• Nenhum resultado encontrado

Pequenas impressões particulares sobre audiovisual, imagético,

1 PENSAMENTO-MÚSICA

1.6 Pequenas impressões particulares sobre audiovisual, imagético,

Vale fazer uma ressalva aqui. A ideia de um pensamento-música não tem como objetivo expor qualquer assunção a respeito de um sonoro “puro” em detrimento de um visual, mas explorar, com Deleuze, o musical e a sua força nos campos operatórios, na imanência, na sensibilidade e na percepção. Por mais que tenha sido relacionado às hecceidades e aos traços assignificantes um pensamento “sem-imagem”, onde escutamos uma forte presença do que entendemos como musical, a ideia era a de destituir a “imagem dogmática”, o imperativo da estabilidade da recognição e conferir um estatuto ao musical e ao sonoro que colocam o pensamento em movimento - talvez residam aqui algumas críticas de Deleuze e Guattari a alguns produtos do capitalismo e à publicidade.

Existe um diagrama que é também virtualmente imagético e que é produzido pelas capturas de forças da música. Não gostaríamos de acreditar que a música tenha morrido no século XXI, época em que o imperativo da emissão imagética mediada parece exercer, em maior grau, uma autoridade, por vezes ensurdecedora, desprovida de Duração e por isso motivada por uma espécie de afobamento em detrimento do pensamento. O que não quer dizer, obviamente, que tal pensamento-música seja contra a imagem, as imagens em

movimento, o vídeo, o “pop”, a tecnologia, as velocidades, etc.

Mais precisamente, nos referimos à tendência quase obrigatória de se utilizar imagens videográficas projetadas nas performances de música de concerto. Não acreditamos que imagem seja restrita ao universo videográfico, e também não vemos problema algum no uso em si de vídeos em performances musicais quaisquer. O problema começa quando o vídeo se torna a síntese do diagrama de forças que a performance musical poderia engendrar a partir dela mesma, na sua autonomia. A imagem videográfica sendo utilizada ora como explicação poética, legenda, ora como exposição “visual” instantânea de ritmos diversos sucessivos, como um certo tipo de programação de imagens generativas, pode ser a morte da duração. A duração da música explicada na extensão da sucessão de imagens. Mesmo porque, se há uma pessoa tocando, em cena, todos os seus gestos também são imagens e geradores de campos de forças, acontecimentos sonoros.

Por essas mesmas vias, não acatamos a crítica generalizada que Deleuze e Guattari fazem, em Mil platôs, às “músicas de ruído” e improvisações livres, na qual eles dizem ser máquinas de reprodução de um emaranhado exagerado e confuso de sons e acontecimentos que acabam por impedir, finalmente, todo o acontecimento77

. Tal crítica revela uma expectativa por parte dos autores de um resultado sonoro-musical (como expressão de uma obra) que ao nosso ver não faz sentido algum para a lógica implicada na relação material- forças/intérprete/compositor com a qual lidam as músicas de ruído, algumas músicas prescritivas e as improvisações livres. Consideramos, entre outras coisas, que em tais práticas o limite dos corpos é levado às últimas consequências, suscitando questões preciosas sobre a nossa escuta, nossos hábitos, sobre técnica, sobre “obra”, contemplação, sobre o espaço, sobre a música; questões contíguas à célebre: “o que pode um corpo?”, provinda da leitura de Deleuze sobre Espinosa. Nesses tipos de performance musical, o

“puramente sonoro” e os esforços do intérprete estão insuspeitamente em fusão e compõem, assim, novas capturas de forças, um espaço livre, de múltiplos e incessantes “aqui-agora”, pelos quais as distinções som/corpo, composição/performance, compositor/intérprete, se desfazem; justamente, por trazer à tona a presentificação máxima do corpo do músico (ações, gestos, tentativas, hesitações, insucessos) na produção sonora que ele empreende. A performance torna-se inevitavelmente multimídia e todos os recursos ali utilizados participam de uma composição menos ilustrativa-descritiva do que autorreferencial e autocrítica78

. A noção de liberdade que essas práticas trazem não parece se confundir com a de autoridade uma vez que elas tentam interrogar, justamente, tais valores.

Um outro exemplo, relativo à prática de música de concerto contemporânea: uma peça como o estudo para piano do compositor György Ligeti, Arc-en-ciel79

. Poderíamos dizer que ela torna sonora por ela mesma as forças “cósmicas” de luz, de cores e vibrações do arco-íris. A motivação de Ligeti certamente não foi reproduzir/imitar um arco-íris, mas capturar um jogo de forças intensivas, moleculares, moventes, quase indiscerníveis, que não são apreciáveis por nossos olhos, quando vemos, por exemplo, um fenômeno tal como o arco-íris no céu. Ligeti destitui o ouvinte da posição de espectador (que vê) e o insere dentro daquele arco espectral. Ele compõe um tempo para o arco-íris, torna sonora uma

duração imperceptível. É uma peça difícil de se executar, com muitas nuances, delicadezas e micropolifonias. Colocar um vídeo colorido, ou ainda, uma projeção de um arco-íris, sobre alguém que toca tal peça ao piano – podendo fazer o impossível e nos colocar “lá

78 Paul Craenen traz uma interessante distinção entre: música de “algum lugar”, música de “lá” e música “de aqui”. Resgatamos um olhar desta pesquisa através da dissertação de mestrado sobre a noção de fisicalidade na música, do compositor e guitarrista Mário Augusto del Nunzio: DEL NUNZIO, Mário Augusto Ossent.

Fisicalidade: potências e limites da relação entre corpo e instrumento nas práticas musicais atuais.

USP/ECA, 2011, pp. 37 e 38.

79 György Ligeti, estudo para piano (Études pour piano, Premier Livre) n°5 Arc-en-ciel https://www.youtube.com/watch?v=_A0jsVgs_eA

dentro do céu”, para além da íris – seria uma escolha sintomática. Até mesmo porque, Ligeti poderia ter conferido à peça um outro nome...

Os recursos tecnológicos para multimídias em uma performance musical, portanto, não devem funcionar como a garantia da contemporaneidade da obra. Tampouco como uma resposta que faltava, o elemento “visual” carente ao sonoro. Eles devem, se usados, resguardar o caos que a música e o intérprete carregam. Aqueles traços assignificantes...80.

Falamos de forças imperceptíveis, do devir-imperceptível da música. Do alargamento da percepção, e não de seu fim.