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2 ALGUNS PONTOS DE ANÁLISE PARA

2.2 Diferença e Repetição

É verdade que, no caminho que leva ao que se há de pensar, tudo parte da sensibilidade. Do intensivo ao pensamento, é sempre através de uma intensidade que o pensamento nos advém. O privilégio da sensibilidade como origem aparece nisto: o que força a sentir e aquilo que só pode ser sentido são uma mesma coisa no encontro, ao passo que as duas instâncias são distintas nos outros casos. Com efeito, o intensivo, a diferença na intensidade, é ao mesmo tempo o objeto do encontro e o objeto a que o encontro eleva a sensibilidade. Não são os deuses que são encontrados; mesmo ocultos, os deuses não passam de formas para a recognição. O que é encontrado são os demônios, potências do salto, do intervalo, do intensivo ou do instante, e que só preenchem a diferença com o diferente; eles são os porta-signos.7

Recapitulamos um começo. Aquele da década de 1960, quando predominaram as investigações de Deleuze sobre alguns filósofos e escritores específicos, período anterior às pesquisas dedicadas às artes – muito embora, reiteramos que mesmo quando Deleuze “se dedicou à arte” não foi precisamente ao “objeto” arte, mas, antes, aos impossíveis da operação artística, ao pensamento-artístico, e às lógicas produzidas pelas criações artísticas. Pois bem. Foi naquele primeiro contexto que Deleuze escreve Diferença e Repetição, obra de grande fôlego onde ele defende a necessidade de se afirmar a diferença

7 DELEUZE. Diferença e Repetição, p.210.

em si mesma, análoga a nada, a diferença como intensidade – condição (in)sensível de todo fenômeno ou acontecimento.

Em Diferença e Repetição, o conceito de diferença não se articula ao de repetição dualistamente, eles não possuem uma relação de oposição. Muito antes pelo contrário, são conceitos complementares. Deleuze distingue a repetição da semelhança e da equivalência8

. A verdadeira repetição concerne, antes, a uma singularidade e ela está presente nas relações entre “o que não pode ser substituído”. O que traz um interessante víeis para, inclusive, pensarmos o sentido do termo “relação” para este filósofo que se opõe a uma concepção da diferença representada enquanto diferença conceitual, dada por critérios de analogia, semelhança, oposição e identidade.

Na introdução de Diferença e Repetição, Deleuze reúne três filósofos que para ele introduziram o sentido da repetição pela singularidade e, por consequência, contra o princípio da identidade: Kierkegaard, Péguy e Nietzsche. Para o autor, cada um deles, à sua maneira, “faz da repetição não só uma potência própria da linguagem e do pensamento, um pathos e uma categoria superior, mas a categoria fundamental da Filosofia do futuro”9

. Entre os três, é Nietzsche o mais convocado por Deleuze no plano geral de sua obra, para além de Diferença e Repetição. Junto com a força de sua escrita e de seus “métodos extraordinários”, a ideia do eterno retorno trazida por Nietzsche aparece como um princípio de articulação desses dois conceitos – diferença e repetição – e toda “ontologia” a ela subsequente, aquela das intensidades10. Com o eterno retorno, só podemos pensar a

8 “Se a repetição existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um notável contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a permanência. Sob todos os aspectos, a repetição é transgressão. Ela põe a lei em questão, denuncia seu caráter nominal ou geral em proveito de uma realidade mais profunda e mais artística”. DELEUZE.

Diferença e Repetição, p. 21.

9 p. 25

10 “A forma da repetição no eterno retorno é a forma brutal do imediato, do universal e do singular reunidos, que destrona toda lei geral, dissolve as mediações, faz perecer os particulares submetidos à lei”. DELEUZE.

diferença pelo movimento da repetição. Assim, Deleuze procura igualmente, ao destronar os critérios de semelhança, identidade, analogia e oposição, elaborar uma crítica à estabilidade almejada pela representação do Ser, a crítica da representação.

“A reprodução do Mesmo não é um motor dos gestos”11

. Os gestos e todos os movimentos assimétricos que inscrevem a diferença na repetição não são produzidos pela reprodução/representação, mas por um encontro, uma situação, quer dizer, um acontecimento que depende da sensibilidade – algo que é sentido – e que compreende o Outro (e não o Mesmo). O encontro é um movimento da diferença que se dá nas determinações espaço-temporais intensivas. Para Deleuze, a aprendizagem se dá no encontro/choque com o signo: “é o fortuito ou a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ela (a sensibilidade) força a pensar”12.

Ora, enquanto intensidade, a diferença tende a se anular quando ela é explicada pelas qualidades, isto é, na extensão. Neste sentido, a diferença pura é inexplicável e irrepresentável – ela é intensidade implicada em si mesma. É imediata e, sendo irrepresentável, só pode ser sentida. Ao mesmo tempo, e por isso mesmo, a diferença enquanto intensidade é a razão do sensível, a sua condição real, isto é, condição da sensibilidade. Eis por que Deleuze nos diz que o ser do sensível é intensidade pura, o desigual em si e que, portanto, o ser do sensível é insensível13

. Mas então, como podemos sentir e apreender o desigual em si, incomensurável, indivisível, isto é, a diferença? Qual é o estatuto deste sentir sobre o qual nos fala Deleuze? Como podemos apreender este imediato da diferença que é o “ser do sensível”?

11 DELEUZE. Diferença e Repetição, p. 211

12 DELEUZE. Diferença e Repetição, p. 211. Aqui lembramos daquelas práticas artístico-musicais esboçadas superficialmente no capítulo anterior, a saber, os improvisos livres e as músicas prescritivas, práticas que procuram “aqui-agora” absolutos, conferindo uma amplificação do encontro no espaço contingencial. É claro que nem todo improviso é bem sucedido quanto a isso, pois podemos estar sempre “armados”, ou contaminados com autoclichês ou outros hábitos. Mas a própria noção de “sucesso” é, de uma maneira ou de outra, interrogada em tais práticas.

Deleuze está interessado, justamente, naquilo que com Kant chamamos de “antecipação”, momento de disparo do sensível (espécie de um pressentir – sentir o que ainda é insensível –, momento da apreensão do ser do sensível) constituído por um limite da sensibilidade que nos força a pensar. Portanto, neste limite, reside uma distinção importante para entendermos o papel da diferença na filosofia de Deleuze: a distinção entre o exercício empírico da sensibilidade (indissociável da extensão e das qualidades – sendo a intensidade, as diferenças de intensidade, condições para tais qualidades e mediatizada pelas mesmas) ao qual atribuímos o nome de explicação, e o exercício da sensibilidade transcendente, que apreende a intensidade imediatamente no seu encontro com ela, processo ao qual Deleuze atribui o nome de diferençação. E criar será sempre “produzir linhas e figuras de diferençação”14...

Voltamos à repetição e à crítica à representação para pensarmos a sensibilidade nos exercícios da filosofia. Deleuze diz que “há uma grande diferença entre a generalidade, que sempre designa uma potência lógica do conceito, e a repetição, que testemunha a impotência ou o limite real do conceito”15

. A noção de limite, recorrente na lógica da diferença e da repetição, é bastante preciosa a Deleuze, e será também para nós, na compreensão do insensível que só pode ser sentido. Em uma notável passagem do capítulo sobre a síntese assimétrica do sensível, Deleuze assinala aquilo que para ele é um motor de gestos, ou a própria expressão, digamos assim, da filosofia; “o seu pathos ou sua paixão”:

14 p.357. João Gabriel Domingos aborda profundamente a importância da noção de limite, em sua relação com o uso transcendente da sensibilidade e com o “acordo discordante” das faculdades, em sua dissertação de mestrado sobre Diferença e Repetição. Nas suas palavras, “o importante nessa noção de limite é que, mesmo epistemologicamente inapreensível ou irrepresentável, ele é um elemento diferenciador, no sentido em que força a faculdade à qual faz referência a afirmar-se e, portanto, à diferenciação; em suma, o que é constitutivo seja na sensibilidade ou no pensamento é a exteriorização. A relação com o fora do pensamento não é perturbadora, mas sim constitutiva. Assim, o limite é transcendente, porque força à exteriorização e à diferenciação, mas imanente, porque é um elemento interno à faculdade, corresponde à relação com algo que lhe é mais própria”. DOMINGOS, João Gabriel Alves. Diferença e sensibilidade em Gilles Deleuze, FAFICH/UFMG, 2010, pp.75-76. Retomaremos ao tema da exteriorização na parte mais específica sobre os métodos em Deleuze.

Subjetivamente, o paradoxo quebra o exercício comum e leva cada faculdade diante de seu próprio limite, diante de seu incomparável, o pensamento diante do impensável que, todavia, só ele pode pensar, a memória diante do esquecimento, que é também seu imemorial, a sensibilidade diante do insensível, que se confunde com seu intensivo... Mas, ao mesmo tempo, o paradoxo comunica às faculdades despedaçadas esta relação que não é de bom senso, situando-as na linha vulcânica que queima uma na chama da outra, saltando de um limite a outro. E, objetivamente, o paradoxo faz valer o elemento que não se deixa totalizar num conjunto comum, mas também a diferença que não se deixa igualizar ou anular na direção de um bom senso16.

Contrariamente ao paradoxo, o bom senso tende a anular tudo o que é e que pode devir. Ele opera com bloqueios artificiais do conceito e neutraliza as intensidades17

. O bom senso é então repartidor: “de uma parte e de outra, são as fórmulas de sua banalidade ou de sua falsa profundidade. Ele estabelece o equilíbrio”18

. De acordo com Deleuze, a profundidade é a intensidade do ser, e a intensidade é a profundidade do ser: parece que falamos sempre de uma extensão ao usar o termo profundidade. No entanto, compreende- se com Diferença e Repetição que a natureza da diferença, a intensidade pura, se isenta da extensão. É porque ela está “implicada nessa região profunda em que nenhuma qualidade se desenvolve, em que nenhum extenso se desenrola”19

. É o que Deleuze denomina “vida subterrânea” da diferença, lugar de um “sem fundo”, do caos, de um não fundamento ou do a-fundamento do ser20

. O bom senso neutraliza a diferença pois reside nele um perfil estático, resta-lhe uma tendência ao reconhecimento, uma orientação para o previsto, ele procura um fim, um destino na ordem do possível. Enquanto que o paradoxo se constitui de distâncias intensivas, críticas, distâncias que estão em relação sobre um plano de

16 pp.320/321

17 Na sua concepção pluralista e virtual de Ideia, Deleuze distingue o bloqueio natural de bloqueio artificial dos conceitos. O bloqueio artificial opera com a potência (infinita) lógica do conceito e o bloqueio natural testemunha os limites das faculdades, o finito. Ver Diferença e Repetição, pp. 34-38.

18 Diferença e Repetição, p.317. 19 p.338.

20 “Mesmo que tenhamos de ser idiota, sejamo-lo à maneira russa: um homem do subsolo, que nem se reconhece nos pressupostos subjetivos de um pensamento natural nem nos pressupostos objetivos de uma cultura de seu tempo e que não dispõe de compasso para traçar um círculo. Ele é o Intempestivo, nem temporal e nem eterno”. Diferença e Repetição, p. 191. Sobre o “sem fundo”, a crítica do fundamento (imagem dogmática), ver: Diferença e Repetição, pp. 379-382 (conclusão) e David Lapoujade, Deleuze, os

imanência rítmico constituído por um campo de forças simultâneas, violentas, obscuras. Apesar de um “sem fundo”, parece ser possível falar de um tempo. O Tempo da diferença é o tempo do desigual, enquanto que através das qualidades mesura-se o tempo de uma igualização21

. No capítulo “A Repetição por Si Mesma”, em Diferença e Repetição, Deleuze formula três sínteses do tempo. A primeira é a do hábito, relativa ao

presente vivo e vivido pelo sujeito. A segunda síntese é o presente enquanto contração de todos os nossos passados; é a primazia do passado, de alguma coisa que, na verdade, nunca foi presente, é aquilo que constitui a memória. E a terceira síntese concerne ao pensamento puro quando “o tempo está fora dos eixos”22

. Neste, acontece uma ruptura com o passado, um devir “indivíduo sem passado”, processo de despersonalização. Existe uma redistribuição das forças que eram inseparáveis de alguma coisa e que faz morrer o passado. A terceira síntese do tempo Deleuze chama de insuficiência da memória: não há mais memória, não há mais sujeito, não há mais objeto – há um porvir, um porvir sob forma de ideia. É o tempo do acontecimento e que contém nele mesmo todas impossibilidades cronológicas, algo que parece pertencer apenas ao pensamento. E, justamente, é neste espaço-tempo assinado23

que se apreende o impensável – condição para o intempestivo e para a criação do novo.

*

21 DELEUZE, G. Diferença e Repetição, p. 212. 22 p.136

23 Em francês, a palavra “assinado” – signé – evidencia nela mesma a incisão do signo, a matéria marcada e tornada signo ela mesma, significada. Sentido possível para uma definição de expressão. “Qual é este movimento objetivo? O que uma matéria faz como matéria de expressão? Ela é primeiramente cartaz ou placa, mas não fica por aí. Ela passa por aí, e é só. Mas a assinatura vai tornar-se estilo. Com efeito, as qualidades expressivas ou matérias de expressão entram em relações móveis umas com as outras, as quais vão ‘exprimir’ a relação do território que elas traçam com o meio interior dos impulsos e com o meio exterior das circunstâncias. Ora, exprimir não é pertencer; há uma autonomia da expressão”. DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol.4, p. 124.

Voltamos a Nietzsche. Este tempo, que faz retornar tão somente a diferença, é o eterno retorno, o caos, “caos-errância”, eterna afirmação do ser.

Nietzsche parece ser de fato o primeiro a ver que a morte de Deus só se torna efetiva com a dissolução do Eu. O que então se revela é o ser que se diz de diferenças que nem estão na substância nem num sujeito: outras tantas afirmações subterrâneas. Se o eterno retorno é o pensamento mais elevado, isto é, o mais intenso, é porque sua extrema coerência, no ponto mais alto, exclui a coerência de um sujeito pensante, de um mundo pensado, de um Deus garantia24.

A partir de uma concepção vitalista, os estados, os modos de existência, os modos de vida do pensamento não são apenas ligados a uma ontologia, mas a uma patologia, onde sintomas destituem as essências. O reflexo da noção de limite em torno da qual se constitui Diferença e Repetição revela a necessidade de um pensamento mais forte que a razão,

aquele de uma orelha impossível, de um pressentir, de tornar sensível o insensível, imaginável o inimaginável; operação que, como vimos, só a arte parece dar conta de realizar plenamente. Seria esta a eterna afirmação do ser, afirmação da diferença enquanto intensidade que distingue a sensibilidade transcendente:

É sempre a partir de um sinal, isto é, de uma intensidade primeira, que o pensamento se designa. Através da cadeia quebrada ou do anel tortuoso, somos violentamente conduzidos do limite dos sentidos ao limite do pensamento, daquilo que só pode ser sentido àquilo que só pode ser pensado25.

A partir da terceira síntese do tempo, vemos no projeto deleuziano a tentativa de colocar em contato direto a sensibilidade e o pensamento. E, parece, que só a arte pode fazê-lo de forma efetiva. A arte dispara, muda a direção (para um Fora), “deixa os sons

24 p. 96. Sobre a equivalência entre o eterno retorno e o caos pela afirmação, Deleuze diz: “O eterno retorno é o ser desse mundo, o único Mesmo que se diz desse mundo, excluindo dele toda identidade prévia. É verdade que Nietzsche se interessava pela energética de seu tempo; mas não se tratava de nostalgia científica de um filósofo; é preciso adivinhar o que ele ia procurar na ciência das quantidades intensivas – o meio de realizar o que ele chamava de a profecia de Pascal: fazer do caos um objeto de afirmação”. DELEUZE. Diferença e

Repetição, pp. 341/342.

serem eles mesmos”, como nos propõe John Cage. “Deixar ser” da memória involuntária, de um pensamento sonoro, nômade e intempestivo.

Vimos com o pensamento-música que ir até o limite da sensibilidade (tornar sensível o insensível) e o limite do pensamento (tornar pensável o impensável) é o que caracteriza um pensamento intempestivo, tal como lê Deleuze a partir de Nietzsche. Eis porque o paradoxo do ser do sensível – insensível e que só pode ser sentido – nos convida a pensar a diferença menos como um conceito relacional do que intensidade pura. E assim a noção de relação é construída através de uma lógica, que é a lógica de forças: intensidades, distâncias, quedas, ritmos, choques, deformações, desvios, contágios, simultaneidades. Segundo Anne Sauvagnargues, será pela semiótica da arte que Deleuze chegará a noção de captura de forças. O meio material-vital das produções artísticas, faz Deleuze pensar não mais na “Lógica do Sentido” (título de um dos livros publicados em 1968), mas em uma lógica das forças, uma lógica de relações. O agenciamento opera neste plano, de uma lógica da duração, da multiplicidade dos moventes, do movimento, e procura desviar, assim, da noção arborescente de estrutura, sistema, etc.26

O material-forma dando lugar ao material-forças.

Esses estados vividos de que eu falava há pouco, para dizer que não se deve traduzi-los em representações ou em fantasmas, que não se deve fazê-los passar pelos códigos da lei, do contrato ou da instituição, que não se deve converter em moeda, que é preciso ao contrário fazer deles fluxos que nos levam cada vez mais longe, mais para o exterior, é exatamente a intensidade, as intensidades. O estado vivido não é algo subjetivo, ou não o é necessariamente. Não é algo individual. É o fluxo, e a interrupção do fluxo, já que cada intensidade está necessariamente em relação com uma outra de tal modo que alguma coisa passe.27

Podemos sentir o insensível, pensar o impensável e isto não remete a um sujeito

26 “A arte enquanto captura e a imagem enquanto um composto de afectos e perceptos”. SAUVAGNARGUES, A. Deleuze et l’art, p.21.

27 DELEUZE. DELEUZE, Gilles. “Pensamento nômade”, in DELEUZE. A ilha deserta, textos e entrevistas

representado, remete às individuações, individuações sem sujeito instanciadas pela lógica de forças. Estamos lá onde “o ser da diferença é a implicação”, intensidade implicada em si mesma. E nesta implicação é “a diferença na intensidade que constitui o limite próprio da sensibilidade”.28