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Caos, catástrofe, material-força, plano de composição

1 PENSAMENTO-MÚSICA

1.5 Caos, catástrofe, material-força, plano de composição

Dizíamos que a consistência é criadora. Mas, este ponto ainda nos é obscuro. Numa outra passagem de Mil platôs, no capítulo sobre o conceito de ritornelo, Deleuze e Guattari dizem o seguinte: “Não se trata mais de impor uma forma a uma matéria, mas de elaborar um material cada vez mais rico, cada vez mais consistente, apto a partir daí a captar forças cada vez mais intensas.”42

Em seus cursos sobre a pintura, que preparam a escrita de Francis Bacon – Lógica da sensação (1981), Deleuze convoca a noção de catástrofe para refletir sobre a criação

pictórica e a operação do pensamento criador a ela inerente. Tal operação terá muito a contribuir não só com a pintura e as artes, mas com a filosofia. Notamos que a pergunta “O que é filosofia?” percorre toda a obra de Deleuze, inclusive nos seus textos sobre as artes, mesmo quando ela não aparece de forma explícita. Dentro desta pergunta, ele interroga o que é o conteúdo próprio da filosofia e como ela opera, como o pensamento “pensa” filosoficamente e cria conceitos. Percebemos que nessa empreitada, há um interesse sobre o movimento do pensamento em si, que, como vimos, é endossado nos estudos de Deleuze sobre diversos autores, mas sobretudo em Espinosa, resgatado também para pensar o Cinema (imagem-movimento, imagem-tempo). No entanto, ao invés de realizar um duplo pensamento, ou um meta-pensamento – o pensamento sobre o pensamento, instaurando consequentemente uma última instância para o ato de pensar – o movimento ao qual se refere Deleuze é o movimento do corpo, dos corpos, dos afectos, da lógica da sensação, dos ritornelos. Deleuze está interessado nos processos produzidos por uma “heterogênese”, tendência que também caracteriza os campos operatórios do pensamento.

Segundo a filósofa Cíntia Vieira, em Diagrama e catástrofe: Deleuze e a produção de imagens pictóricas, a relação entre pintura e catástrofe, caracterizada por Deleuze nas

referidas aulas sobre pintura

é não apenas produtiva, mas, de maneira ao menos aparentemente paradoxal, condiciona seu sucesso. Isso quer dizer que um quadro que tenha perdido a relação com a catástrofe é um quadro fracassado. Ao entreter uma relação com a catástrofe, a pintura empreende uma luta contra os clichês, e a ausência de tal relação marcaria a recaída na reprodução de imagens-clichê43.

Em 1976 foi ao ar, na França, uma maravilhosa série televisiva de seis programas – divididos em dois episódios de 50 minutos cada um – dirigidos por Jean Luc Godard e intitulados “6x2”. É notável que Godard tenha trazido contribuições preciosíssimas para Deleuze. Em um dos episódios da série, o diretor apresenta, à sua maneira, o matemático francês Réné Thom, nome que se destacou entre os matemáticos da época quando publicou a sua “Teoria das Catástrofes”, em 1972. Nessa emissão, Thom explica que a catástrofe é uma “modificação da forma que conduz à aparição de uma descontinuidade. Por exemplo, aquela de uma dobra quando fechamos uma folha sobre ela mesma”. Deste conflito, geram-se (outras) formas. Para o matemático Jean-Pierre Bourguignon, boa parte da obra de Thom consiste em um “estudo das singularidades. Compreender porque uma coisa não é lisa, comporta arestas, pontos de cúspide. Ele estabeleceu uma ligação entre as singularidades e o nascimento das formas, aquilo que batizamos de ‘morfogênese’”. Thom enxerga uma necessidade de perceber as coisas enquanto formas/situações geométricas. Toda a ideia de morfogênese contida na teoria das catástrofes passa pela geometria. A linguagem também é resultado de um conflito e deve ser entendida assim, segundo o

43 VIEIRA, Cíntia. Diagrama e catástrofe: Deleuze e produção de imagens pictóricas. Viso · Cadernos de estética aplicada. Revista eletrônica de estética. No 15, 2014. http://revistaviso.com.br/visArtigo.asp?sArti=141

matemático, geometricamente. Na lógica da informação que a linguagem carrega, gerada por catástrofes, Thom diz estar interessado pela “geometrização da noção de captura”44

. Não consideramos que haja uma precisa identificação da noção de catástrofe, tal como pensada pelo matemático, com aquela trazida por Deleuze em suas aulas sobre a pintura. No entanto, é notável o encontro entre os vocabulários de Deleuze e de outras grandes figuras de seu tempo. Catástrofe, captura, dobra, bordas... De qualquer forma, reside na teoria das catástrofes um estatuto engendrador para o conflito, para o choque, que parece ir ao encontro do interesse de Deleuze sobre “a ação das forças sobre as formas”45

. Pois o que Deleuze ressalta na relação entre pintura e catástrofe não diz respeito à representação pictórica da catástrofe. Segundo Vieira, “por mais belos, interessantes ou marcantes que possam ser os quadros com imagens de catástrofes (avalanches, tempestades, dilúvios, e assim por diante), há um tipo de catástrofe que diz respeito não ao tema dos quadros, mas ao próprio ato de pintar”46

. Para a autora, o pensamento criador lida com a mesma angústia com a qual lida o pintor-artista ao se confrontar com as imagens que nos levariam a uma simples recognição. O que está em jogo é o choque catastrófico, choque de forças, que forçará a “criação de novas maneiras de sentir”. O que o pintor- artista parece mostrar para Deleuze, portanto, é o alcance da pintura em forçar a sensibilidade a uma sensação nova; é menos a recognição da forma do que uma deformação47

. Assim,

O esforço para produzir imagens pictóricas alia-se ao projeto deleuziano de uma filosofia que toma o pensamento como atividade produtiva que produz a cada nova empreitada suas condições de produção, experimentando uma gênese que não se limita ao âmbito dos conceitos, mas que atravessa todas as instâncias nele

44 Réné Thom au pont de non-retour. Denis DELBECQ, para o jornal francês “Libération”. 31 de outubro de 2002. Link: http://www.liberation.fr/sciences/2002/10/31/rene-thom-au-point-de-non-retour_420173 (último acesso em 09/05/2016). GODARD, Jean Luc. 6X2. L’Institut Nacional de Audiovisuel, França, 1976. https://www.youtube.com/watch?v=B1t_o_CMA_E

45 VIEIRA, Cíntia. Diagrama e catástrofe: Deleuze e produção de imagens pictóricas. 46 Ibidem

envolvidas, a começar por aquela que vem a se configurar como sensibilidade. Desse ponto de vista, não há mundo sensível dado (como o que ocorre na atividade de recognição), mas mundos produzidos em cada empreendimento do pensar48.

Alguns críticos de Deleuze manifestam certo incômodo com a assunção do “novo” por parte de seus estudiosos. Ressaltamos, portanto, que o novo não diz respeito à novidade, ao “original”, ao “diferentão”. Da mesma forma que Deleuze reformula a diferença – já que citamos o diferente –, o novo diz respeito à repetição: a repetição intensiva, condição da diferença. No Brasil, e provavelmente em outros países de língua portuguesa, usamos a expressão “de novo!” quando desejamos repetir uma experiência. Sabemos que a cada uma dessas repetições, a sensação que temos é que provamos daquele prazer intempestivamente, fora do tempo, não como se fosse a primeira vez, mas como se fosse absoluto. Mais, mais uma vez, o aqui-agora, novamente.

A duração altera. Em Francis Bacon - Lógica da sensação, Deleuze observa,

através dos quadros de Francis Bacon, que a deformação na pintura traz um aspecto da duração, testemunha da ação da força sobre as formas. A duração de um deformar-se. “A força do tempo mudando, por variação alotrópica dos corpos, ‘ao décimo de segundo’, que faz parte da deformação”49

. Diferentemente do matemático Réné Thom, Deleuze está menos interessado em uma morfogênese do que nas cosmogêneses, caos-germe, caosmos, diagramas, sistemas nervosos, máquinas abstratas. Tais campos operatórios trazem por princípio a duração, o movimento, os moventes, as multiplicidades. São campos de forças. A gênese/causa residiria, assim, nos modos de produção e criação; modos de vida; êxtases do caos, territorializados. Nascendo do caos (o obscuro, o sombrio...), do movimento de uma catástrofe, os meios e os ritmos fazem território a uma composição. É este lugar diagramático que Deleuze atribui às criações, seja na pintura, na música, nas demais

48 VIEIRA, Cíntia. Diagrama e catástrofe: Deleuze e produção de imagens pictóricas.

49 DELEUZE, G. Francis Bacon – Logique (...), p.63 (Tradução minha. Na tradução de Malufe e Ferraz ver p.33)

expressões artísticas, nas filosofias, nas ciências: na relação do pensamento com as forças do caos. “A forma não é mais separável de uma transformação (...). Uma composição, é a organização, mas a organização se desagregando (...). É uma vida, mas a mais bizarra e intensa vida, uma vitalidade não orgânica”50

. “O diagrama, é então o conjunto operador de linhas e de zonas, de traços e tarefas assignificantes e não representativos”51

.

Notamos que no “não figurativo” há música. São desigualdes percorrendo os campos operatórios, articulando meios e códigos, garantindo a coexistência de suas heterogeneidades, fazendo vibrá-los, tornando-os sensíveis. Movimento das durações. Movimento do ritornelo52

. Nessa escuta-captura, escuta intensiva, o corpo sem órgãos se territorializa. Eis então a criação do território e de seus agenciamentos e ressonâncias: plano de composição, diagrama de forças, plano imanente, plano de consistência.

A música envia fluxos moleculares. Certamente, como diz Messiaen, a música não é privilégio do homem: o universo, o cosmo é feito de ritornelos; a questão da música é a de uma potência de desterritorialização que atravessa a Natureza, os animais, os elementos e os desertos não menos do que o homem. Trata-se, antes, daquilo que não é musical no homem, e daquilo que já o é na natureza.53

Portanto, no lugar da forma/estrutura/organismo prefiguram-se campos operatórios, planos (territórios, ritornelos), corpo sem órgãos. No platô sobre o Devir, Deleuze e Guattari entrelaçam essas noções em suas análises sobre o corpo sem órgãos: “A questão não é a da organização, mas da composição; não do desenvolvimento ou da diferenciação, mas do movimento e do repouso, da velocidade e da lentidão.”54

Referência à filosofia de

50 DELEUZE. Francis Bacon – Logique (...), p. 120-121. (pp. 67-68). 51 p. 95.

52 Sobre o ritornelo, conceito onde a relação entre som/música e territórios é amplamente explorada por Deleuze e Guattari, iremos investigar mais adiante nesta dissertação na parte “o tempo e os territórios: o ritornelo”.

53 DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol.4, pp. 112-113.

54 p. 41. Mais adiante, os autores escrevem: “Mas, ainda aqui, quanta prudência é necessária para que o plano de consistência não se torne um puro plano de abolição, ou de morte. Para que a involução não se transforme em regressão ao indiferenciado. Não será preciso guardar um mínimo de estratos, um mínimo de formas e de funções, um mínimo de sujeito para dele extrair materiais, afectos, agenciamentos? Assim, devemos opor os

Espinosa. Em sua tese de doutorado, Guillaume Sibertin-Blanc reafirma que todas essas noções – plano de imanência, corpo sem órgãos, corpo comum, etc., chamam para uma mesma coisa. Pois é no cerne desses termos, naquilo que os tornam equivalentes ou unívocos (no mundo não pré-estabelecido, naquilo que é pré-formal e pré-individual), que reside a questão prática-política da filosofia de Deleuze: a imanência, verdadeiro sentido da experimentação.

Assim, os agentes composicionais de um plano de imanência, condições regidas, portanto, por uma lógica de forças – de velocidades e lentidões, de afectos, devires, intensidades, durações – possibilitam a criação e a composição dos agenciamentos. Na verdade, em O que é filosofia? (último trabalho escrito pela dupla Deleuze e Guattari, em 1991) são distinguidos três planos: de imanência, que dá consistência ao infinito, com conceitos-acontecimentos consistentes (plano filosófico); de coordenadas, que se renuncia ao infinito, com funções, estados e referências (plano científico); de composição, que cria um finito que restitui o infinito através de sensações (plano artístico). Estes planos podem se misturar, em maior ou menor grau, se alterando e mudando suas naturezas. De todo modo, todos os três planos dependem do ato de criação.

Como já sugerido anteriormente, suspeitamos que resida uma musicalidade nos planos de imanência, no movimento com o qual eles operam e se agenciam, isto é, em suas composições e na maneira como se expressam as relações entre seus componentes.

dois planos como dois polos abstratos: por exemplo, ao plano organizacional transcendente de uma música ocidental fundada nas formas sonoras e seu desenvolvimento, opomos um plano de consistência imanente da música oriental, feita de velocidades e lentidões, de movimentos e repouso. Mas, segundo a hipótese concreta, todo o devir da música ocidental, todo devir musical implica um mínimo de formas sonoras, e até de funções harmônicas e melódicas, através das quais se fará passar velocidades e lentidões, que as reduzem precisamente ao mínimo. Beethoven produz a mais espantosa riqueza polifônica com os temas relativamente pobres de três ou quatro notas. Há uma proliferação material que não faz senão uma com a dissolução da forma (involução), sendo ao mesmo tempo acompanhada de um desenvolvimento contínuo dessa forma. Talvez o gênio de Schumann seja o caso mais chocante, onde uma forma não é desenvolvida senão para as relações de velocidade e lentidão pelas quais ela é afetada material e emocionalmente. A música não parou de fazer suas formas e seus motivos sofrerem transformações temporais, aumentos ou diminuições, atrasos ou precipitações, que não se fazem apenas de acordo com as leis de organização e até de desenvolvimento” (DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4, pp. 60-61).

Deleuze e Guattari dizem que “o construtivismo exige que toda criação seja uma construção sobre um plano que lhe dê existência autônoma”55

. O termo construtivismo, apesar de se referir à construção de um agenciamento e evocar uma pragmática, parece trazer alguns problemas, ao nosso ver, frente às coexistências de heterogêneos com as quais lidam os planos, com as quais eles são traçados, e com a própria ideia de composição e devir. A construção remete a partes, a união de partes que edifica um todo. Tal edificação parece-nos carecer de intensidade, de tensões e de uma estruturação movente (uma não- estrutura), assinalada pelos dinamismos espaço-temporais. Talvez a expressão montagem/découpage, utilizada pelo cinema, seja mais fiel do que construção. Um corte do caos. Mas, ficaremos, por ora, com a composição. A composição de um plano imanente, ou plano imanente de composição. Plano dinâmico, “sem imagem”, intensivo, e por isso aberto para a experimentação56

; com alternâncias complexas, não excludentes por natureza, e por isso simultâneas, dissonantes e ruidosas, por que não? Partindo da assunção de uma teoria das multiplicidades, preferimos não referenciar a filosofia sob a perspectiva do termo construtivista na tentativa de resguardar também a ideia de experimentalismo, da não-estrutura, inerente às consistências. De qualquer maneira, nesse momento, o que nos chama a atenção na referida citação diz respeito à autonomia. Pois, o que, de fato, confere autonomia à criação, à vida da instabilidade do devir? O que seria, precisamente, autonomia e o que isso teria a ver com uma possível “musicalidade do plano de imanência”?

Em O que é o ato de criação?, Deleuze diz que é inerente a todas as

55 DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Qu’est-ce la philosophie ? Les Édition de Minuit, Paris, 1991/2005, p. 12 (p. 16).

56 Voltaremos sobre o tema da “abertura” (ou o Fora), sobre regimes abertos e experimentação, ao longo da dissertação.

disciplinas/atividades criativas a constituição de espaços-tempos57

. Em um primeiro momento, consideramos que toda composição lida com intensidades, forças do caos, que determinam (ou tornam perceptível) a duração58. A noção de autonomia, correlata à consistência, é contígua à composição de espaços-tempos, modos de vida, ritmos de vida, andamentos, blocos de heterogêneos intempestivos. Deleuze evoca no ato de criação uma “presença pura” que, por divergir por natureza, está atrelada à percepção. Em Ocupar sem contar ele diz:

É que o problema da arte, o problema correlativo à criação, é o da percepção e não o da memória: a música é pura presença, e reclama um alargamento da percepção até os limites do universo. Uma percepção alargada, esta é a finalidade da arte (ou da filosofia, segundo Bergson)59.

Nos perguntamos se a pura presença da música, identificada por Deleuze, é correlata ao sonoro, àquele caráter vibratório que define a sensação e que na música parece estar no mais elevado grau. Se o ritornelo, sonoro por excelência, é criador de territórios, o sonoro - ou o musical - parece exercer nesse momento da filosofia de Deleuze um importante papel, que alcança, inclusive, uma dimensão ético-política inusitada. Ao dizer que a música reclama um alargamento da percepção, Deleuze interroga sobre os limites desta faculdade e sobre uma possível seleção que toda escuta faz, e que muitas vezes é de ordem verificacionista. Deleuze convoca o sonoro-musical pois o sonoro-musical atravessa espaços e corpos, arrebata, rompe, invade, expande: potência de desterritorialização. O sonoro-musical torna-se agora ritornelo. A terra e o território assinados pelo ritornelo reivindicam assim um “novo povo por vir”.

57 DELEUZE, Gilles. O que é o ato de criação?, trad. Joao G.A. Domingos, in O Belo Autônomo: textos clássicos de estética. Org. Rodrigo Duarte, 2a Edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora; Crisálida, 2012. (Coleção Filô/Estética;3).

58 Sobre “tornar sensível” a duração, veremos logo mais neste mesmo capítulo e nas partes onde exploro

Diferença e Repetição.

A música está cheia disso. Para tanto é preciso não memória, mas um material complexo que não se encontra na memória, mas nas palavras, nos sons: "Memória, eu te odeio”. Só se atinge o percepto ou o afecto como seres autônomos e suficientes, que não devem mais nada àqueles que os experimentam ou os experimentaram: Combray, como jamais foi vivido, como não é nem será vivido. 60

Ressaltamos que existe na desterritorialização um traço de assignificância – “um pouco de tempo em estado puro”, aquilo “que não é musical no homem, e que já o é na natureza” –, que garante, inclusive, a consistência, mesmo em composições não abstratas, como exemplifica Deleuze com Em busca do tempo perdido, de Proust; aquilo que nas individuações, nos acontecimentos, “racha com a identidade à qual a memória fixa”61

. O que Deleuze diz sobre o alargamento da percepção diz respeito também à identificação de uma variação, ou deformação, de uma transformação perpétua, movimento do qual emerge, usurpando o termo de Boulez, uma diagonal.

Toda a obra de Proust é feita assim: os amores sucessivos, os ciúmes, os sonos, etc., se descolam dos personagens de modo que eles devêm eles mesmos personagens mutantes, individuações sem identidade, Ciúme I, Ciúme II, Ciúme III...Uma tal variação que se desenvolve na dimensão autônoma do tempo, chamaremos de “bloco de duração”, “bloco sonoro incessantemente variante”.62

*

Falávamos anteriormente de um pensamento “sem imagem” e do signo assignificante. A individuação sem identidade, este “bloco sonoro incessantemente variante”, é também chamada por Deleuze e Guattari de hecceidade, termo que eles recuperam de Duns Scott, filósofo medieval. De acordo com a reformulação do termo, uma hecceidade é um acontecimento, uma expressão de um devir, a individuação, sem sujeito,

60 DELEUZE. GUATTARI. O que é a filosofia?, p. 218.

61 Deleuze usa a frase de Proust – un peu du temps à l’état pure - ao se referenciar ao tempo não como força, mas o tempo em si mesmo (“Occuper sans compter: Boulez, Proust et le temps”, p.278). Assim, tornar sonoras as forças do tempo não quer dizer necessariamente que o tempo, em si, seja uma força. Na página 276 do original: “Or un tel but ne peut être atteint que si la perception brise avec l’identité à laquelle la mémoire la rive” (p. 315).

de uma vida63

. Percebemos, portanto, que a autonomia reside em um acontecimento que não configura um princípio de identidade, muito antes pelo contrário, diz-se menos de uma representação do que de uma modulação. Mas reiteramos, isto não confere indeterminação às hecceidades. O exemplo dos Ciúmes em Proust é fiel à precisão de tais individuações- personagens. A autonomia e a consistência de toda e qualquer composição é garantida por aquele tempo de natureza intensiva – não pelo instante, ou pela brevidade – mas por esse bloco de duração ao qual Deleuze atribui a qualidade de sonoro. “Parece que o som, ao desterritorializar-se, afina-se cada vez mais, especifica-se e torna-se autônomo(...). O som não deve essa potência a valores significantes ou de ‘comunicação’”64

. E, assim, o problema torna-se “realmente musical, tecnicamente musical, o que o torna aí tanto mais político”.

Não por acaso Deleuze convoca para sua filosofia os personagens rítmicos, de Messiaen, entendidos como tais através da autonomia e independência que eles exercem e dramatizam em uma composição. O ritmo, como vimos, é distância crítica – intermezzo - que participa da modulação dos corpos, corpúsculos, moléculas. Nos dinamismos do pensamento, o ritmo seria uma articulação; dobra por onde desviamos de uma autoridade da representação. A consistência, assim, desloca a percepção, em um processo de desterritorialização, através dessas forças/variações até então imperceptíveis, individuações