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Sensação, regimes de signos, corpo, pensamento

1 PENSAMENTO-MÚSICA

1.7 Sensação, regimes de signos, corpo, pensamento

“Seria a vida, o Tempo, tornados sensíveis, visíveis? (...). Tornar o Tempo sensível em si mesmo, tarefa comum ao pintor, ao músico, por vezes ao escritor. É uma tarefa fora de toda medida ou cadência” 81

.

Em Kafka: por uma literatura menor, Deleuze e Guattari dizem ser o som um dos elementos que cumpre na literatura kafkiana o papel de uma matéria não formada de expressão. É através do som que os devires-rato, cão, besouro criam “zonas de não

cultura”, “de terceiro mundo”, por onde a língua escapa, vira toca. Todo som é desterritorializante 82

.

80 Boulez dizia que “é entre a ordem e o caos que se coloca a zona mais instável, mais volátil e mais rica da imaginação e da percepção”. BOULEZ, Pierre. Entre ordre et chaos. In Harmoniques, v.3. Paris: Ircam, 1988.

81 DELEUZE. Francis Bacon – Logique (...), p. 63 (p.33).

82 DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. de Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. p 53. “O que interessa a Kafka é uma pura matéria sonora intensa, sempre em conexão com a sua própria abolição, som musical desterritorializado, grito que escapa à significação, à composição, ao canto, à palavra, sonoridade em ruptura para se desgarrar de uma corrente ainda demasiado significante. No som, só a intensidade conta, geralmente monótona, sempre insignificante: assim, no Processo, o grito de um só tom do comissário que se faz fustigar «não parecia vir de um homem, mas de uma máquina de sofrer». Enquanto há forma, há ainda reterritorialização, mesmo na música. A arte de Josefina, ao contrário, consiste em que, não sabendo cantar mais que os outros camundongos, e

O som – das asas, das patinhas, da tosse, de uma não-voz e de uma incomunicação do animal-inseto – assinala um espaço-tempo. Ao escutarmos o devir-animal de Kafka somos atravessados, e levados para um movimento (desterritorialização) aflitivo e maravilhoso. Para além de uma metamorfose, o nosso próprio devir-animal. Ressaltamos que para Deleuze e Guattari, todo devir é um devir-animal: todo devir traz a potência de uma matilha, move-se em um plano de consistência “onde o nome próprio atinge sua individualidade mais alta perdendo toda personalidade – devir imperceptível, Josefina, a camundonga”83

.

Tornamos-nos um acontecimento. Em Kafka, o som contribui de forma precisa para a sensação da temporalidade dos devires; ainda assim, isto poderia ser insuficiente para que considerássemos a obra de Kafka musical, por conta da crença de que para ser musical o som deve intermediar a sensibilização do tempo tal como ele o faz, molarmente, em determinadas músicas (aquelas de ritmos isócronos e de notas puras). Mas, por outro lado, pensar o sonoro nesses termos, como nos mostram Deleuze e Guattari em Kafka, como uma potência de vida e tempo – matéria movente de expressão – nos faz também refletir sobre distinções por vezes conservadoras e geradoras de falsos problemas, distinções como: musical/não musical; som/ruído, som belo/som feio, etc.84

Interessa-nos aqui a

assoviando, antes, pior, ela opera talvez uma desterritorialização do «assobio tradicional», e o libera «das cadeias da existência quotidiana». Em suma, o som não aparece aqui como uma forma de expressão, mas bem como uma matéria não formada de expressão, que vai reagir sobre os outros termos” (pp. 14-15). 83 DELEUZE, G. PARNET, Claire. Diálogos (1998), p.141.

84 “Parece que o som, ao se desterritorializar, afina-se cada vez mais, especifica-se e torna-se autônomo, enquanto que a cor cola mais (...) à territorialidade.(...) O som não deve essa potência a valores significantes ou de "comunicação" (os quais, ao contrário, a supõem), nem a propriedades físicas (as quais dariam antes o privilégio à luz). E uma linha filogênica, um phylum maquínico, que passa pelo som, e faz dele uma ponta de desterritorialização. E isto não acontece sem grandes ambiguidades: o som nos invade, nos empurra, nos arrasta, nos atravessa. Ele deixa a terra, mas tanto para nos fazer cair num buraco negro, quanto para nos abrir a um cosmo. Ele nos dá vontade de morrer. Tendo a maior força de desterritorialização, ele opera também as mais maciças reterritorializações, as mais embrutecidas, as mais redundantes. Êxtase e hipnose. Não se faz um povo se mexer com cores. As bandeiras nada podem sem as trombetas, os lasers modulam-se a partir do som”. DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol.4, p.166. Grifo meu. Sobre a crítica ao par musical/não musical : análise de Paul Craenen in DEL NUNZIO, Mário Augusto Ossent. Fisicalidade:

sonoridade trazida pelos autores para repensarmos a nossa escuta, o conceito de escuta, a música e a própria noção de matéria movente de expressão. “A música é primeiro uma desterritorialização da voz, que se torna cada vez menos linguagem”85...

Ordinariamente, a sensação é definida em relação aos órgãos do sentido que produzem ou dão impressões sensitivas tais como a audição, a visão, o tato, o olfato. Nesta “corporeidade”, há algo de imediato e de não racional. Em Francis Bacon - Lógica da sensação, Deleuze busca mostrar que é por esta aparente antinomia de uma lógica do

sentido, não racional,86

– a lógica da sensação – que a sensação não é um dado empírico, nem uma representação objetiva; ela é, antes, heterogenética. Ela está para além dos sentidos organizados (imagem-visão, som-ouvido, pele-tato). Através de sua singularidade de combinações, que lhe confere a sua lógica, a sensação tem uma consistência em si mesma, uma consistência que aquele corpo sem órgãos (sem ouvidos, sem íris, sem cérebro organizados) experimenta. É pelas vias dessa lógica que o som, como vimos, cumpre o seu papel: como um signo “assignificante”, que torna sensível a intensidade. Som e devir. Aquele animal que se faz na voz desterritorializada. Quando Deleuze e Guattari dizem ser a música primeiro uma desterritorialização da voz, que se torna cada vez menos linguagem, eles estão reformulando a ideia de que toda música é um devir- animal, “potência de matilha”: “é porque a expressão musical é inseparável de um devir- mulher, um devir-criança, um devir-animal que constituem seu conteúdo”87

.

Uma das teses centrais do subcapítulo dedicado à arte, em O que é a filosofia?, é a de que a obra existe em si pois ela é um ser da sensação: a arte conserva afectos88

e perceptos que, em suas naturezas, “excedem o vivido”. Por exceder o vivido, a sensação

Penser la musique aujourd’hui. Denöel/Gonthier. Médiations. 1963. Para Boulez em termos acústicos-

musicais é mais interessante distinguirmos som bruto de som elaborado do que som e ruído. 85 DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4, p.103.

86 Expressão do pintor Paul Cézanne utilizada por Deleuze em Francis Bacon – Lógica da sensação. 87 DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4, p. 99.

produzida pela arte é autônoma. “Presença, presença, esta é a primeira palavra que vem à frente de um quadro de Bacon...”89

. Não por acaso, os autores falam constantemente em suas obras a quatro mãos sobre uma “tomada de consistência” ao se referirem às matérias de expressão – estas que se furtam da ideia de um sujeito (ativo, racional, proprietário) - e o jogo de uma heterogeneidade que é a elas inerente. Parece residir aqui, mais uma vez, uma crítica à fenomenologia – ao vivido como uma substância informe e homogênea, vivida por um sujeito em sua “tomada de consciência”. Deleuze e Guattari mostram, com as noções de afecto e percepto, que a sensação produzida pela arte é conservada porque ela tem uma relação não só com as qualidades extensivas, mas, antes, com intensidades. As intensidades se desenrolam nos dinamismos espaço-temporais e “permitem materialmente o próprio ato de sentir”. Apesar da intensidade ser uma presença pura ela não pressupõe uma estabilidade. O que Deleuze considera presença “pura”, ao contrário de uma estabilidade, diz respeito às intensidades, velocidades, lentidões, afectos. A intensidade convoca o movimento, movimento do disparo, de antecipação da percepção90

. Da mesma forma, na práxis da escuta, experimentamos estes dinamismos rítmicos e articulatórios das artes, a materialidade das forças do movente (talvez venha desta materialidade o sentido háptico atribuído às qualidades sonoras e visuais), mais do que um “puro” essencial, abstrato, em forma de ideia. Como dar consistência a heterogêneos? É por velocidade e lentidão (valores diferenciais do ritmo dos quais dependem as substâncias, os comportamentos, etc.) “que a gente se conjuga com outra coisa (...): escorregamos entre, entramos ao meio, casamos ou impomos ritmos”91

. Devir e transcodificação (que é essa

89 DELEUZE. Francis Bacon - Logique (...), p. 52 (p. 27).

90 Falamos um pouco sobre isso na nota 72 deste trabalho e voltaremos a elaborar a questão da “antecipação”, no próximo capítulo, na parte onde analisarei de forma um pouco mais aprofundada Diferença e Repetição. 91 DELEUZE, Gilles. Spinoza, philosophie pratique apud Guillaume Sibertin-Blanc, Politique et Clinique.

interação, este glissando que se dá entre códigos e meios heterogêneos)92

. O ritmo permite a involução dos planos, dos códigos, dos meios, isto é, as “sínteses disjuntivas”. “Terreno indiviso”, terreno (terra, território) onde os componentes não respeitam a distinção das ordens ou hierarquias das formas. Tratam-se de “anarquias coroadas”. Musicalidade do plano de imanência.

Porém, o ato de sentir, este ato, Deleuze e Guattari dizem ser passivo.

*

Sobre a autonomia dos afectos e perceptos conservados pela sensação, trazemos um trecho da dissertação de mestrado de Henrique Lima, denominada Da música, de Mil platôs, dedicada ao ritornelo, mais precisamente aos infra-agenciamentos dos territórios. O

autor recupera a noção de metaestabilidade de Simondon, a partir da leitura de Deleuze e Guattari, e diz o seguinte:

A autonomia das matérias de expressão constitui o jogo de forças pelo qual o território só pode ser instável, metaestável. Deste modo, ela constitui o motor lógico da metaestabilidade do território. São as matérias de expressão que traçam o território tanto em seu fechamento quanto em sua abertura, e o traçam sempre enquanto um plano de consistência estético93.

É no jogo estabelecido entre as matérias de expressão que podemos falar de um contraponto territorial. A autonomia concerne às individuações, às assinaturas, às

determinações espaço-temporais, que criam suas próprias lógicas entre linhas e conferem consistência aos planos, pois é neste jogo que o plano se faz movente. Reproduzimos a

92 “A transcodificação ou transdução é a maneira pela qual um meio serve de base para um outro ou, ao contrário, se estabelece sobre um outro, se dissipa ou se constitui no outro. Justamente, a noção de meio não é unitária: não é apenas o vivo que passa constantemente de um meio para outro, são os meios que passam um no outro, essencialmente comunicantes”. Mil platôs, vol. 4, pp. 118,119.

93 LIMA, Henrique R.S. Da música, de Mil platôs: a intercessão entre filosofia e música em Deleuze e

Guattari. Orientadora: Profa. Dra. Cíntia Vieira da Silva. Dissertação (Mestrado) – UFOP, Ouro Preto, 2013,

passagem de Simondon, citada por Lima, onde podemos entender um pouco melhor o sentido atribuído aos regimes “metaestáticos”:

O ser não é originalmente estável, é metaestável; ele não é um, pois é capaz de expansão a partir de si mesmo; o ser não subsiste em relação a si mesmo; ele é contido, tenso, superposto a si mesmo, e não um. O ser não se reduz ao que ele é; ele está acumulado em si mesmo, potencializado [...]; o ser é, ao mesmo tempo, estrutura e energia.94

Então, a lógica da sensação não é uma lógica sentimental: “não existem sentimentos em Bacon: há nada mais que afectos, ou seja, ‘sensações’ e ‘instintos’”95

. Para a presente abordagem de um pensamento-música, considera-se relevantes os momentos musicais que suscitam de alguma forma a distinção entre sentimento e sensação, fazendo sobressair uma sensibilidade que nos conduz para o sonoro-musical. Assim, não buscamos a primazia de uma determinada música em detrimento de outras, mas analisar em que medida determinadas práticas musicais “alargam nossa percepção” ao interrogarem sobre si mesmas, ao provocarem perguntas autocríticas como: “o que é música?”; “como tudo isso aconteceu?”; “quais sons?”; “qual corpo?”. Práticas musicais por vezes difíceis e passíveis de juízos como “eu não entendi nada” e que de uma maneira espinosista compreendem uma percepção pela causa, pelo modo de produção. Em seus estudos sobre o cinema, Deleuze diz que quando fazemos este tipo de pergunta, como “o que que aconteceu?”, estamos diante de um filme que nos dá a pensar. Uma imagem-tempo que não mais procede exclusivamente pela associação-sucessão linear de imagem, mas que, antes, move-se em função de um autômato espiritual, de um encadeamento não necessariamente “narrativo”. Dinamismo inerente ao poder de afetar e ser afetado. Um

94 SIMONDON, G. L’individu et sa genèse physico-biologique. Paris, PUF, 1964, p. 285 apud LIMA, Henrique. Da música, de Mil platôs, p. 108.

95 DELEUZE. Francis Bacon – Logique (...), p. 44 (tradução minha. Na tradução de Malufe e Ferraz, p. 21). Consideramos a obra O que é a filosofia?, de Deleuze e Guattari, para análise dos conceitos de afecto e percepto em sua relação com a sensação.

corpo-pensamento. Eis a distinção para Deleuze entre um diretor que pensa sobre cinema, “colocando um pensamento mais ou menos bom no cinema” e um diretor que faz, como Godard, com que o cinema pense96.

“Os sons devem pensar”, diz Helmut Lachenmann, compositor alemão, ainda vivo. Para Deleuze, o material-forças e as individuações sem sujeito são em si modos de existência. É nesse sentido que o vitalismo proposto em sua filosofia não tem a ver com o orgânico, mas com essa matéria “pensante”, que se confunde no caos e no composto, no pensamento e nos desejos. Interessa-nos a relação que Deleuze faz entre as matérias moventes de expressão – que como tais evocam uma musicalidade – e o pensamento. O sensível que afeta e nos força a pensar. Pensamento-música. Os “movimentos aberrantes” e involutivos do devir revelam uma participação de algo que o próprio Deleuze denomina curiosamente de anti-Natureza. As noções de corpo sem órgãos, de plano (imanência/consistência/composição), campo pré-individual, platô, todas elas – guardadas as suas diferenças – pertencem a essa anti-Natureza. Planos povoados por hecceidades, pelas individuações sem sujeito. O sentimento de uma Natureza desconhecida diz respeito ao afecto: “os puros afectos implicam um empreendimento de dessubjetivação” 97

. Deleuze ressalta que para Espinosa, desconhecer o afecto de que se é capaz é condição para traçar- se qualquer plano de imanência. O afecto, portanto, “não é um sentimento pessoal, tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e

96 DELEUZE, Gilles. “Sobre Nietzsche e a imagem do pensamento” in DELEUZE, Gilles. A ilha deserta,

textos e entrevistas (1953-1974). Prep. David Lapoujade. Org. da edição brasileira: Luiz B.L.Orlandi.

Iluminuras, 2008, p. 182.

97 DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol.4, “Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível”, p. 60. Nas suas investigações sobre o devir, Deleuze e Guattari retomam, também da filosofia medieval, o conceito de hecceidade, que eles definem como sendo individuações sem sujeito.

faz vacilar o eu”98

. Os afectos são devires. E sob essa perspectiva que Deleuze afirmará nos Diálogos que a experimentação sobre si mesmo é a nossa única identidade99

.

Assim, voltamos a Kafka. O escritor explora uma matéria sonora intensa como a expressão de um devir-animal, um devir-molecular que escapa da suntuosidade da literatura maior, desta onde o “caso individual” é particularmente o centro. Deleuze e Guattari chamam “de interpretação baixa ou neurótica, toda literatura que torna o gênio em angústia, em trágico, em ‘caso individual’”.100

No devir-menor, isto é, na desterritorialização, experimentação sobre si mesmo, o “caso individual” é ampliado como se atravessasse uma lupa, um microscópio, expondo todas as suas moléculas moventes (seus potenciais energéticos), abrindo-se para múltiplas linhas de saída. Desterritorializar- se e devir-múltiplo. “Tornar-se um estrangeiro na própria língua”101

. No devir-animal de Kafka abre-se espaço para toda hecceidade, colocando-o necessariamente em um agenciamento coletivo, ou múltiplo, de enunciação. A crítica de Kafka à metáfora reside neste lugar, na distinção de um verdadeiro devir, neste onde se faz “um uso intensivo assignificante da língua”, quando a expressão precede o conteúdo, ou antes, quando uma matéria não formada de expressão prevalece sobre a distinção expressão/conteúdo102

. Daí também a crítica aos “casos individuais” tomados como centros de narrativa. Deleuze e

98 DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4. “Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível”.

99 No platô sobre o Devir, Deleuze e Guattari entrelaçam essas noções ao dizerem sobre o corpo sem órgãos: “A questão não é a da organização, mas da composição; não do desenvolvimento ou da diferenciação, mas do movimento e do repouso, da velocidade e da lentidão” (p. 41). Referência à filosofia espinosista. Em sua tese de doutorado, Guillaume Sibertin-Blanc reafirma que todas essas noções – plano de imanência, Corpo sem órgãos, corpo comum, etc., tratam-se da mesma coisa. E, desta forma, é no cerne desses termos, naquilo que os tornam equivalentes ou unívocos, que reside a questão prática-política da filosofia de Deleuze.

100 DELEUZE. GUATTARI. Kafka: por uma literatura menor.

101 Kafka: por uma literatura menor e Proust e os signos, obras em que a frase de Proust é citada. Percebemos algo muito parecido com esta ideia, de se tornar estrangeiro na própria língua, em A imagem-

tempo, quando Deleuze fala da invenção de um povo: “É preciso que a arte, particularmente a arte

cinematográfica, participe dessa tarefa: não dirigir-se a um povo suposto, já presente, mas contribuir para a invenção de um povo por vir” (DELEUZE, Gilles. A imagem- tempo. Trad. Eloisa Ribeiro - São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 259).

102 Repetimos aqui a passagem de Kafka: por uma literatura menor: “O que interessa a Kafka é uma pura matéria sonora intensa, sempre em conexão com a sua própria abolição, som musical desterritorializado, grito que escapa à significação, à composição, ao canto, à palavra, sonoridade em ruptura para se desgarrar de uma corrente ainda demasiado significante” (p.14).

Guattari dizem: “Kafka, mesmo morrendo, é atravessado por um fluxo de vida invencível”103

. Talvez seja por essa via que Deleuze compreenda o desejo: enquanto expressão-sensação da multiplicidade, potência de vida invencível.

Interessante notar a retomada de Deleuze da questão do que pode um corpo no contexto da Ética104

: “o que pode um corpo?” está menos à escuta de um naturalismo, voltado para a identificação de um centro autônomo natural, com suas funções e fisiologias – isto é, um organismo –, do que para o movimento, a cinemática – ocupações, contágios, povoamentos, velocidades, lentidões – e a dinâmica enquanto estudo das forças do tempo em um regime qualquer. O Afecto é um signo vetorial, condição para um fluxo de vida. Assim, “a teoria das multiplicidades intensivas permite caracterizar materialmente o afecto, como variação de potência”105

. E é sob os termos da cinemática e da dinâmica que Deleuze pensa, com Espinosa, o corpo.

Toda uma vida não orgânica, pois o organismo não é a vida, e a aprisiona. O corpo é inteiramente vivo, e portanto não orgânico. Assim a sensação, quando atinge o corpo através do organismo, toma um movimento excessivo e espasmódico, rompe os limites da atividade orgânica106.

À pergunta levantada no começo, em seu curso sobre Espinosa, “Do que falamos ser « rápido » ou « lento » habitualmente?”, Deleuze responderá mais tarde: do corpo. Como vimos, corpo diz respeito a uma multiplicidade, aos corpúsculos, às moléculas, células, microfendas, etc.107

Pois, ao inferir que o pensamento toma tempo, “produz

103 DELEUZE, GUATTARI. Kafka: por uma literatura menor, p. 77/78.

104 “O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo (...) pode e o que não pode fazer. (...) Isso basta para mostrar que o corpo, por si só, em virtude exclusivamente das leis da natureza, é capaz de muitas coisas que surpreendem a sua própria mente”. SPINOZA, B. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2007. (E, III, prop. II, esc.), p. 167.

105 SIBERTIN-BLANC, G. Politique et Clinique (...), p. 229. 106 DELEUZE. Francis Bacon – Logique (...), p. 48 (p. 24).

107 « L’individualité du corps, pour lui, de chaque corps, c’est un rapport de vitesses et de lenteurs entre éléments. Et j’insistais: entre éléments non formés. Pourquoi? Puisque l’individualité d’un corps c’est sa forme, et s’il nous dit la forme du corps – il emploiera lui-même le mot forme en ce sens – la forme du corps

velocidades e lentidões e ele mesmo é inseparável de velocidades e lentidões que ele produz”, Deleuze confere a ele a característica que define os corpos. Na relação que Deleuze estabelece entre o cinema e o pensamento, o corpo é tido como uma mutação do pensamento. E, ao convocar o corpo, o pensamento “termina com a sua velha tarefa de julgar a vida”, e se insere nas categorias da vida, ela mesma108

. Tomada de consistência do corpo. Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. “A imanência prática como corpo