• Nenhum resultado encontrado

Territórios, agenciamentos, expressão: a geografia sonora do ritornelo

3 O TEMPO E OS TERRITÓRIOS: O RITORNELO

3.3 Territórios, agenciamentos, expressão: a geografia sonora do ritornelo

Antes de Kant, a música já lidava com a autonomia e a potência do tempo. Poderíamos nos estender aqui sobre as diferentes músicas do continente africano, ou inúmeras outras, de outras etnias e povos não ocidentais, mas vou me limitar a um universo talvez menos diverso e mais restrito, não perdendo de vista os seus potenciais. Estabeleci

como limite as músicas ocidentais “escritas”, por assim dizer, por ser o território que eu venho estudando há mais tempo. Então, nota-se que tenha surgido na música do século XX, tanto na música de concerto quanto no jazz da segunda metade desse século, uma significativa necessidade em “desterritorializar” as práticas e escutas musicais até então estabelecidas15

. Buscavam-se outros ritmos, timbres, sonoridades, novas sensibilidades de tempo e espaço. Para além das pesquisas sobre ritmos de outros povos e culturas não ocidentais, alguns compositores de música de concerto, inclusive Messiaen, tiveram grande interesse por determinadas técnicas musicais da Europa medieval e renascentista. Um exemplo dentre estas práticas é o procedimento da talea, que era uma forma de estruturar isoritmos nos motetos polifônicos16

. Os processos de criação e reformulação contínua da escritura musical nesse contexto histórico da Europa medieval/renascentista – que proporcionou uma maneira de manusear o jorro do tempo, juntamente com a escrita composicional de músicas profanas, destinadas à dança e à festa –, contribuíram, nas práticas e escutas musicais pós-renascentistas, para uma apreciação pelos pulsos regulares, pelos pulsos harmônicos, pela ideia cíclica e estruturante de compasso, pela quadratura. Enfim, por uma espécie de simetrização do tempo. Mesmo assim, não faltam exemplos de polifonias barrocas nas quais podemos facilmente nos perder dentro da complexidade e vitalidade dos “acordos discordantes”, de múltiplas vozes (motivos, temas, pequenos

15 Bartók talvez tenha sido, para mim, um dos casos mais interessantes. Ele realizou inúmeras viagens no interior de seu país natal, a Hungria, pesquisando os cantos populares e folclóricos, as danças, etc. Grande parte de sua obra, para não dizer toda ela, baseia-se nessa longa pesquisa, pesquisa de “desterritorialização”. Outros compositores também se interessaram pelas melodias populares, pelos cantos do campo e de trabalho; cada um deles, é claro, criou lugares singulares para tais músicas, de acordo com as singularidades de suas escutas. No jazz norte americano, alguns músicos viajaram para países da Ásia, como a Índia, a China e a Japão. Bitches Brew, álbum de Miles Davis gravado em 1969, talvez seja o grande marco desse contexto no jazz que fez deslanchar o fusion e o free jazz. Para escutar Bitches Brew:

https://www.youtube.com/watch?v=SbCt-iXIXlQ

16 A grosso modo, as taleas consistem em sobreposições de linhas isorítmicas distintas que se recomeçam juntas em largos intervalos de tempo. Para que esta coincidência de encontro de recomeço aconteça são necessários recomeços de cada um desses isoritmos. Exemplo de talea ver/escutar: “Liturgia de cristal” do

Quarteto para o fim do Tempo, de Messiaen. Tem-se a impressão, ao escutar esta peça, que a música “já

começou” antes mesmo de começarmos a escutá-la. Como se ela estivesse ali, na natureza, ou no cosmos. Falei um pouco desta sensação na parte sobre “Sensação, regimes de signos, corpo, pensamento”, do capítulo “Pensamento-música”, mais precisamente sobre as músicas de Scelsi e Xenakis.

temas, micro motivos, etc.), hecceidades. Sobre a detenção e apreensão do tempo, Messiaen dizia que “os filósofos são menos avançados neste domínio. Mas, nós, músicos possuímos este grande poder de partir o tempo e retrogradar”17

.

Ao que me parece, a formulação simbólico-representativa do conceito de ritornelo na música “escrita” nasce nesse contexto de passagem da Renascença para o Barroco, em meados do séc. XVI. Nasce na “virada” da notação musical, da polifonia e do domínio do tempo. O tempo que “volta”, repartido por blocos, seções, temas, movimentos, atos, dramas18

. Quando a música começa a aprofundar-se nas relações material-forma. O ritornelo indica na partitura um trecho a ser repetido, a ser tocado de novo. Hoje, por mais que possamos pensar que o “tocar de novo” seja uma reprodução de um mesmo, um loop, tal reiteração, ao contrário, considera que alguns valores na música não são absolutos (embora extremamente precisos enquanto expressões), valores que também assinam um tempo, expressam a atualização de um ritmo. Valores como, por exemplo, a expressão e as suas modulações (forte, piano, pp, ppp, crescendo, com brilho, vibrato, etc.), os andamentos (lento, rápido, acelerando, rubato, etc.) e a articulação (uma respiração, um silêncio, uma fermata, de novo um vibrato). Mais do que isso, pressupõe-se que reiterar não é necessariamente reproduzir mas repetir, pressupõe-se que o músico/ouvinte que toca também não é mais aquele mesmo que acabara de tocar. Poder do corpo de afetar e ser afetado19

.

17 SAMUEL, C. MESSIAEN, O. Permanences d’Olivier Messiaen. Dialogues et commentaires, p. 42. Deleuze e Guattari em Mil platôs, no platô sobre o devir, dizem que “a música não parou de fazer suas formas e seus motivos sofrerem transformações temporais, aumentos ou diminuições, atrasos ou precipitações, que não se fazem apenas de acordo com as leis de organização e até de desenvolvimento”. DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4, p. 61.

18 Para grande parte dos musicólogos, Claudio Monteverdi, compositor italiano (1567- 1643), é o grande marco do nascimento do Barroco, na música.

19 A técnica minimalista explorou e explora o recurso da repetição como formas de loop. Com este recurso de insistência pode-se “saturar” a figura ou gesto que se repete, mudando algumas de suas dimensões sonoras. O ouvinte passa nesta irritação a escutar “o som do som”, em um processo molecular de deformação daquilo que se escuta. A atenção deixa de se fixar em uma unidade rítmica precisa e pode começar a perceber outras dimensões timbrísticas, rítmicas, temporais.

Assim, resguardando o que nele tem de mais musical, Mil platôs nos convida a aprofundar e amplificar o conceito de ritornelo. Não estamos falando mais de uma operação que só acontece ali nas sub-articulações de uma matéria-forma. Não estamos mais na primazia de uma representação do tempo, subordinado pela forma, o tempo cíclico. O ritornelo nos mostra que o eterno retorno não é cíclico. Mas, nos mostra também que o tempo não é mais forma pura a priori20

; o tempo é captura, é o limite da captura de forças mas é ele mesmo a captura. O ritornelo agora é maquínico. Ele é criação e produção de meios (infra-agenciamento do caos), de territórios (intra-agenciamento da terra) e de processos de desterritorialização (inter-agenciamentos territoriais, o Cosmos)21

. O ritornelo fabrica tempo. Mas o ritornelo é mais geográfico do que Histórico. Está em todas as relações territoriais, em todos os tipos de agenciamento, em todas as relações material- forças, traçando territórios, ao mesmo tempo em que captura forças, intensidades, e desterritorializa. Ele é mais intensivo do que formal. Pois é espaço (territorial, flutuante, glissante), tempo (fonte de tempo, rítmico, vertiginoso, oscilante). Ele é como os seres da música, devires, liso e estriado, acontecimentos onde dicotomias se dissolvem, onde tempo

e espaço se fundem; blocos/acordes discordantes. Esses blocos (blocos de sensações inseparáveis, móveis e errantes) são os ritornelos. “O ritornelo inteiro é o ser da sensação. Os monumentos são ritornelos” 22

. As esculturas são ritornelo na medida que elas são sensações, matérias que vibram “segundo a ordem dos tempos fortes e tempos fracos”23

.

20 “Não há o tempo como forma a priori, mas o ritornelo é a forma a priori do tempo que fabrica tempos diferentes a cada vez”. DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4, p. 168.

21 “Ora se vai do caos a um limiar de agenciamento territorial: componentes direcionais, infra-agenciamento. Ora se organiza o agenciamento: componentes dimensionais, intra-agenciamento. Ora se sai do agenciamento territorial, em direção a outros agenciamentos, ou ainda a outro lugar: inter-agenciamento, componentes de passagem ou até de fuga. E os três juntos. Forças do caos, forças terrestres, forças cósmicas: tudo isso se afronta e concorre no ritornelo”. DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4, p. 118.

22 DEULEUZE, GUATTARI. O que é filosofia?, p.238, grifo meu. 23 p. 219.

Num sentido geral, chamamos de ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais (há ritornelos motores, gestuais, óticos, etc.). Num sentido restrito, falamos de ritornelo quando o agenciamento é sonoro ou "dominado" pelo som — mas por que esse aparente privilégio? (...). Diríamos que o ritornelo é o conteúdo propriamente musical, o bloco de conteúdo próprio da música. Uma criança tranquiliza-se no escuro, ou bate palmas, ou inventa um passo, adapta-o aos traços da calçada (...). Uma mulher cantarola, "eu a ouvia cantarolando uma ária, com voz baixa, suavemente". Um pássaro lança seu ritornelo. A música inteira é atravessada pelo canto dos pássaros, de mil maneiras (...). A música é atravessada por blocos de infância e de feminilidade. A música é atravessada por todas as minorias e, no entanto, compõe uma potência imensa. Ritornelos de crianças, de mulheres, de etnias, de territórios, de amor e de destruição: nascimento do ritmo.

*

Todo som traça um território ou já é um território desterritorializado. E todo território e acontecimento é carregado de som, denunciado pelo som, por suas vibrações24. Virtualidade (potência) dos corpos. Cada vez que se toca uma música, há atualização, há criação, “faz-se um som”. A música se atualiza no processo de desterritorialização, movimento de alteração inerente ao devir. Pois toda atualização é alteradora. De novo. Poderíamos dizer, mais uma vez, que o ritornelo compreende o movimento entre virtual e atual, já apresentado por Deleuze em outras obras, mas, agora, incorporado por outros dramas: são dramas musicais, dramas dos territórios. Devir-animal. Pois é precisamente sob a noção de território trazida pelo ritornelo (conceito este que nos remete a todo devir, Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível) que Deleuze e Guattari dizem que o

sonoro-musical, ou a música, “não é privilégio do homem”, que “a questão da música é a de uma potência de desterritorialização que atravessa a Natureza”, isto é, na medida em que o conteúdo da música é ritornelo.

24 John Cage diz que não existe silêncio. Tudo o que acontece é ou produz som. Cage amplifica o sentido de escuta, de uma política da escuta, e, claro, da própria música, do espaço artístico-musical. Deleuze e Guattari estabelecem esta relação acontecimento-música com o conceito de ritornelo. Traça-se um território através da vibração, de pulsos, pontos notáveis, fluxos, devir.

A música submete o ritornelo a esse tratamento muito especial da diagonal ou da transversal, ela o arranca de sua territorialidade. A música é a operação ativa, criadora, que consiste em desterritorializar o ritornelo. Enquanto que o ritornelo é essencialmente territorial, territorializante ou reterritorializante, a música faz dele um conteúdo desterritorializado para uma forma de expressão desterritorializante. Que nos perdoem uma frase dessas, seria preciso que ele fosse musical, escrevê-lo em música, o que fazem os músicos25.

Escrever em música não só quer dizer, literalmente, escrever (no espaço gráfico da partitura). Creio que os autores apontam também para a dimensão do espaço sonoro, para a “linguagem” que constitui a música, onde os signos se mostram, musicalmente. Os desenhos que cortam espaços-tempo, formados e deformados pelos sons. Como não há precisamente este espaço sonoro nesta dissertação, mas, ao mesmo tempo, tentando tornar um pouco mais exemplificável os conceitos de intercessão entre música e filosofia, trago en passant uma peça de Bartók para exemplificar o ritornelo. Uma peça de piano escrita

para crianças.

25 DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4, “Devir intenso, (...)”, p.101. Na página anterior: “Não dizemos absolutamente que o ritornelo seja a origem da música, ou que a música comece com ele. Não se sabe muito bem quando começa a música. O ritornelo seria antes um meio de impedir, de conjurar a música ou de poder ficar sem ela. Mas a música existe porque o ritornelo existe também, porque a música toma, apodera-se do ritornelo como conteúdo numa forma de expressão, porque faz bloco com ele para arrastá-lo para outro lugar”.

Fig. 04 - Béla Bartók. Für kinder I-II (1908-1909)

Diríamos que há uma desterritorialização de uma melodia, que veio das terras do interior da Hungria e que agora se encontra em um outro território, esse espaço gráfico da partitura. Há desterritorialização na construção de sua nova “casa”, que chamaremos de toca, onde a melodia se constitui como nome próprio. Uma toca movente, de blocos (micro e macro blocos) de tempo-harmonia. Pois um primeiro acorde em sf, atacado no segundo tempo do primeiro compasso, marca um território, constituição de um espaço-tempo com o qual ritornelos irão roubar e, também, fabricar outros tempos.

É ritmo. É o tempo dando vida aos acordes e às notas, tornando-as matérias expressivas. São estes sons tornando o tempo apreciável e sonoro. E nos sentiremos cada vez mais aprofundados, desterritorializados e reterritorializados naquela toca. Vida subterrânea de uma melodia.

*

Voltamos para os planos presididos por relações de material-forças, por agenciamentos musicais, plano de composição. O plano de composição para Deleuze e Guattari é povoado por compostos melódicos, contrapontos, personagens rítmicos. O plano de composição é um grande ritornelo, movimento infinito de desterritorialização. É interessante pois a autonomia da arte, produzida pela autonomia do bloco de sensações que ela conserva – esta conservação –, é justamente aquilo que dá o poder “ao quadro de sair da tela”. A conservação parece residir nesta potência de se preservar para além da matéria, que permite revelar o composto de sensações. É o devir-cosmos da matéria, quando, ao se tornar expressiva, entra no horizonte móvel da imanência, virando puro afecto ou hecceidades; movimento de desterritorialização e reterritorialização (a sensação sobre o

plano, “erguendo as suas casas...”). Tornar durável o mundo: “saturar cada átomo”, eliminar tudo o que gruda em nossas percepções correntes e vividas26

. E a arte se apresenta como essa emergência das qualidades sensíveis. Mas, uma emergência-conservação que torna durável o mundo. É por essas vias que Deleuze e Guattari acabam relocalizando ou transmutando a definição de narrativa em Kafka27

, a ideia de voz e de “ter algo para se dizer”. Pois “o que conta não são as opiniões dos personagens...” Não se trata da reprodução ou representação de uma vida, é a própria vida. Vitalidade do material-força. Por mais que o ponto de partida da expressão (na música, ou em outras criações) possa ser um sentimento ou a representação de uma ideia, o seu conteúdo real, o modo como a matéria se torna expressiva, é menos subjetivo do que ritornelo: devir-animal. Precisamente por isso podemos supor uma fusão conteúdo-forma. O ritornelo é a

26 DELEUZE. GUATTARI. Mil platôs, vol. 4, pp.72-74.

27 Não só em Kafka: por uma literatura menor, mas também nos seus estudos sobre cinema, Deleuze já apresentava uma análise crítica sobre a narrativa enquanto sucessão, momento em que ele recorre a ideia de

multiplicidade desses tempos, dobras, dessas capturas que orquestram as “matérias não formadas de expressão”.

Com o ritornelo, Deleuze e Guattari retomam a noção de plano pré-individual. O problema é mais físico, mais dinâmico, energético: diferenças de potencial, de intensidade, devires. Problema que nos lança mais para o intempestivo, do que para a memória voluntária. Dissolução de uma primazia do tempo subjetivo, de um falso controle do tempo. Cria-se tempo, modulações espaço-temporais, com os ritornelos. É interessante pois em Mil platôs nos deparamos com um aprofundamento desregrado do encontro entre filosofia e as artes, espécie de um delírio de Deleuze e de Guattari, nessa dramatização das ideias. Procurando escapar de um ponto de origem fixo-determinante e maior, a música é recorrente ali, nos devires-imperceptíveis, a música como fluxo e choque de forças, potências e “traços assignificantes” que atravessam e deformam, como o contínuo/descontínuo, virtual, corporal, molecular, ambígua, oscilante, passos, dança, vento, ondas, batimentos. O musical é heterogenético pois assina territórios nas diferenças, na relação (contrapontos, micropolifonias, silêncios, defasagens, tessituras, vibrações, sobreposições, involuções), e desterritorializa. Eis o movimento intensivo do sonoro- musical. O ritornelo, é a sua imagem-cristal28

, “sonoro por excelência”, de múltiplas facetas, refrações e contraluzes móveis, linhas de fuga. Cristal em deformação contínua. Já não mais um tempo linha apenas, já não mais Belo, nem Sublime.

28 A expressão “imagem-cristal” é conceito na obra de Deleuze sobre o cinema (A imagem-tempo). Aqui, não nos remetemos precisamente a tal conceito, mas na imagem-conceito que “cristal” provoca na apreensão (filosófica-musical) do Ritornelo. Edgar Varèse, compositor francês da virada do séc. XX, inaugurou o uso do termo “cristal” para se pensar a forma musical. Uma forma-cristal seria o todo resultante de micro jogos de forças, pequenas unidades formais ou gestos. Uma forma “móvel”, que involui de acordo com as resultantes dessas refrações. Contração e dispersão. Virtual e atual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de não ter escrito nenhum livro específico sobre música, como ele fez com o cinema, com a literatura, a pintura e o teatro, Deleuze apresenta um trabalho que desde seu começo é perpassado por elementos-conceitos sonoros musicais. Em alguns momentos podemos perceber uma espécie de inocência de Deleuze com a música, ou um tipo de escuta que nos permite notar o lugar de “não-músico” do filósofo. Isto pode ser notado como um charme aparente. Como se Deleuze apresentasse uma parte de sua intimidade, do seu processo de se perder um pouco em um território novo, que está ainda sendo traçado por ele. Todavia, o que parece estar por detrás de todas as suas convocações musicais é, na verdade, uma compreensão viva de música e que nos traz – a filósofos, músicos e demais leitores – contribuições bem interessantes para pensar e criar com esta arte. Nos seus últimos escritos, a música aparece de maneira mais assumida, ou ainda, de maneira mais apaixonada e patológica. Deleuze se deixa afetar pelas noções musicais que ele vai descobrindo, experimentando um tipo de escrita mais gestual e polifônica, de múltiplas linhas e dispersões. Esta liberdade se sobressai especialmente nas obras com Guattari, o que faz essa parceria ser ainda mais marcante. Mas, mais do que isso, a impressão que se tem é que nas suas passagens rápidas sobre um tema musical ou outro, bem como nas suas tentativas de fisgar a música e se aprofundar, Deleuze preserva, ainda assim, uma espécie de cuidado, de medo ou de respeito diante dessa arte. Ele dizia não “ter tempo” para pesquisar e conhecer música de forma aprofundada e poder escrever sobre ela... O presente trabalho corre o risco de se apresentar como uma defesa de uma primazia da música sobre as demais artes, no entanto, não é bem isso. É justamente nessa dificuldade de se falar sobre a música, ou sobre um lugar (os interstícios) da “linguagem música”, que ela parece

ser profundamente apresentada.

Vimos e defendemos a tentativa de Deleuze (e de Guattari também) em desconformar grandes conceitos, conceitos-imperadores, com a criação e a modulação contínua de conceitos “menores”. Em alguns momentos temos a impressão que o projeto fracassa, que ao final substitui-se nomes maiores por outros. Que o Devir, o Ritornelo, a Diferença, acabam servindo a Deleuze como grandes conceitos abstratos, metonímicos ou metafóricos, submetidos à generalidade do diverso e não à singularidade da diferença. Creio que essa delicada confusão tem por responsável, muitas vezes, o leitor de Deleuze, o “deleuziano”, o estudante de mestrado, como eu, que se propõe a escrever na plasticidade que Deleuze e Guattari propõem para a filosofia. Escrever nunca é fácil, e se jogar em mecanismos que possuem uma dose de delírio, que se propõem a não serem fixos, pode ser perigoso. Todavia, entendo que o objetivo desta dissertação foi o de investigar, mais precisamente, o papel da música na filosofia de Deleuze e em um projeto de composição de um horizonte móvel para a estética. Na verdade, cruzamos aqui neste trabalho um território que nos faz pensar que este horizonte móvel estético é necessário para uma dimensão de filosofia que não se restringe à definição clássica de estética. Inevitavelmente acabei chegando, na pesquisa sobre música em Deleuze, nesse lugar, nas situações de territorialização da pergunta “o que é filosofia?”. Não pretendi responder a esta pergunta, mas localizá-la dentro do escopo até então desenhado. Um escopo que busca avaliar os modos como a música e os pensamentos e operações musicais afetam Deleuze na sua criação e modulação de conceitos. Isto é, o quê na música, ou como a música, ou por que a música (esta língua assignificante) nos provoca a pensar/sentir/criar.

A noção de situação, trazida por Helmut Lachenmann, foi breve, mas pontual. Por