações e alternâncias. Nas sínteses disjuntivas não há fusão de um componente em outro. Dessa escrita coletiva e “impessoal” nascem ou compõem-se os agenciamentos coletivos de enunciação (analisados pelos dois autores inclusive em Kafka: por uma literatura menor)35

. A busca pelo encontro se faz também sob forma de conversações, ou diálogos, nomes atribuídos a dois livros de Deleuze (Pourparlers e Dialogues)36

, sendo o segundo deles realizado com Claire Parnet, com quem ele também concedeu a célebre entrevista, muito bem registrada em

34 SAUVAGNARGUES, A. Deleuze et l’art, pp. 15-16

35 p.17, pp. 24-29. Sobre agenciamentos coletivos de enunciação ver DELEUZE. GUATTARI. Kafka: por

uma literatura menor.

36 Neste sentido, as noções de conversações e diálogos não correspondem a uma “comunicação” entre valores significantes acordados, troca de informações, etc. O elemento tensionador e desterritorializante parece interessar mais a Deleuze nas conversações do que a comunicação propriamente. “Assim Debussy, Diálogo do vento e do mar”. (“Tornar sonoras forças não sonoras”, in DELEUZE. Dois regimes de loucos, p.166 (p.145)).

formato vídeo-documentário por Pierre-André Boutang e Michel Pamart, e que ganhou o título de O Abecedário de Gilles Deleuze.

Ainda sobre o plano do encontro, Sauvagnargues ressalta em seu livro a ideia da simbiose editorial, quando Deleuze, lá em Apresentação de Sacher-Masoch, junta em um mesmo volume um escrito literário e um filosófico. Para a autora, “a simbiose se aplica às maneiras inéditas que Deleuze coloca em jogo para ajustar filosofia e literatura sem fundi- las, nem hierarquizá-las, mas conservando a diferença disjuntiva entre elas, o encontro necessário” e contínuo. Então, a ideia de encontro, entre filosofia e alguma arte ou produção artística, diz respeito a um entre meios, e fortalece a ideia de uma coexistência (coexistência entre os elementos de uma multiplicidade). Preservam-se as disjunções (em contraposição à ideia de um misto homogêneo) e o caráter vivo, em movimento, das relações37

. Sauvagnargues observa que em Masoch, Deleuze não faz um comentário a mais à obra desse escritor. E esta é a verdadeira crítica-clínica: uma crítica que não seja um adendo da obra, mas que provoque uma espécie de relação de vizinhança e de produções de territórios e deslocamentos. A crítica filosófica em um texto sobre uma obra artística, ao mesmo tempo, vale por ela mesma, mesmo que estimulada pelas pesquisas ‘alheias’. E é por esses sentidos todos que a crítica, segundo Sauvagnargues, não afirma a grandeza da obra, mas a “infirma”, por uma espécie de movimento de contração, de sucção, caráter de uma síntese que é ainda assim disjuntiva. Isto permite vida à obra: “permite uma concepção de crítica como encontro, vizinhança e conveniência vitais, quer dizer

37 “A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjunção "e... e... e..." Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tabula rasa, partir ou repartir de zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento (metódico, pedagógico, iniciático, simbólico...). Kleist, Lenz ou Büchner têm outra maneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelo meio, entrar e sair, não começar nem terminar.” (DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 1, p. 37). Assim, reside no projeto de Deleuze e Guattari a tentativa de liberar o movimento da correspondência entre identidades (Ser), do falso devir que liga um ponto a outro por linhas-pontos imóveis. Por isso, a reformulação do termo território consequente da elaboração do conceito de Ritornelo é nevrálgica aqui, para entendermos a natureza do movimento referido pela dupla Deleuze e Guattari e seus diferentes agenciamentos.

literalmente, clínica, ou modo de vida”38

. E assim, a pesquisa de uma “coadaptação de duas formas, o pensamento literário e o pensamento filosófico”, se constrói sobre este plano formal através desta superposição material de discursos que faz funcionar a singularidade de uma e de outra e de seus cruzamentos; pontos notáveis e pivotantes de encontro, criadores de outras singularidades. Pois “os signos não formam preferencialmente sistemas linguísticos autônomos e fechados, mas todos os sistemas de signos, inclusive os linguísticos, são abertos sobre outras semióticas vitais e políticas, significantes ou subjetivas”. Portanto, aquela imagem de uma cartografia viva, de uma geografia, serve também para o pensamento – tratam-se dos dinamismos espaço-temporais.

Indivíduos ou coletividades somos todos feitos de segmentos e de linhas, Deleuze diz39. Algumas linhas são menos duras que outras, mais erráticas. Deleuze se interessa pela lógica dessas linhas erráticas, as linhas de fuga, as linhas dos micro-devires que não nos recortam em segmentos fixos, mas que, antes, constituem nossas verdadeiras mudanças, “nossas loucuras secretas”, temporalidades outras, os nossos improvisos. E com as linhas surge então uma geofilosofia, pressuposta por uma relação código-território, um diagrama de fronteiras, limites e de limiares que se comunicam continuamente40

. O pensamento, as

38 SAUVAGNARGUES, A. Deleuze et l’art, p. 20.

39 DELEUZE. PARNET, C. “Políticas” in DELEUZE. Diálogos, p. 145.

40 Assim, dando continuidade à nota 37, onde observamos no projeto de Deleuze e Guattari uma tentativa de liberar o movimento da correspondência entre identidades (modos do Ser), cito uma outra passagem, agora de O que é filosofia?, em que os autores apresentam a o conceito de desterritorialiazação, com outras palavras: “O sujeito e o objeto oferecem uma má aproximação do pensamento. Pensar não é nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um em torno do outro. Pensar se faz antes na relação entre o território e a terra. Kant é menos prisioneiro que se acredita das categorias de objeto e de sujeito, já que sua ideia de revolução copernicana põe diretamente o pensamento em relação com a terra; Husserl exige um solo para o pensamento, que seria como a terra, na medida em que não se move nem está em repouso, como intuição originária. Vimos, todavia, que a terra não cessa de operar um movimento de desterritorialização in loco, pelo qual ultrapassa todo território: ela é desterritorializante e desterritorializada. Ela se confunde com o movimento daqueles que deixam em massa seu território, lagostas que se põem a andar em fila no fundo da água, peregrinos ou cavaleiros que cavalgam numa linha de fuga celeste” “Pensar não é nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um em torno do outro. Pensar se faz antes na relação entre o território e a terra. (...) Ela (a terra) se confunde com o movimento daqueles que deixam em massa seu território, lagostas que se põem a andar em fila no fundo da água, peregrinos ou cavaleiros que cavalgam numa linha de fuga celeste”. DELEUZE. GUATTARI. O que é a

forças, o corpo sem órgãos, as máquinas, as capturas, o Estado, o território, o ritornelo, tudo isso participa e constitui a lógica de funcionamento desses meios instanciados na noção de plano-cartografia. Vimos que esta nova lógica de relações, a lógica das forças, dá vida a regimes novos (logo, regimes abertos41

) de signos: os agenciamentos. Assim, o vetor de duplo sentido “relação-força” diz respeito ao entre, aos intermezzos (entre meios), às conjugações e aos glissandos entre elementos heterogêneos. Esta lógica de relação é, portanto, regida por forças (afectos, saltos, disparos, empurrões, quedas, etc.). Por isso adotamos como correlatas as expressões “lógica de forças” e “lógica das relações”.

Das relações estabelecidas entre filosofia e o Fora, subleva-se uma perspectiva política. Entendemos tal perspectiva como uma reformulação do conceito de política em sua relação com a vida, que, como vimos, diz-se mais das produções de vida, modos de existência e criação, do que daquilo que nasce do Direito, dos “fatos” e de “ideias justas e universais”. Com todas as motivações de Deleuze provocadas pelas artes – estas zonas exógenas –, em sua escuta heteróclita e cuidadosamente polifônica, percebemos contiguamente um projeto político de renovação da filosofia, de seus meios e de suas formas de expressão. Pois, para Deleuze,

A filosofia está penetrada pelo projeto de tornar-se a língua oficial de um puro Estado. O exercício do pensamento se conforma, assim, com os objetivos do Estado real, com significações dominantes como com as exigências da ordem estabelecida. (...) O que é esmagado e denunciado como nocivo é tudo o que pertence a um pensamento sem imagem, o nomadismo, a máquina de guerra, os devires, as núpcias contra natureza, as capturas e os roubos, os entre-dois-reinos, as línguas menores ou as gagueiras na língua.42

*

41 SAUVAGNARGUES, A. Deleuze et l’art, p.23. 42 DELEUZE. PARNET, C. Diálogos, p. 12.

Falamos do método de Deleuze de desterritorialização (ou método externalista). Mas também passamos por um outro método, que é o método de dramatização das ideias.

O já mencionado aspecto clínico da filosofia de Deleuze participa da crítica produzida pelo pensamento da diferença, deste pensamento que é movido pelo impensável. O clínico denota uma relação direta com a vida – lugar de uma prática da filosofia que é contra o seu tempo (nem atual, nem eterna) –, mas desejante, positiva. Guillaume Sibertin- Blanc avalia da seguinte forma: “Clínica, a filosofia é distinção e descrição sintomal dos modos de existência; crítica, ela é captura e avaliação de relações de forças implicadas por um modo de existência”. O encadeamento destes dois sentidos “mobiliza uma redefinição da filosofia prática e uma renovação de seus meios e formas de expressão”43

. Anne Sauvagnargues acredita que a análise dos signos através do agenciamento e as artes não linguísticas, por assim dizer, a descola, produz a desterritorialização dos sistemas discursivos, implicando na crítica da interpretação. Porém, para a autora, é pela literatura que Deleuze começa a estabelecer um espaço teórico de reconciliação entre filosofia e pensamento: “é graças a literatura que o filósofo reforma ‘a imagem do pensamento’: aquilo que força a pensar, é a intrusão violenta e involuntária de um signo, objeto de encontro que força o pensamento a criar”44

, e a partir daqui Deleuze atribuiria à literatura a função do diagnóstico. No entanto, não compartilho plenamente da mesma perspectiva. A intrusão violenta e involuntária de um signo como os signos trazidos pela música, por exemplo, não desperta menor grau de interesse em Deleuze, mas, ao contrário, lhe são ainda demasiados estranhos já que Deleuze era ainda “recém chegado” na música (apesar de progressivamente por ela apaixonado) para estabelecer uma investigação duradoura, consistente e assumida sobre filosofia e música, de maneira específica. Mais que isso, o

43 SIBERTIN-BLANC, G. Politique et Clinique (...), 2006. Introdução, p.2. 44 SAUVAGNARGUES, A. Deleuze et l’art, p. 25.

que suspeitamos é que, na verdade, o que Deleuze chama de método de dramatização seja superficialmente mais perceptível ou próximo da literatura, o que não faz desta a sua condição. Mais precisamente, ao interpelar juntamente com Guattari (em Mil platôs e O que é filosofia?, sobretudo) a filosofia sobre a criação de seus personagens (os

personagens conceituais, as hecceidades e os personagens rítmicos), para povoarem um plano (um território, uma paisagem, uma terra, um platô) e, assim, produzirem entre eles (dramas) encontros e acontecimentos, agenciamentos, amores, gritos, com músicas, ritornelos, máscaras, fantasmas, disfarces, deslocamentos, Deleuze recupera de forma viva a noção de dramatização sobre a qual ele escreveu em 1962, ao analisar Nietzsche, e em um texto de 1967, fruto de uma comunicação, intitulado “O método de dramatização”.

Em Diferença e Repetição, onde Deleuze faz da repetição, a diferença sem conceito, um movimento que opõe ao sedentarismo da representação, o método de

dramatização das ideias é retomado. Ao contrário de uma representação, a dramatização

Trata-se de produzir, na obra, um movimento capaz de comover o espírito fora de toda representação; trata-se de fazer do próprio movimento uma obra, sem interposição; de substituir representações mediatas por signos diretos; de inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou saltos que atinjam diretamente o espírito.45

Na comunicação de 1967, Deleuze diz, com outras palavras, que as dramatizações